Como Capturar Um Estado

As Tácticas Híbridas Da Rússia Para Exercer Controlo Na República Centro-Africana Constituem Um Alerta Ao Continente

EQUIPA DA ADF

Pequenas nuvens de areia vermelha levantaram-se do camião de mercenários russos quando seguia para o centro de Bambari, prometendo comida aos necessitados.

No calor escaldante, dezenas de pessoas perfilaram-se ao longo da estrada de terra-batida, na quarta maior cidade da República Centro-Africana (RCA).

Ao invés de comida, eles receberam gestos e foram ordenados, sob ameaça de armas, para protestarem contra a MINUSCA, a missão de manutenção da paz das Nações Unidas na RCA, exigindo que a ONU saia da cidade que tinha libertado de rebeldes em finais de 2020.

Isso não fazia sentido para o jornalista nigeriano, Philip Obaji Jr., que tem feito muitas reportagens sobre a famosa empresa militar privada (EMP) russa chamada Grupo Wagner, enquanto expande as suas operações em Africa.

“Várias fontes da RCA disseram-me que os protestos contra a ONU na cidade de Bambari foram uma operação clandestina encenada pelos mercenários do Grupo Wagner,” disse Obaji à ADF. “Antes de números significativos de homens do Grupo Wagner terem saído para a Ucrânia, fiz uma reportagem sobre os novos impostos sobre produtos agrícolas que impuseram e colectaram.”

Obaji também recebeu relatos de que os mercenários russos massacraram civis nas aldeias de Mouka, Yangoudroudja, Aïgbado e Yanga.

Um instrutor militar russo trabalha com um membro das Forças Armadas Centro-Africanas. SINDICATO DE OFICIAIS PARA A SEGURANÇA INTERNACIONAL

Acusações de atrocidades seguem o Grupo Wagner como uma sombra.

Na RCA, os mercenários apenas servem para defender e apoiar a abordagem híbrida da Rússia que combina um poder duro e um poder suave por mais de quatro anos.

“A RCA actualmente encontra-se num estado de captura do Estado,” Mattia Caniglia, membro do Conselho Europeu de Relações Estrangeiras, disse à ADF. “O nível de penetração que estamos a testemunhar agora é enorme.”

“Neste momento, existe uma situação que é perfeita para aquilo que a Rússia faz.”

UM PAÍS PRONTO PARA EXPLORAÇÃO

Operativos russos estiveram na RCA desde 2017, depois de atravessarem a sua enorme fronteira porosa nordeste com o Sudão. Eles instalaram-se tirando a vantagem da instabilidade generalizada, do sentimento anti-França e do Presidente Faustin-Archange Touadéra, que estava prestes a ser deposto por rebeldes.

Em mais de quatro anos, a Rússia ganhou acesso sem precedentes às camadas do poder governamental e utilizou-o para expandir a propaganda, deixando muitos cidadãos indecisos sobre em quem devem confiar.

Caniglia descreve a abordagem da Rússia em África como oportunista e estratégica, destacando a importância de distinguir entre os seus dois pilares — actividades oficiais e não oficiais.

“Nas não oficiais, encontramos muitas coisas assimétricas e híbridas,” disse. “Nas oficiais, encontramos isso também, mas, muitas vezes, tem a ver com os seus acordos bilaterais, formações militares, contratos de fornecimento de armas e mais.”

Um instrutor militar russo fala com uma unidade das Forças Armadas Centro-Africanas. SINDICATO DE OFICIAIS PARA A SEGURANÇA INTERNACIONAL

A abordagem da Rússia esteve em plena demonstração na RCA.

Em 2018, Touadéra instalou Valery Zakharov, com ligações ao Kremlin, um antigo oficial de inteligência russa, como o seu conselheiro nacional de segurança.

A União Europeia (EU) chamou Zakharov de “figura-chave …. na estrutura de comando do Grupo Wagner” com “fortes ligações com as autoridades russas.”

O nível de poder que o Grupo Wagner alcançou na RCA ultrapassou até mesmo as suas expectativas. 

“Isso é algo sem precedentes,” disse Caniglia. “Mas, de novo, todas as condições já estavam lá na RCA. Eles conseguiram vantagem que em qualquer outro lugar não teriam a permissão de ter.”

Um outro aliado de Touadéra, Alexander Ivanov, também alegadamente possui ligações próximas com o Grupo Wagner.

Como representante oficial dos instrutores militares russos na RCA, Ivanov lidera um grupo de “advocacia da paz” independente chamado Sindicato de Oficiais para a Segurança Internacional (COSI).

O Ministério da Defesa da Rússia admitiu que utilizou Ivanov para recrutar todos os seus instrutores destacados para instruir as Forças Armadas da RCA (FACA), de acordo com declarações da Rússia a um painel de especialistas da ONU.

Utilizar representantes de empresas privadas como o Grupo Wagner e a COSI garante um disfarce necessário para a Rússia. A sua capacidade de recusar envolvimento oficial é uma peça de extrema importância para o quebra-cabeças deliberadamente opaco que é a abordagem híbrida da Rússia na RCA.

Carro blindado russo de transporte de pessoal é entregue às Forças Armadas Centro-Africanas, em Bangui, no dia 15 de Outubro de 2020. AFP/GETTY IMAGES

“A sua motivação é primariamente financeira,” Kevin Limonier, professor de geopolítica e especialista em espaço cibernético de expressão russa, disse à revista The Africa Report. “Eles vêem África como um lugar para fazer dinheiro e explorar novos horizontes.”

O modelo híbrido da Rússia permite que ela exerça influência com um pequeno investimento de dinheiro e homens. 

“O Estado russo não tem necessariamente meios para cumprir com as suas ambições políticas em África,” disse Limonier. “Por isso, depende destas redes que utilizam métodos não convencionais e recusa o seu envolvimento, caso surja algum problema.”

Com o Grupo Wagner, os problemas sempre aparecem.

PODER DURO: INSTRUTORES E MERCENÁRIOS

Com uma estimativa de 2.200 a 3.000 homens, Grupo Wagner é o mais notório das várias EMPs russas alegadamente operando como instrutores e provedores de segurança.

Sempre que Touadéra e outros oficiais de alta patente estão em público, guardas uniformizados e fortemente armados ficam por perto. Eles viajam em veículos blindados russos e ocasionalmente coordenaram com helicópteros russos e drones.

O que começou como uma missão de treino em 2018, em última instância, acabou por evoluir para operações de combate a insurgências com mercenários russos no campo — em alguns casos, comandando as unidades das FACA.

Relatos de massacres nas mãos de mercenários russos e de tropas das FACA seguindo as suas ordens desestabilizaram o exército.

Alexandre Ivanov discursa no local de exibição de um filme de propaganda do Grupo Wagner de-nominado “Tourist”, que foi gravado na República Centro-Africana. SINDICATO DE OFICIAIS PARA A SEGURANÇA INTERNACIONAL

Em Junho de 2020, o painel de especialistas da ONU disse que tinha “recebido vários relatos indicando que os instrutores russos tinham indiscriminadamente matado civis não armados,” utilizando força excessiva e pilhagem na RCA, particularmente nas regiões mineiras.

O painel também disse que os mercenários da Líbia e da Síria tinham-se envolvido em combates juntamente com os instrutores russos. 

Em Março de 2021, o gabinete do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos recebeu relatórios sobre execuções em massa, tortura, detenções arbitrárias, deslocamentos forçados de civis e ataques contra trabalhadores de agências humanitárias atribuídos a EMPs que trabalham com as FACA, incluindo o Grupo Wagner.

PODER SUAVE: GUERRA DE INFORMAÇÃO

A Rússia empregou vários meios de poder suave para promover a sua agenda na RCA. 

Através de mercenários, empresas fantasma e outros representantes, a Rússia financiou a imprensa local, patrocinou influenciadores “anti-imperialistas,” produziu propaganda multimédia e organizou campanhas de desinformação.

Membros do Grupo Wagner e seus associados alegadamente construíram parques recreativos e estátuas para eles mesmos. Fizeram pelo menos dois filmes de propaganda do Grupo Wagner na RCA para mistificar as suas acções. Organizaram torneios de futebol e concursos de beleza.

Ivanov conversa com um grupo de jornalistas locais. SINDICATO DE OFICIAIS PARA A SEGURANÇA INTERNACIONAL

O oligarca ligado ao Kremlin, Yevgeny Prigozhin, acusado pela UE de financiar o Grupo Wagner, financiou a criação da estação de rádio Lengo Songo (que significa “Criando Solidariedade” na língua Sango) por 10.000 dólares, de acordo com a BBC. A estacão possui uma forte inclinação pro-Rússia, culpando a ONU e a França pela crise na RCA.

Com os mercenários russos vem um conjunto de serviços de imprensa.

“Eles são baratos e vêm como parte de um pacote de serviços de apoio ao regime, incluindo tecnologias políticas,” Mark Galeotti, um especialista em assuntos de segurança da Rússia, disse ao jornal independente, The Moscow Times, referindo-se ao Grupo Wagner.

Financiamento russo e campanhas de manipulação da imprensa ajudaram Touadéra a vencer a reeleição em 2020 com uma margem confortável.

Zakharov alegadamente supervisionou a colocação de aliados de Touadéra em posições fundamentais nas eleições, incluindo na contagem de votos.

A RCA foi um dos oito países africanos onde a gigante das redes sociais, Facebook, suspendeu centenas de contas falsas e desmantelou aquilo que concluiu serem campanhas de interferência russa nas eleições. Na RCA, trolls russos manchavam os países vizinhos africanos e os parceiros daquele país quando destacaram a Rússia como um libertador.

Seguiram-se protestos de rua coordenados, tendo como alvo a França, a MINUSCA e a Comunidade Económica dos Estados da África Central.

Em Agosto de 2021, a MINUSCA também lidou com rumores falsos de que estava a fornecer minas terrestres aos rebeldes mesmo numa altura em que estava a enviar pessoal para remover estes dispositivos.

“A MINUSCA nunca utilizou minas,” porta-voz das forças da ONU, Major Ibrahim Atikou Amadou, disse à BBC, observando que as operações de desminagem estavam a enfrentar um impasse por causa destas alegações.

Acredita-se que o Presidente da República Centro-Africana, Faustin-Archange Touadéra, tenha inicialmente pedido assistência ao presidente russo, Vladimir Putin, durante a cimeira Rússia-África de 2019, em Soshi. AFP/GETTY IMAGES

PODER DIPLOMÁTICO

Usando a sua posição no Conselho de Segurança da ONU, a Rússia criou o seu primeiro espaço na RCA quando a ONU suspendeu um embargo de armas, que permitiu que a Rússia vendesse armas para aquele país.

Os mais recentes esforços da Rússia na ONU — bloquear encontros com os painéis de especialistas da ONU e por conseguinte subverter o processo de sanções internacionais — frustraram as investigações sobre as actividades da Rússia e das suas EMPs.

“Parece que Moscovo deseja paralisar as sanções e os painéis de especialistas para desviar a atenção daquilo que o Grupo Wagner está a fazer em África,” o Director do Grupo Internacional da Crise, da ONU, Richard Gowan, disse à revista Foreign Policy. “Por isso, em alguns casos é simplesmente uma forma de cobrir alguns assuntos nefastos.”

O CUSTO PARA A RCA

Garantir concessões lucrativas de ouro, diamante e urânio tem sido uma grande prioridade para os operativos russos na RCA. Sem nenhum governo a responsabilizar-se pelo pagamento aos instrutores russos ou EMPs, os especialistas acreditam que os direitos mineiros estão a ser dados em troca dos serviços mercenários.

O negócio de extracção dos vastos recursos minerais da RCA está na responsabilidade de empresas fantasma russas, como a Lobaye Invest, que está ligada directamente a Prigozhin e foi criada em Outubro de 2017, juntamente com a subsidiária PMC, chamada Sewa Community Services.

Em Junho e Julho de 2018, Léopold Mboli Fatran, Ministro de Minas da RCA, concedeu licenças de exploração mineira a Lobaye em duas regiões. Ele eventualmente concedeu permissões em seis regiões: Alindao, Birao, Bria, N’Délé, Pama e Yawa.

Obaji e outros jornalistas ligaram os massacres perpetrados por mercenários a muitos locais de extracção mineira como uma tentativa dos russos de garantir as suas concessões.

Onde antes eram bem recebidos, agora os residentes das aldeias fogem quando os russos chegam.

“As pessoas ficavam relativamente felizes com a presença dos russos cerca de dois a três anos atrás,” disse Caniglia. “Mas agora elas sabem que tipo de coisas estão a acontecer.”

O Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação da Acção Humanitária estima que 3,1 milhões de pessoas — mais de 60% da população da RCA — precisam de ajuda de emergência. O número de pessoas deslocadas internamente aumentou para um recorde de 722.000 e outras 733.000 procuraram refúgio em outros países. 

Estes resultados depois de mais de quatro anos de envolvimento russo na RCA podem servir como alerta para outros países africanos que estão a pensar na possibilidade de usar os seus mercenários, disse Caniglia.

“Mas não é o que está a acontecer,” disse. Alguns países da região do Sahel estão a dar sinais da sua abertura para receber forças russas apesar do claro registo que eles têm de causar instabilidade. Observadores estão surpresos com o facto de que estes países não estão a aprender das lições da RCA sobre o perigo de entrar em parceria com o Grupo Wagner e com a Rússia. 

“O que está a acontecer na RCA é muito mau, não apenas em termos de níveis de influência que os actores não estatais russos têm sobre o governo da RCA, mas também em termos de violações de direitos humanos e outras situações de desestabilização da segurança. Mas a mensagem não está a chegar. Simplesmente não está a ser entendida,” disse Caniglia.  

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