Uma Força Reformulada

Após Anos De Guerra Civil E De Reconstrução, As Forças Armadas Da Libéria Estão A Deixar A Sua Marca Na África Ocidental E Não Só

Quando oito piratas atacaram os navios de pesca Aliman e Shenghai-2, ao largo da costa da Serra Leoa, talvez pensassem que iriam raptar os membros da tripulação e extorquir resgates para obterem um bom pagamento. Talvez pensassem que um ou ambos os barcos serviriam para as suas actividades criminosas em curso.

O que eles não sabiam é que estavam prestes a navegar para as mandíbulas da “Operação Baleia Assassina,” enquanto a Guarda Costeira Nacional da Libéria (LCG) esperava a sul. A Marinha da Serra Leoa contactou a Libéria, que assistiu à entrada do Shenghai-2 capturado nas suas águas territoriais. Quando o fez, as autoridades da guarda costeira seguiram-no, abordaram-no, resgataram 23 membros da tripulação e prenderam dois piratas nigerianos. Seis membros da tripulação eram chineses; os restantes eram serra-leoninos.

“A LCG, embora mais pequena em termos de força e disposição, tem sido uma componente muito robusta das AFL,” o Major-General Prince C. Johnson III, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da Libéria, disse à ADF por e-mail. “A LCG contribuiu imensamente para o desenvolvimento económico nacional, através da condução segura das nossas águas territoriais por meio de detenção e dissuasão. Proporciona também um ambiente propício à prosperidade do nosso sector das pescas e à segurança dos nossos pescadores artesanais. A LCG fez cumprir a lei contra o tráfico, tanto na água como em terra.”

A Operação Baleia Assassina, com a duração de 28 horas, é mais um marco positivo num percurso de anos para as AFL. A força estava em desordem após duas guerras civis sucessivas. Consequentemente, foi dissolvida. Os esforços para reconstituir as AFL começaram em 2006 e, quatro anos depois, a Libéria tinha um novo exército. Desde então, distinguiu-se em operações internacionais de manutenção da paz, apoiou a resposta a uma pandemia mortal do Ébola e restabeleceu a sua guarda costeira. Mantém uma forte relação bilateral com a Guarda Nacional do Exército de Michigan ao abrigo do Programa de Parceria Estadual dos EUA. Actualmente, está a trabalhar com conselheiros nigerianos para criar uma ala aérea.

A LCG é apenas um ponto de orgulho nos esforços para reconstruir as AFL como uma instituição de confiança, que protege a população e respeita a autoridade civil. Fazer isso a partir do zero não é tarefa fácil, mas as AFL estão a mostrar que é possível.

Um combatente da milícia governamental grita depois de disparar contra as tropas rebeldes, em Julho de 2003, numa ponte em Monróvia, durante a segunda guerra civil do país. GETTY IMAGES

PROGRAMA DE REINICIALIZAÇÃO MILITAR

As duas guerras civis da Libéria, a primeira das quais começou em 1989, deslocaram quase um terço da população do país e mataram cerca de 250.000 pessoas. Muitos membros das AFL foram acusados de crimes de guerra, o que destruiu a confiança do público nas forças armadas. O país também estava inundado de armas, munições e combatentes rebeldes dos países vizinhos.

A Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, o Governo de Transição da Libéria, as Nações Unidas e os Estados Unidos trabalharam em conjunto num ambicioso programa de reforma do sector da segurança para reconstruir as forças militares e policiais do país e para desarmar e desmobilizar os combatentes. As autoridades concordaram que, para restabelecer a confiança do público nas forças de segurança, as forças armadas teriam de ser desmanteladas e completamente reconstruídas.

Todos os soldados que partiam recebiam uma indemnização e os potenciais novos membros tinham de ser examinados e cumprir uma lista de requisitos. Por exemplo, o pessoal alistado tinha de ter concluído o ensino secundário e os oficiais tinham de possuir o nível de licenciatura. Os novos soldados também tinham de cumprir as normas físicas e médicas e ser aprovados por um Comité de Pessoal Conjunto. Esta direcção afixava as fotografias dos potenciais recrutas nas aldeias, cidades e jornais para ver se algum civil tinha dúvidas, preocupações ou informações sobre o seu comportamento anterior. O processo de controlo extrajudicial não conduziu a acções judiciais.

Johnson disse à ADF que o esforço “proporcionou a plataforma para que a população em geral acreditasse e confiasse no processo que deu origem às novas AFL. Os cidadãos sabiam que as AFL que estavam a ser estruturadas seriam livres de pessoas ligadas a facções beligerantes durante as crises civis e [aqueles] que cometeram violações de direitos humanos e outros actos ilegais não fariam parte das AFL.”

Um soldado liberiano testa o seu transceptor durante uma aula de familiarização com o rádio em Camp Ware, Libéria, em Setembro
de 2013. FORÇA AÉREA DOS EUA

PAGAR UMA DÍVIDA DE PAZ

Ao sair da sua primeira guerra civil, que começou em 1989, a Libéria tornou-se a primeira nação da África Ocidental a acolher uma missão de manutenção da paz em 1993, quando a Missão de Observação das Nações Unidas na Libéria foi criada para apoiar a implementação de um acordo de paz. A missão terminou em 1997. Menos de dois anos depois, a guerra civil rebentou de novo e durou até 2003. Nessa altura, foi criada outra missão de manutenção da paz, a Missão das Nações Unidas na Libéria (UNMIL), que durou até 2018.

O renascimento das AFL ocorreu em simultâneo com a UNMIL, visto que as novas forças armadas foram formadas entre 2006 e 2010. Cerca de três anos após o fim do programa de reconstrução, a Libéria começou a participar em operações multinacionais de manutenção da paz. A primeira foi em Junho de 2013, com a Missão Internacional de Apoio ao Mali, liderada por África, que rapidamente transitou para a Missão Multidimensional Integrada de Estabilização das Nações Unidas no Mali.

Até 31 de Maio de 2023, a Libéria contribuía com 169 soldados para as missões de manutenção da paz da ONU em todo o mundo. A participação da Libéria na manutenção da paz até meados de 2023 consistiu em efectivos espalhados pela República Democrática do Congo, Mali, Sudão do Sul e Abyei, uma pequena zona fronteiriça contestada entre o Sudão do Sul e o Sudão. A grande maioria dos soldados de manutenção da paz liberianos — 96% — serviu no Mali.

“A Libéria é um exemplo do impacto tangível que a manutenção da paz tem nos países afectados por conflitos,” afirmou o Subsecretário-Geral das Nações Unidas para as Operações de Paz, Jean-Pierre Lacroix, em Novembro de 2022. “Durante várias décadas, acolheu operações de manutenção da paz na sequência de uma guerra civil. … Hoje, a Libéria, por sua vez, envia ‘Capacetes Azuis’ para ajudar outros países a percorrer o difícil caminho entre o conflito e a paz.”

ORDEM EM CASA

Apenas alguns anos depois de ter recriado e relançado as suas novas forças armadas com milhares de efectivos a menos, a Libéria teve de enfrentar um novo desafio: um surto multinacional de Ébola que matou mais de 11.000 pessoas, das quais mais de 4.800 eram liberianos.

Pensa-se que a pandemia teve origem na Guiné antes de se propagar principalmente para Libéria e Serra Leoa. O caos que se seguiu teria sido um grande desafio para qualquer exército, e muito pior para um novo.

“Foi uma experiência muito má para o nosso país,” o Coronel Roland T. Bai Murphy, assistente militar do Chefe do Estado-Maior das AFL, disse num episódio de Agosto de 2019 do podcast War Room. “Tínhamos acabado de recuperar de uma crise civil, estávamos a tentar construir a nossa economia, o nosso sector da saúde e o nosso sector da educação. E pimba! O Ébola chegou em 2013, e em 2014 tornou-se pior.”

As AFL começaram por tomar medidas para proteger as tropas e as suas famílias a pedido do governo, disse Murphy. À medida que o vírus se propagava, os soldados tiveram “de enviar forças de intervenção para todo o país para controlar o afluxo de pessoas da zona rural para Monróvia. E as coisas continuaram a piorar. Duas comunidades ficaram tão infectadas com o vírus que fomos obrigados a pô-las em quarentena, por ordem do governo, e tivemos de o fazer. Não foi algo agradável de fazer, mas tínhamos de o fazer para proteger a população em geral.”

Quando as forças americanas chegaram à Libéria para ajudar a combater a pandemia, o pessoal das AFL ajudou a construir unidades de tratamento do Ébola para tratar os doentes. Este trabalho colocou o novo exército na vanguarda das operações civis-militares durante uma crise grave.

Soldados liberianos da 1.ª Companhia de Engenharia montam
tendas em Tubmanburg, onde foi construído um centro de tratamento do Ébola em Outubro de 2014. GETTY IMAGES

UM REGRESSO AOS CÉUS

Apesar de todas as conquistas alcançadas nos últimos 13 anos, desde que as novas AFL foram formadas, há um domínio que ainda precisa de ser desenvolvido: a componente aérea. Para iniciar o processo de construção de uma nova ala aérea, Johnson visitou a Nigéria em meados de 2022 e foi-lhe assegurado pelo então Chefe do Estado-Maior da Força Aérea Nigeriana, Marechal do Ar, Oladayo Amao, que o seu país ajudaria no esforço.

Amao comprometeu-se a formar pilotos liberianos e convidou as AFL a aproveitarem as escolas de formação técnica da Força Aérea Nigeriana para cursos de apoio em terra e de controlo do tráfego aéreo, de acordo com o Ministério da Defesa Nacional da Libéria.

A Nigéria também avaliou as instalações aéreas da Libéria para ajudar a planear o caminho a seguir. Em Novembro de 2022, um contingente nigeriano, liderado pelo Vice-Marechal do Ar Francis Edosa, visitou o Aeroporto James Spriggs Payne e o Aeroporto Internacional Roberts e falou com as autoridades da aviação da Libéria. “A intenção da visita é avaliar e ver se estamos a apontar na direcção certa e, com o tempo, as coisas que documentámos, como fazer estimativas, dar-nos-ão uma ideia sobre como avançar com o processo,” disse Edosa, de acordo com o Front Page Africa.

Johnson disse ao Front Page Africa que ainda é muito cedo para definir um calendário para a formação da ala aérea.

“As Forças Armadas da Libéria tinham aviões, mas, devido à guerra civil, nós próprios os destruímos,” disse à agência noticiosa. “O objectivo estratégico é cumprir com um documento constitucional — a Lei da Defesa Nacional de 2008 — que diz que as AFL precisam de três ramos — o exército, a Guarda Costeira da Libéria e as alas aéreas.”

Para além do requisito constitucional, é necessária uma ala aérea para apoiar as autoridades civis em tarefas como o transporte de recenseadores para zonas remotas, disse.

“A ala aérea das AFL é uma componente integral das AFL. As suas principais funções são a mobilidade aérea, o reconhecimento e as missões de busca e salvamento,” disse Johnson à ADF. “Desde a activação da 23.ª Brigada de Infantaria e, posteriormente, da LCG, a discussão sobre a activação da ala aérea tem estado em curso na hierarquia das AFL e do Ministério da Defesa Nacional e dos parceiros e aliados estrangeiros.”

Johnson disse que a antiga ala aérea das AFL utilizava três aviões ligeiros Cessna U-17C e aviões DHC-4 Caribou e IAI Arava renovados. Efectuou operações de reconhecimento e de busca e salvamento, utilizando pistas de aterragem geridas e mantidas por comunidades remotas.

“Estas pistas de aterragem ainda estão disponíveis, mas requerem um certo nível de renovação,” afirmou. “O mau estado de muitas das estradas e pontes da Libéria tem um impacto negativo no país. Durante uma emergência, isso cria um desafio para as AFL e outras organizações responderem.”

O ideal seria dispor de aviões ligeiros de transporte utilitário de asa fixa, como o Dornier DO 228, e de aviões ligeiros de reconhecimento, como o Embraer EMB 314 A-29 Super Tucano, disse. Estas aeronaves podem efectuar operações em terra e no mar.

“Outra vantagem da activação da ala aérea é a inserção de tropas e logística em zonas de difícil acesso, a tempo de responder a ataques terroristas ou ao banditismo armado,” disse. “A lentidão na resposta a estes incidentes pode custar caro à segurança nacional.”

Um soldado das Forças Armadas da Libéria participa no Dia das Forças Armadas em Monróvia, em Fevereiro de 2022. CAPITÃO JOE LEGROS/GUARDA NACIONAL DO EXÉRCITO DOS EUA

OLHANDO PARA O FUTURO

Os actuais dirigentes das AFL estão presentes desde o início dos esforços de reconstrução. Murphy, que foi o primeiro oficial superior das AFL a ser admitido na Escola de Guerra do Exército dos EUA, encontrava-se entre os recrutas do segundo grupo das novas AFL. Johnson e a Brigadeiro-General Geraldine George encontravam-se entre os primeiros membros. George foi a primeira mulher general das AFL e é actualmente a primeira mulher vice-Chefe do Estado-Maior. Incentivou as mulheres liberianas a considerarem uma carreira nas AFL.

Há alguns anos, um antigo embaixador dos Estados Unidos sugeriu uma alcunha para as novas AFL: “Força do Bem.” Pegou. Actualmente, as autoridades liberianas vêem o nome “como uma marca para o povo liberiano, reconstruindo e recuperando a confiança dos parceiros nacionais e internacionais,” disse Johnson à NewsAfrica em 2021.

Murphy manifestou um optimismo semelhante em relação ao futuro das AFL no podcast de 2019. “Penso que o que vamos procurar agora, nos próximos cinco anos, é ter uma força suficientemente robusta para responder às questões nacionais e regionais, ter uma força capaz de servir de construtora da nação e de implementar a paz, sempre.”  

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