Uma Rastejante Ameaça à Saúde

As Picadas De Serpentes Mutilam E Matam Milhares De Pessoas Anualmente; Tratar Das Vítimas Pode Ser Dispendioso E Difícil

EQUIPA DA ADF

Os chefes de Estado estão acostumados a dar as boas vindas aos visitantes. Eles entretêm oficiais estrangeiros com frequência, estendendo tapetes vermelhos e reunindo guardas de honra militar adornados nos seus mais sofisticados uniformes. 

Mas nem todos os visitantes vêm com uma comitiva oficial, muito menos um convite. Na verdade, um par de visitantes não anunciados do Presidente da Libéria, George Weah, em 2019, causou uma grande agitação.

Duas cobras pretas infiltraram-se no edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Libéria através de uma grelha no tecto e por detrás da mesa da segurança no primeiro andar. Um vídeo mostra uma cobra, de espécie desconhecida, a torcer e contorcer-se onde o tecto se encontra com a parede enquanto um grupo de observadores conversava de forma entusiasmada. O presidente da Libéria trabalha no edifício daquele ministério desde que o fogo destruiu a Mansão Executiva, em 2006.

O assessor de imprensa, Smith Toby, disse, na altura, que se tinha ordenado a todos os funcionários para permanecerem longe por alguns dias para que se pudesse pulverizar o edifício de modo a acabar com as cobras.

Esta cobra cuspideira vermelha, acima, foi utilizada para treinar funcionários que trabalham com a vida selvagem durante o curso de prestação de primeiros socorros e remoção após a picada de cobra, da LEAD Ranger, que durou dois dias. LEAD RANGER

“O edifício existe há alguns anos e, [por causa do] sistema de drenagem, a possibilidade de ter coisas como cobras a rastejarem naquele edifício é maior,” disse Toby à BBC.

Ver uma cobra de qualquer que seja a espécie num edifício do governo tinha de ser assustador e preocupante, mas ninguém ficou ferido, e o presidente regressou com segurança para o seu gabinete. Mas para muitos no continente, encontros com cobras podem ter consequências mortais.

Um Problema de Saúde Escondido

Pwagrida Samson, de 19 anos de idade, foi o primeiro paciente do dia, no Snakebite Treatment and Research Hospital (Hospital de Tratamento e Pesquisas de Picadas de Cobra), em Kaltungo, na Nigéria, numa manhã de Agosto de 2020. Samson sofreu uma picada no pé esquerdo por uma víbora de tapete, uma cobra pequena, venenosa e comum naquela região. 

“Eu estava no campo e a caminhar para a casa de banho quando pisei numa cobra e ela picou-me,” disse Samson à PBS NewsHour através de um intérprete. “Agora tenho muitas dores no lugar da mordida da cobra.” 

O hospital de Kaltungo atende exclusivamente às vítimas de picada de cobra, e o caso de Samson é comum. O veneno de uma víbora de tapete impede a coagulação, o que pode causar sangramento até à morte de uma pessoa, caso não receba tratamento. Assim como muitas pessoas das zonas rurais, Samson começou a tratar a sua picada de cobra em casa, utilizando métodos tradicionais, que apenas fazem com que o tratamento leve mais tempo, podendo causar gravidade ou morte. Quando o sangramento continuou, ele viajou mais de 160 quilómetros para chegar ao hospital. Kaltungo é o único hospital do seu género na África Subsaariana e recebe muitos pacientes. Enquanto a PBS filmava, outras três vítimas de picada de serpente chegaram num intervalo de 30 minutos.

O hospital nem sempre tem o antiveneno de que precisa por causa de escassez de fundos, comunicou a PBS. Por vezes, os pacientes têm de comprar o seu próprio antiveneno numa farmácia privada.

A experiência de Samson repete-se em todo o continente ano após ano. O problema é tão abrangente que a Organização Mundial de Saúde (OMS), em Junho de 2017, reintegrou o envenenamento — causado por picada de serpente — na sua lista de doenças tropicais negligenciadas juntamente com o chikungunya, a febre de dengue, a lepra, a raiva, entre outras. A acção é importante porque “acrescenta ímpeto no desenvolvimento de antiveneno e motiva a probabilidade de haver fundos de investimento para a prevenção de picada de cobra e iniciativas de acesso ao tratamento,” afirmou a OMS.

Existem mais de 3.000 espécies de serpentes no mundo e cerca de 20% delas são venenosas. Contudo, apenas 7% são consideradas “importantes para a medicina” por causa do prejuízo que o seu veneno causa, de acordo com a OMS. 

A picada da mamba-negra já foi chamada de “beijo da morte” e é considerada a cobra mais perigosa do continente. Carrega um veneno de uma neurotoxina poderosa e habita nas savanas subsaarianas, em encostas rochosas e nas florestas. ISTOCK

Mesmo assim, a África abriga centenas de espécies de serpentes e um número significativo de espécies venenosas, incluindo algumas das mais perigosas do planeta. Por exemplo, a mamba-negra provavelmente é a serpente mais assustadora de África. Mede em média 2,5 metros de comprimento mas pode crescer até mais de 4 metros. Pode mover-se a uma velocidade de 20 quilómetros por hora e é altamente agressiva quando ameaçada ou encurralada. A pele da cobra é cinzento-acastanhada, mas recebe o seu nome por causa da parte interna da boca que fica visível quando abre as suas mandíbulas para atacar.

O veneno neurotóxico da mamba-negra desliga o sistema nervoso da sua presa causando paralisia. Duas gotas são suficientes para matar um humano adulto e, sem antiveneno, a morte pode chegar em apenas algumas horas.

A mamba-negra é, sem dúvidas, uma das mais perigosas cobras venenosas de África. A lista mortal inclui o boomslang, a biúta, a mamba verde, a víbora do Gabão e a cobra do Cabo –– apenas algumas das várias espécies de cobras do continente.

Com um conjunto de cobras perigosas espalhadas pelo continente, as picadas de cobra são uma preocupação séria de saúde para os africanos. A OMS estima que a nível global 5 milhões de pessoas são picadas por serpentes a cada ano, resultando em 2,7 milhões de envenenamentos. Destes, entre 81.000 e 138.000 morrem anualmente. Outras 400.000 pessoas necessitam de amputação ou ficam com alguma deficiência permanente. Muitas outras picadas de cobra não são comunicadas. 

Os números são igualmente sérios em África. A OMS estima que até 20.000 pessoas por ano morrem vítimas de picadas de cobra somente na África Subsaariana, um número que é quase certo de que não é comunicado. Mesmo com as estimativas mais conservadoras, as picadas de cobra matam muito mais pessoas num ano do que o vírus mortal do Ébola matou em África desde o início da pandemia da África Ocidental de 2014.

Johan Marais, PCA do African Snakebite Institute, demonstra como o veneno de uma biúta é extraído através da “ordenhação.” Cada ordenhação produz uma pequena quantidade de veneno, mas várias ampolas processadas são necessárias para um tratamento eficaz de picada de cobra. LEAD RANGER

A maior parte das cobras, sejam venenosas ou inofensivas, procura evitar o contacto com as pessoas. Elas fogem em vez de atacar, a menos que sejam pisadas, tratadas de forma indevida ou quando estão a defender-se de uma pessoa que tenta matá-las como uma peste.

Naturalmente, a maior parte das pessoas encontra cobras em ambientes como as zonas rurais ou em florestas remotas. Isso faz com que os cuidados eficazes para as vítimas de picadas de cobra seja muito complicados, porque depois de uma picada de uma cobra venenosa, o tempo é essencial. As vítimas devem imediatamente procurar cuidados médicos profissionais –– não de curandeiros –– para que possam iniciar o tratamento antiveneno adequado. Tais tratamentos são a única esperança para os que sofrem uma picada da mamba-negra e de outras cobras mais venenosas.

O Desafio do Antiveneno

O antiveneno é a forma mais eficaz para tratar aqueles que sofreram uma picada de cobra venenosa. Muitas vezes, é o único tratamento que pode impedir a morte. Contudo, a produção e a disponibilidade podem ser um desafio, especialmente para os países subdesenvolvidos com infra-estruturas de saúde limitadas. Para além disso, é dispendioso.

Para produzir antiveneno, um especialista em serpentes deve “ordenhar” o veneno de uma cobra. Isso exige o manuseamento precário da serpente mortal enquanto se obriga a que esta abra a sua boca e morda uma membrana plástica que cobre um recipiente de vidro. O manuseador suavemente pressiona a parte de trás da cabeça para obrigar que o veneno goteje para dentro do recipiente de vidro. O doloroso processo de ordenhar o veneno de uma cobra produz uma pequena quantidade de toxina. Por exemplo, foram necessários três anos e 69.000 ordenhações para produzir 1 caneca de veneno de uma espécie de cobra norte americana, de acordo com a ZME Science. Mas qualquer pessoa que for picada por uma serpente mortal precisará de várias ampolas de antiveneno que condiz com a cobra e a sua região geográfica.

Quando o veneno é extraído, é sujeito a um processo que existe há mais de 100 anos. O veneno é secado por congelamento em temperaturas abaixo de 20 graus Celsius e rotulado com o nome da espécie da cobra e a origem geográfica. A partir daí, o veneno é diluído e injectado em animais — maior parte deles cavalos — e extraído em sangue semanas mais tarde, depois de os anticorpos terem formado e se misturado com o veneno. 

O plasma é extraído do sangue e tratado de modo a isolar os agentes activos. Depois, as amostras são convertidas em pó ou concentrado líquido, congelado e enviado para os hospitais e centros de tratamento, de acordo com a ZME Science.

Apesar deste processo, Johan Marais, PCA do African Snakebite Institute (ASI), na África do Sul, disse que a escassez não é realmente o maior problema, quando se trata de antiveneno. “O problema é o custo do antiveneno assim como as instalações de refrigeração para armazená-lo bem como a perícia do uso do mesmo,” disse à ADF via e-mail. “Os médicos precisam de formação para administrar adequadamente o antiveneno.”

Marais disse que uma ampola de antiveneno pode custar até 1.736 rands sul-africanos, o equivalente a aproximadamente 105 dólares. Isso significa que o tratamento para uma picada pode precisar de entre 630 dólares e 1.575 dólares somente para o antiveneno. O ASI não produz antiveneno, mas promove e vende soros produzidos pelos Produtores de Vacinas da África do Sul (SAVP), uma subsidiária do Serviço Nacional de Laboratórios de Saúde do país. SAVP é o único produtor de antiveneno na África do Sul.

Algumas estimativas colocam os números de ampolas necessárias para tratar as picadas –– e o custo dessas ampolas –– em números muito elevados, com algumas picadas a precisarem de 20 a 25 ampolas, em taxas de até 2.200 dólares cada, comunicou a ZME Science. 

A biúta é tão comum que é responsável pela maioria de mortes do continente. Ela habita em qualquer lugar, excepto na região do Sahara, e o seu veneno citotóxico destrói os tecidos a nível celular. ISTOCK

A Iniciativa Global para Picada de Cobra, sediada na Austrália, desenvolveu um programa chamado AntivenomAID, que visa desenvolver “antivenenos seguros, eficazes e baratos.” O projecto irá utilizar parcerias do sector privado em que cientistas, clínicos e fabricantes desenvolvem um antiveneno eficaz contra a maior parte das serpentes “importantes para a medicina” da África Subsaariana, melhorando assim a qualidade da vida entre as populações desfavorecidas de zonas rurais e em comunidades agrícolas.

O AntivenomAID procura estabelecer marcos antivenenos e proteger os mercados contra a presença de produtos não eficazes e abaixo do padrão.

Os desafios que cercam a produção, distribuição e controlo de qualidade do antiveneno são a razão pela qual as campanhas de educação cívica e um senso comum apurado sejam de grande importância para o combate ao problema de picada de cobra.

As Campanhas de Educação Cívica são Fundamentais

O grupo de Marais focaliza-se nas campanhas de educação cívica e sensibilização sobre cobras. A página da internet da ASI está cheia de pósteres gratuitos que se podem baixar e dicas de como identificar cobras, evitar picadas de cobra e tratar de vítimas de picadas de cobra. Marais e o seu pessoal formam outros em matérias de sensibilização sobre cobras, primeiros socorros e manuseamento adequado de cobras venenosas. O ASI formou médicos, fiscais de vida selvagem privados, veterinários, empresas de energia solar e eólica bem como pessoal de segurança para empresas mineiras e de construção civil que trabalham em todo o continente, desde a Guiné ao Quénia e desde Angola a Moçambique.

Entre os clientes de Marais encontra-se a LEAD Ranger, uma instituição sem fins lucrativos provedora de formação, sediada no Quénia, que se focaliza em escuteiros e fiscais empregados por organizações não-governamentais e entidades privadas, tais como a Wildlife Works, Mara Elephant Project e outros, disse Boris Vos, director de operações da LEAD Ranger. 

Primeiros Socorros em Caso de Picadas de Cobra é um módulo do Curso de Instrução para Fiscais Salva-Vidas, ministrado pela organização, disse Vos à ADF via e-mail. “Abordamos questões relacionadas com medidas de prevenção para picadas de cobra, no que diz respeito a acampamentos no terreno e comunidades rurais, reconhecimento de cobra e tratamento imediato em caso de picada de cobra. O princípio subjacente em relação ao tratamento é de que o papel primário do fiscal é de evitar outras picadas, estabilizar o paciente e evacuar para receber cuidados médicos definitivos o mais cedo possível.”

Como os fiscais operam em zonas rurais, eles são, muitas vezes, o primeiro ponto de contacto se uma cobra pica alguém, então, treiná-los a manusear as picadas de forma adequada é essencial.

Uma parte importante da instrução aborda a anatomia, a psicologia e a patologia da picada de cobra. “Achamos que isto é crucial ao explicar por que os métodos tradicionais, também no que diz respeito à tão famosa feitiçaria, não são eficazes,” disse Vos. “Existe uma quantidade incrível de desinformação e conceitos errados sobre cobras e picadas de cobra, especialmente nas zonas rurais. Para combater isso, os fiscais precisam de ser equipados com o conhecimento subjacente.”

Algumas forças militares nacionais do continente também incorporam, na formação do soldado, instruções sobre como evitar e como tratar a picada de cobra.

Picada de Cobra e Soldados

Os soldados africanos treinam e servem em alguns dos ambientes mais desafiantes da face da terra, quer seja no deserto do norte de Mali ou nas florestas densas da República Democrática do Congo. Este serviço, que inclui treino nacional, missões internacionais de manutenção da paz e mais, inevitavelmente colocará os soldados em contacto com todas as formas de vida selvagem, incluindo serpentes.

A formação básica militar das Forças de Defesa do Malawi (FDM) contém uma variedade de instruções sobre primeiros socorros que inclui informação sobre cobras e picadas de cobra. “Ensina-se sobre todos os tipos de cobras venenosas, locais das picadas, o seu habitat, reacções dos venenos e remédios ou medidas de mitigação,” Capitão Wilned Kalizgamangwere Chawinga, do Gabinete de Informação Pública das FDM, disse à ADF via e-mail.

“Quando se embarca no exercício militar em qualquer mato, os instrutores transmitem informações sobre segurança a todos os soldados envolvidos,” disse Chawinga. “Médicos que transportam o antiveneno e outros medicamentos seguem junto com cada pelotão designado para uma operação específica.”

Este processo também é seguido quando os soldados das FDM participam em missões de manutenção da paz, e um fornecimento de antiveneno é armazenado no hospital de nível um do batalhão, disse Chawinga. Mesmo assim, os soldados raramente são picados.

“O segredo está em saber nunca causar distúrbio ao habitat delas,” disse Chawinga. “Uma vez na floresta, e depois de aperceber-se de que você se encontra no território de animais selvagens muito perigosos ou cobras, a melhor forma de agir é mudar de localização para outras áreas.”  

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