Um Elevado Preço A Pagar

A Crise Da Covid-19 Expôs O Verdadeiro Custo Da Dívida Da África Para Com A China

EQUIPA DA ADF

Um visitante de Lusaka, a cidade capital da Zâmbia, não precisa de ir longe para ver o impacto da China.

Os passageiros chegam ao Aeroporto Internacional Kenneth Kaunda, com paredes de vidro, que custou 100 milhões de dólares. Passam pelas equipas de construção que estão a construir a faixa de rodagem da estrada Lusaka-Ndola, de 1,2 bilhões de dólares. Os amantes de desporto podem assistir a um jogo no Estádio Nacional dos Heróis, com capacidade para 60.000 pessoas, que custou 94 milhões de dólares. E quando as luzes são acesas, a corrente eléctrica é gerada pela estação hidroeléctrica e pela Barragem de Kariba, no rio Zambeze.

Todos estes projectos foram financiados por empréstimos chineses e construídos por empreiteiros chineses.

É impossível não se aperceber desses projectos. O que é mais difícil ver é o seu impacto na economia do país. A dívida externa da Zâmbia está estimada em 11,2 bilhões de dólares. Cerca da metade desse valor é devida à China. Anualmente, 40% a 50% das receitas internas da Zâmbia destinam-se ao serviço da dívida, o que significa que depois de serem pagos os trabalhadores do sector público, uma parte do orçamento é deixada para financiar necessidades tais como educação e saúde.

A empresa China Road and Bridge Corp. construiu a Linha Férrea de Bitola Padrão, no Quénia, com financiamento do governo chinês. REUTERS

Quando os observadores olham com atenção vêem rachas na fachada. Nalguns casos, a qualidade da construção é baixa. Em 2011, a Estrada Lusaka-Chirundu, feita por chineses, ficou parcialmente destruída pelas águas das chuvas. Em outros casos, tais como os dois estádios desportivos reluzentes da Zâmbia, os projectos foram apelidados de “elefantes brancos.” Isso significa que possuem uma aparência impressionante, mas não são práticos nem geram muitos rendimentos.

Finalmente, existe a opacidade dos contratos entre a China e a Zâmbia. Poucos conhecem os termos dos acordos ou quem se beneficia deles.

“Os empréstimos chineses, muitas vezes, nem sequer vão para as contas zambianas,” antigo Ministro de Informação e Radiodifusão da Zâmbia, Chishimba Kambwili, disse à Deutsche Welle. “Eles escolhem o empreiteiro da China, o empreiteiro é pago na China, mas fica reflectido nos nossos livros como um empréstimo chinês.”

Embora a dívida da Zâmbia esteja entre as mais sérias do continente, outros países africanos estão a prestar a devida atenção. Eles aperceberam-se de que a armadilha da enorme dívida externa pode estar à sua espera se não mudarem de rumo. 

“O resto dos países africanos pode aprender das relações Zâmbia-China,” académico zambiano, Emmanuel Matambo, parte da Rede de Vozes do Sul para a Construção da Paz no Woodrow Wilson Center, disse à ADF. “O facto é que o desembolso não qualificado da dívida da China para as economias africanas fracas pode ter enormes implicações sobre a democracia africana.”

Trabalhadores chineses da construção civil parados no local da construção do arranha-céu Torre Icónica, de 90 andares, que custa 1,2 bilhões de dólares, em Cairo, Egipto. REUTERS

A IMAGEM DA DÍVIDA

As modernas ligações políticas e de negócios da China com a África datam desde a década de 1960. Na altura, o Presidente do Partido Comunista Chinês, Mao Zedong, procurou aprofundar laços com vários países africanos devido a um posicionamento anticolonial comum. Entre os primeiros grandes projectos de infra-estrutura estava a Linha Férrea de Tanzam que ligava a Zâmbia à costa tanzaniana.

Desde o início da década de 2000, muitos países africanos, em particular aqueles que possuem riquezas em minérios, escolheram fazer acordos com empresas estatais chinesas para a construção de estradas, pontes, portos, aeroportos e outros tipos de infra-estruturas.

A atractividade da dívida chinesa é óbvia. Os empréstimos têm poucos condicionalismos; não exigem transparência, reformas económicas ou padrões de direitos humanos. Em alguns casos bem conhecidos, oficiais de alta patente receberam pagamentos em troca da autorização dos empréstimos.

Líderes de países africanos, muitas vezes, insistem que não têm outra opção senão entrarem em parceria com a China, visto que é tipicamente o único credor a oferecer-se para financiar algum projecto. Um estudo feito pelo Instituto Kiel para a Economia Mundial concluiu que a China empresta mais dinheiro à África do que o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os países do Clube de Paris juntos.

Zambian President Edgar Lungu greets Chinese workers from Aviation Industry Corp. of China during a visit to a major road project in Lusaka. AFP/GETTY IMAGES

“Quando as pessoas reclamam de empréstimos chineses, não é como se a maior parte dos países africanos tivesse uma infinidade de opções,” Gyude Moore, antigo Ministro das Obras Públicas da Libéria e parceiro sénior do Centro de Desenvolvimento Global, disse à Bloomberg.

Hoje, a China é o maior credor do continente africano e detém uma dívida de 145 bilhões de dólares. De acordo com o Instituto de Pesquisas China-África, da Universidade de Johns Hopkins, Angola é que recebeu mais empréstimos chineses, entre 2000 e 2017, no valor de 43 bilhões de dólares, seguida da Etiópia, no valor de 13,8 bilhões de dólares, Quénia, no valor de 8,9 bilhões de dólares, e Zâmbia, no valor de 8,6 bilhões de dólares.

COVID-19 E O ALÍVIO DA DÍVIDA

A pandemia da COVID-19 fez com que a economia do mundo ficasse quase paralisada. As economias africanas, muitas das quais dependem extremamente da extracção de minérios, turismo e agricultura, foram particularmente muito afectadas.

De acordo com o FMI, as economias da África Subsariana sofrerão um decréscimo de pelo menos 3% em 2020. Antes da pandemia, havia uma previsão de que haveria de experimentar um aumento de vários pontos percentuais.

À luz desta crise global, os pagamentos de dívidas, que antes pareciam possíveis de gerir, tornaram-se um transtorno. Os países africanos devem à China cerca de 8 bilhões de dólares em pagamentos em 2020, dos quais cerca de 3 bilhões de dólares correspondem aos juros. Vários países grandes gastam mais nos pagamentos de juros de dívidas do que em cuidados de saúde.

“Mesmo que a pandemia da COVID-19 venha a passar, as suas consequências para os povos, as economias e o nosso planeta estarão connosco por muito tempo,” disse o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, durante uma cimeira virtual China-África.

A crise levou a um coro de solicitações para que a China e outros países credores oferecessem alívio de dívida para África. Já houve algum progresso. Em Abril de 2020, os países do G-20, do qual a China faz parte, comprometeram-se em suspender os reembolsos da dívida de 73 países mais pobres do mundo por pelo menos oito meses.

A China também fez concessões. Em Junho de 2020, concordou em perdoar empréstimos sem juros concedidos a países africanos. Contudo, observadores afirmam que os empréstimos sem juros representam apenas uma pequena fracção do portfólio total de empréstimos da China para África — apenas 5%, de acordo com o Instituto de Pesquisas China-África.

Apesar das demonstrações públicas de boa vontade e uma cimeira virtual com os líderes africanos, em Julho de 2020, a China resistiu aos apelos de alívio adicional da dívida. Observadores afirmam que o país prefere negociações individuais à restruturação da dívida em detrimento de qualquer espécie de plano de alívio abrangente.

“A atitude chinesa em relação a isso é, de antemão, bastante resistente,” Yun Sun, director do programa da China no Stimson Center, disse à Voz da América. “Isso não significa que a China não se envolverá, por exemplo, em renegociação ou reestruturação da dívida ou mesmo adiamento para oferecer um período de graça mais longo para que os países africanos paguem a sua dívida. Mas penso que um perdão da dívida na totalidade não faz parte das opções.” 

UMA VOZ DO PASSADO

Num discurso de 1987, na Organização da Unidade Africana, em Adis Abeba, Etiópia, o presidente burkinabe, Thomas Sankara, instou aos líderes a formarem uma “frente unida contra a dívida.” Sankara acreditava que a dívida era uma das formas mais rápidas de países relativamente jovens perderem a soberania. “A dívida é uma reconquista da África gerida de forma astuta que visa subjugar o seu crescimento e desenvolvimento através de regras estrangeiras,” disse a uma multidão, três meses antes do seu assassinato.

No meio da crise da COVID-19, muitos países do mundo estão a reexaminar o alerta de Sankara. À medida que os confinamentos obrigatórios terminam e as economias reabrem, os líderes tentarão equilibrar a necessidade do crescimento e desenvolvimento e o requisito urgente de proteger a saúde e o bem-estar dos cidadãos. As lições aprendidas da Zâmbia e outros países africanos mostram que a dívida externa é uma resposta a curto prazo que pode trazer consigo custos escondidos.  


DÍVIDA COMO UMA AMEAÇA À SEGURANÇA NACIONAL

O peso esmagador da dívida externa tem implicações em quase todas as facetas da vida dos países. E embora a economia seja afectada de forma mais directa, o fardo da dívida de um país e os projectos de infra-estruturas construídas por estrangeiros também podem pôr em perigo a segurança. 

INFRA-ESTRUTURAS NACIONAIS IMPORTANTES: Quando entidades estrangeiras emprestam dinheiro para financiar projectos, tais como portos, linhas férreas ou aeroportos, a própria infra-estrutura, muitas vezes, é usada como garantia para o empréstimo. No caso da China, a ameaça de levar a propriedade é uma das grandes preocupações. Vários projectos proeminentes, tais como o Porto de Djibouti e o Porto de Mombasa, assim como a Linha Férrea de Bitola Padrão, esses dois últimos do Quénia, correm supostamente o risco de serem confiscados devido a dívidas acumuladas. A China já fez isso em outras partes do mundo, incluindo na Sri Lanka, onde se apoderou de um porto. O controlo estrangeiro de infra-estruturas importantes ameaça a segurança de várias formas, como, por exemplo, limitar a possibilidade de um país de posicionar activos militares, comprometendo assim a sua capacidade de fazer a fiscalização das pessoas e dos bens que entram no país.

ESPIONAGEM: Empreiteiros chineses com fortes ligações com o Partido Comunista Chinês têm o histórico de usar projectos de desenvolvimento para recolherem informação. Em 2018, a China foi acusada de instalar dispositivos e programas de escuta para copiar secretamente informação de servidores de computadores da Sede da União Africana, em Adis Abeba, Etiópia. Um relatório da The Heritage Foundation concluiu que empresas chinesas construíram 186 edifícios governamentais em 14 redes de telecomunicações intra-governamentais sensíveis em África. Isso facilita a espionagem. “O governo chinês tem um longo histórico de todos os tipos de vigilância e espionagem a nível global,” Joshua Meservey, analista político sénior de África na The Heritage Foundation, disse à Voz da América. “Então, sabemos que este é o tipo de coisas que eles querem fazer, o tipo de coisas que têm a capacidade de fazer.”

RECURSOS NATURAIS: Os empréstimos chineses, às vezes, têm o suporte de garantias de acesso a produtos. Isto significa que se um país não estiver em condições de pagar em dinheiro, a China pode recuperar o seu dinheiro levando os recursos naturais do país devedor. Em África, um quarto de todos os empréstimos tem a garantia de recursos tais como petróleo, cobre, bauxite e cacau, de acordo com a empresa de consultoria Deloitte. A salvaguarda de recursos naturais está intimamente ligada à segurança nacional. Especialmente para riquezas em minérios e petróleo, que, muitas vezes, são utilizados para financiar despesas militares. 

INSTABILIDADE: A crise da dívida leva ao desemprego, inflação, cortes drásticos nas despesas do governo e carência de bens de consumo. A história mostra que a segurança nacional está intimamente ligada à segurança económica. “Desde a década perdida da América Latina, nos anos 1980, até à mais recente crise da Grécia, existem muitas recordações dolorosas daquilo que acontece quando os países não são capazes de fazer o serviço das suas dívidas,” escreveram o economista vencedor do Prémio Nobel, Joseph Stiglitz, e o Conselheiro-Sénior do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, Hamid Rashid. “Uma crise de dívida global hoje levará milhões de pessoas ao desemprego e promoverá a instabilidade e violência em todo o mundo.”

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