EQUIPA DA ADF
Durante os quatro séculos do seu reinado, o Império de Mali era conhecido no mundo pela sua fabulosa riqueza em ouro.
Aproximadamente 700 anos mais tarde, as áreas do antigo império ainda são ricas em depósitos daquele metal precioso. Agora a maior parte da mineração de pequena escala de ouro no Mali e em Burkina Faso — conhecida como mineração artesanal — é marcada por trabalho infantil perigoso e de exploração, condições de trabalho desumanas, poluição, perigos para a saúde e o flagelo do tráfico de seres humanos. Tudo isso está a acontecer numa região assolada por organizações extremistas violentas (OEVs) que consideram as minas não regulamentadas como maduras para a extorsão e uma fonte de rendimento para financiar as suas operações e recrutamento. A violência regional está a aumentar, e a instabilidade e os deslocamentos resultantes irão fazer com que essas minas fiquem vulneráveis ao aumento da exploração enquanto as OEVs se expandem para novas áreas e tentam dominar os mercados de ouro locais.
No ano passado, a COVID-19 misturou-se com a violência regional para produzir um aumento no tráfico de crianças, trabalho forçado e recrutamento no Mali, de acordo com um estudo do ano de 2020, feito pelo Grupo Temático de Protecção Mundial (Global Protection Cluster), dirigido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. O grupo é uma rede das organizações da ONU e organizações não-governamentais que protegem pessoas afectadas por crises humanitárias.
A COVID-19 alia-se a outros factores para encerrar escolas e age como um multiplicador da miséria no dia-a-dia de uma região já empobrecida e violenta.
O estudo descobriu 230 casos de recrutamento de crianças na primeira metade do ano, ultrapassando o total de 215 registados em todo o ano de 2019 e duplicando o número registado em 2018. As autoridades descobriram que cerca de 6.000 crianças — maioritariamente rapazes — trabalhavam exactamente em oito minas malianas. Enquanto os grupos terroristas armados lutam para controlar minas lucrativas locais, pode-se razoavelmente esperar que o tráfico de seres humanos aumente, mesmo na vizinha Burkina Faso.
A INDÚSTRIA COMUM DO OURO
As minas artesanais de ouro são comuns no Mali, em Burkina Faso e na África Subsaariana. Os seus grandes números são, muitas vezes, acompanhados com condições perigosas de trabalho, especialmente para as crianças. Tais minas, muitas vezes, encontram crianças com menos de 15 anos a trabalharem por longas horas, empunhando ferramentas pesadas como picaretas e levantando cargas perigosas nos seus corpos ainda em desenvolvimento. Os poços podem desabar e enterrar os trabalhadores ainda vivos.
As minas também apresentam perigos químicos e ambientais. Os mineiros, muitas vezes, acrescentam mercúrio no lodo para ajudar a formar uma amálgama com o ouro. Posteriormente, aquecem o produto resultante com maçaricos ou sobre as chamas para evaporar os produtos químicos, deixando de sobra o metal precioso. O mercúrio pode ser inalado e espalhado no ambiente ao redor, onde reage com bactérias contidas na água, plantas e sujidade, para formar metil mercúrio letal. A exposição a doses elevadas pode ser letal e pode danificar os sistemas nervoso, digestivo e imunitário e atrasar o desenvolvimento intelectual.
Uma pesquisa de 2018 de imagens de satélite descobriu cerca de 2.200 minas de ouro informais espalhadas por Burkina Faso, de acordo com uma reportagem da Reuters. A indústria do ouro artesanal naquele ponto e nos países vizinhos do Mali e da Nigéria possui um valor estimado combinado de 2 bilhões de dólares por ano. Enquanto as OEVs proliferam em Burkina Faso, um dos principais 10 produtores de ouro em África, elas acabarão por estar cada vez mais próximas das minas de ouro, onde se podem esconder, extorquir impostos e recrutar novos membros.
O tráfico de seres humanos e a exploração não são desenvolvimentos recentes nestas minas de ouro artesanais. Um relatório de Dezembro de 2011, da Human Rights Watch (HRW), indicou que o tráfico de crianças na África Ocidental em geral, e no Mali em particular, estava a aumentar. “A maior parte do tráfico é feita através de redes pequenas e informais, incluindo familiares e conhecidos,” comunicou a HRW.
“Para além do tráfico interno, existe o tráfico transfronteiriço entre o Mali e os seus países vizinhos.”
Muitas crianças que trabalham nas minas de ouro artesanais são imigrantes e algumas vivem e trabalham lá sem os seus pais. Isto intensifica a sua vulnerabilidade a mais tráfico e exploração.
O relatório da HRW examinou as condições que existiam antes da explosão da violência e instabilidade que começou em 2012 com a rebelião dos Tuaregues, no norte do Mali. Desde essa altura, a mesma alastrou-se para toda a região nas mãos de várias organizações extremistas e terroristas.
A violência continua a crescer. O Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS) comunicou, em Janeiro de 2021, que os 1.170 incidentes violentos observados em Burkina Faso, Mali e no oeste do Níger, em 2020, marcaram um aumento de 44% em comparação com 2019. A violência registou um firme aumento desde 2015, e dois grupos — a Frente de Libertação de Macina (FLM) e o Estado Islâmico do Grande Sahara (ISGS) — foram responsáveis por aproximadamente todos os ataques de 2020, que resultaram em 4.122 mortes, um aumento de 57% em comparação com 2019.
A violência do Sahel desalojou 1,7 milhões de pessoas, 1,1 milhões das quais se encontram em Burkina Faso, de acordo com o ACSS. Essa instabilidade poderá intensificar o tráfico de seres humanos.
“Quando se tem um grau de deslocamentos, então, haverá também um aumento de tráfico de seres humanos por causa da existência de muitas comunidades postas no olho da rua e que têm de descobrir como podem ganhar a vida, o que as deixa extremamente vulneráveis,” Dr. Daniel Eizenga, membro do órgão de pesquisas do ACSS, disse à ADF.
“O trabalho infantil e o tráfico de crianças são predominantes nesta região,” disse Eizenga, anotando a prática de longa data de enviar crianças para a Costa do Marfim para trabalharem nas machambas de cacau. “E isso acontecia antes do início das organizações extremistas violentas e da violência com a qual toda a região ficou desestabilizada.”
UMA FONTE LUCRATIVA PARA OS EXTREMISTAS
As minas de ouro artesanais operam fora do controlo e regulamentação do governo e, embora sejam menores em relação aos locais de exploração industrial, a sua produção pode ser significativa. Em 2018, as autoridades burquinabês visitaram 24 minas próximas do local onde os ataques extremistas tinham acontecido, noticiou a Reuters.
Eles estimaram que apenas aqueles poucos locais produziam 727 quilogramas de ouro por ano, avaliado em cerca de 34 milhões de dólares. O total dos locais artesanais somente em Burkina Faso é estimado em 15 a 20 toneladas métricas por ano, avaliadas entre 720 e 960 milhões de dólares.
As actividades das OEVs começaram a sair do Mali para Burkina Faso em 2017 e até 2019 tinham chegado até à parte oriental do país, disse Eizenga. Enquanto as OEVs proliferavam, elas forçavam o encerramento de escolas, afectando milhares de crianças. Algumas destas crianças provavelmente descobriram sozinhas o caminho para as minas, mas é provável que muitas delas sejam traficadas para as minas por vários grupos.
Identificar esses grupos, redes e fluxos de tráfico é um desafio. O ISGS e a FLM são dois grupos extremistas que são mais associados com as minas de ouro, mas o seu envolvimento directo no tráfico de seres humanos não está claro. O ISGS começou a avançar para zonas com minas de ouro há mais de um ano, disse Eizenga, em Fevereiro de 2021. O grupo, que apenas tem algumas centenas de militantes móveis, movimenta-se de uma mina para a outra, extorquindo impostos da comunidade. Eles não operam nem interrompem as minas por medo de perder a fonte de rendimentos, mas, algumas vezes, impedem que as autoridades governamentais interfiram nas minas.
Devido aos deslocamentos em massa das pessoas e o encerramento de escolas, “não é difícil imaginá-las a darem um outro passo do tráfico de crianças para as minas e potencialmente a tentarem utilizar isso como outra forma de aumentar o seu rendimento,” disse.
A FLM, que também é conhecida como Katiba Macina, aparenta estar a tentar expandir-se para o sudoeste de Burkina Faso, uma área que também tem muitas minas artesanais, com esperanças de dominar o mercado de ouro naquele ponto, disse Eizenga.
Ligar grupos específicos como o ISGS e a FLM ao tráfico de crianças ou outros nos locais de minas artesanais é difícil. Eizenga disse que nunca teve provas claras do envolvimento directo de qualquer um destes grupos. Mas concorda que mesmo que os grupos não estejam directamente envolvidos no tráfico, eles são, no mínimo, cumplicies porquese se beneficiam dos trabalhos daqueles que foram traficados.
RESOLVENDO O PROBLEMA
O tráfico de seres humanos na região do Sahel, incluindo Mali e Burkina Faso, é uma prática enraizada numa zona há muito conhecida pelas comunidades informais e pela falta de segurança e de capacidade dos agentes da lei. A explosão da violência extremista na região depois de 2012 acrescenta complicações a qualquer resposta. A região já tem várias forças multinacionais de segurança a operarem, como a missão de manutenção da paz das Nações Unidas no Mali, a Operação Barkhane, liderada pela França, e a Força Conjunta G5 do Sahel.
O desafio, disse Eizenga, é de garantir protecção contínua e segurança para as comunidades mineiras sem interrupção das economias que as minas fornecem aos residentes locais. “Este é um grande desafio quando se olha para a mineração artesanal, é como integrar esta forma de vida — as economias informais que existem à volta destas minas — sem interromper completamente a economia destas pequenas comunidades?”
Ganhar a confiança será uma componente essencial. Às vezes, as forças de segurança têm sido muito pesadas quando tentam desarraigar as OEVs das comunidades. Os residentes locais, que não fazem parte dos grupos violentos mas que foram obrigados a cooperar com eles, às vezes, são apanhados no meio.
Para ganhar a confiança será necessário primeiro garantir uma segurança contínua. Falando em termos gerais, as forças de combate ao terrorismo foram “tacticamente bem-sucedidas” em degradar as OEVs na região da fronteira tríplice de Liptako-Gourma, onde Burkina Faso, Mali e Níger se encontram, disse Eizenga. Para manter aquele território, será necessário uma mudança estratégica na forma como as forças interagem com as comunidades locais.
Manter uma presença significativa nas zonas mineiras pode incluir descobrir uma forma de destacar unidades policiais locais que estejam ligadas às forças militares para garantir uma reacção rápida às ameaças das OEVs, disse Eizenga.
A longo prazo, as autoridades governamentais terão de identificar e regular os locais de mineração artesanal de formas que isso não perturbe as vidas das comunidades que delas dependem.
Garantir segurança contínua irá ajudar a ganhar a confiança, disse. Depois, as autoridades podem utilizar esta confiança para identificar, registar e regular as minas de ouro de uma forma que acrescente legitimidade que irá afastar a exploração pelos extremistas.
“Isso tem o benefício acrescido de ser capaz de interromper as actividades ilícitas das organizações extremistas violentas e, dessa forma, estarão simultaneamente, a proteger essas comunidades a interromper as actividades das OEVs,” disse Eizenga. “E assim como com qualquer tipo de força insurgente, pode-se cortar-lhes os rendimentos, eventualmente isso coloca pressão nelas e, quando se coloca pressão nelas, isso faz com que seja difícil elas operarem, faz com que seja difícil recrutarem. Acrescentar esses desafios terá um efeito, em termos gerais, positivo.”