O Rosto do Mercenário Moderno
Uma Profissão Antiga Mudou, Suscitando Dúvidas Sobre Responsabilização e Eficácia
EQUIPA DA ADF
No romance de Frederick Forsyth, de 1974, “Os Cães da Guerra,” um grupo de mercenários infiltra-se numa pequena nação africana fictícia, contratados por um magnata ocidental que pretende depor o ditador do país para obter platina valiosa.
O romance, e a adaptação para o cinema em 1980, é uma história violenta que mostra um retrato estereotipado dos mercenários: cínicos, amorais, muito bem treinados, bem armados, determinados e fiéis a quem lhes paga.
No romance de Forsyth, o pequeno grupo de mercenários são veteranos de batalhas clandestinas, que fazem acordos obscuros, vendendo os seus serviços a benfeitores duvidosos.
O mercenário moderno tem mais tendência a trabalhar com grupos empresariais, por vezes, com ligações a governos, fazendo negócios com administrações legítimas para conter revoltas e terminar guerras civis.
Os mercenários são tão antigos como a própria guerra. Dizem que o Rei Xerxes I, da Pérsia, empregou guerreiros gregos em 484 A.C. Os mercenários são referidos em muitas guerras famosas, dos pastores das Ilhas Baleares que lutaram por Cartago durante as Guerras Púnicas contra Roma, aos soldados alemães, conhecidos como Hessianos, que combateram ao lado dos britânicos durante a Revolução Americana.
Os mercenários também têm raízes profundas na guerra africana. Dizem que o Faraó egípcio, Ramsés II, empregou mais de 10.000 mercenários no Século XIII AC. Estes guerreiros foram também determinantes nas guerras coloniais e durante a Guerra Fria.
O Major Michael “Mad Mike” Hoare, veterano do Exército Britânico durante a Segunda Guerra Mundial, foi considerado o mercenário mais conhecido a nível mundial. A pedido do Primeiro-Ministro do Congo, Moïse Tshombe, em 1964, lutou contra a rebelião dos Simba, apoiados pelos comunistas, de acordo com um obituário da BBC, de Fevereiro de 2020. Os seus homens ficaram conhecidos como “The Wild Geese” (Os Gansos Selvagens) e houve um filme baseado nos seus feitos.
Em 1981, a carreira de Hoare terminou de maneira humilhante, quando ele e 46 dos seus recrutas tentaram derrubar o governo socialista do Presidente France Albert René, nas Seicheles. Uma falha de um dos homens num aeroporto permitiu a descoberta de uma AK-47 desmontada. Numa tentativa de fuga, os mercenários sequestraram um avião da Air India, de volta para a África do Sul, noticiou a BBC. Um ano depois, Hoare e os seus homens foram julgados por sequestro. Hoare esteve preso durante 33 meses.
Tendo iniciado em 1961, o famoso mercenário francês Bob Denard liderou revoltas em Angola, no antigo Congo Belga, Benin, Zimbabwe (antiga Rodésia) e várias vezes nas Comores, de acordo com o The New York Times. Foi nesse minúsculo país insular, em Outubro de 1995, que as forças francesas irromperam pelo país para impedir o terceiro golpe, obrigando os fracos soldados grisalhos a marchar para fora das casernas nos arredores da capital, Moroni. Ele morreu em 2007.
Algumas encarnações mais modernas do “soldado da fortuna” são representadas por empresas militares privadas (EMPs). Estas empresas, por vezes, criadas por veteranos de exércitos nacionais, podem fornecer de tudo, desde logística e treino à força letal no campo de batalha.
São uma presença constante em África há pelo menos uma geração, vendendo os seus serviços em conflitos de grande envergadura em todo o continente. A sua utilização suscita constantes debates sobre responsabilização. As EMPs provenientes de outros países suscitam perguntas difíceis sobre motivações estrangeiras e exploração das nações africanas e dos respectivos recursos valiosos.
TIPOS DE GRUPOS ‘MERCENÁRIOS’
“Mercenário” é um termo normalmente aplicado a qualquer pessoa que trabalhe num contexto militar ou de segurança fora de uma instituição estatal, militar ou policial. No entanto, há distinções que devem ser tidas em consideração quando se analisam as pessoas contratadas para assumir funções reservadas habitualmente aos militares.
Eis algumas definições úteis:
Mercenário: Este termo aplica-se normalmente a pessoas que prestam serviços a causas ou forças de combate como trabalhadores independentes. Participam directamente em situações hostis, fazem-no para ganho próprio e por valores que excedem os que se pagam a combatentes nas forças armadas, de acordo com o direito humanitário internacional. Não são cidadãos nacionais ou residentes nos territórios controlados pelas partes envolvidas no conflito, nem são enviados por nações não participantes como membros das respectivas forças armadas.
A Convenção Internacional contra o Recrutamento, Uso, Financiamento e Treinamento de Mercenários, de 1989, proíbe o recrutamento e a utilização de mercenários. Trinta e sete países fazem parte do tratado, incluindo 10 nações africanas: Camarões, Guiné Equatorial, Guiné, Libéria, Líbia, Mali, Mauritânia, Senegal, Seicheles e Togo. Cinco outros países assinaram, mas não ratificaram o tratado: Angola, República Democrática do Congo, Marrocos, Nigéria e República do Congo.
Auxiliares: Estes combatentes são organizados de maneira diferente das forças militares normais e podem consistir em tropas de nações estrangeiras ou aliadas que ajudam uma outra nação em guerra. Um exemplo disto seriam os Hessianos contratados pelos britânicos durante a Revolução Americana.
Além disso, os auxiliares podem incluir combatentes locais recrutados para servir nas tropas coloniais. Por exemplo, as forças coloniais francesas recrutaram combatentes muçulmanos, conhecidos como Harkis, durante a Guerra de Independência da Argélia, que ocorreu entre 1954 e 1962.
Empresas Militares Privadas: Esta é a definição mais moderna daquilo que é normalmente apelidado de mercenários. As EMPs, por vezes, apelidadas de empresas de segurança militar privadas, são entidades jurídicas, ao contrário dos verdadeiros mercenários. Todavia, a sua utilização é controversa e frequentemente suscita dúvidas sobre responsabilização e abusos reais ou eventuais. Quanto ao recurso a EMPs, os países assumem posições diferentes.
Uma EMP é uma empresa privada com várias características. Primeiro, vende os seus serviços a governos nacionais, grupos internacionais e outros actores. Esses serviços podem incluir a protecção de colunas, edifícios e pessoal; a manutenção e operação de armas; a supervisão de prisioneiros; e o aconselhamento e treino de forças de segurança locais, de acordo com o Comité Internacional da Cruz Vermelha.
Por vezes, estes grupos participam em acções de “assistência militar directa e táctica” incluindo o combate nas linhas da frente de um conflito, de acordo com o académico e cientista político norte-americano, Peter W. Singer. Por vezes, os seus trabalhos incluem serviços secretos, logística e manutenção.
Estes grupos privados têm sido utilizados em conflitos a nível mundial em países como Afeganistão, Iraque, Kosovo, Síria e na antiga Jugoslávia. Os referidos grupos têm estado presentes em África, mais concretamente na República Centro-Africana, Líbia e em Moçambique, para referir apenas alguns.
Numa perspectiva jurídica, o recurso a EMPs é complicado. Por outras palavras, se os funcionários das EMPs não forem utilizados como combatentes, isso significa que são, por definição, civis e têm direito a todas as protecções inerentes.
EMPs PROEMINENTES EM ÁFRICA
Várias EMPs têm estado envolvidas em conflitos notórios em África nos últimos 30 anos. Algumas das mais proeminentes encontram-se descritas abaixo.
Uma das EMPs africanas mais conhecidas, e uma das primeiras, foi a Executive Outcomes (EO), fundada em 1989 por Eeben Barlow, um antigo oficial das Forças de Defesa da África do Sul. Os contactos e a experiência de Barlow, antigo tenente-coronel, concederam-lhe acesso a pessoal com vasta experiência militar e táctica.
Isso, associado ao equipamento que incluía cargueiros e viaturas de transporte de militares, aeronaves ligeiras e equipamento de vigilância, permitiu à EO operar com eficiência e eficácia em dois conflitos africanos: guerras civis em Angola e na Serra Leoa, escreveu a jornalista sul-africana Khareen Pech. Em 1999, ela apresentou as informações no livro “Peace, Profit or Plunder? The Privatisation of Security in War-Torn African Societies” (Paz, Lucro ou Saque? A Privatização da Segurança nas Sociedades Africanas Devastadas pela Guerra), publicado pelo Instituto de Estudos de Segurança.
Em Angola, a EO utilizou helicópteros de combate Mi-24, veículos de transporte de militares Mi-17 convertidos e caças L-39, escreveu Pech. Utilizou também várias aeronaves ligeiras e dois Boeing 727, nos aeroportos de Joanesburgo e Malta. Durante esse conflito, é bem conhecida a ajuda da EO que permitiu inverter o curso da situação a favor das forças governamentais ao proporcionar treino às tropas e outro tipo de apoio.
Na Serra Leoa, a EO foi contratada em meados da década de 1990 para ajudar as forças governamentais na luta contra os rebeldes da Frente Revolucionária Unida. As forças governamentais derrotaram os rebeldes, garantiram um tratado de paz e realizaram eleições.
A EO, que frequentemente tem sido assunto de controvérsia, foi encerrada no final da década de 1990, mas Barlow anunciou, numa publicação da sua página do Facebook de Dezembro de 2020, que a empresa foi reactivada.
Uma outra EMP activa no continente é o Dyck Advisory Group (DAG), sediado na África do Sul, criado por Lionel Dyck, um antigo coronel das forças armadas do Zimbabwe.
De acordo com a página da internet do DAG, este grupo presta uma variedade de serviços que incluem combate à caça furtiva, a gestão do risco de explosivos e os serviços de cães. A participação mais recente e de elevado destaque do DAG no continente foi o envolvimento na crescente insurreição violenta na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. O DAG foi contratado para ajudar as autoridades moçambicanas a pôr termo à insurgência apoiada pelo Estado Islâmico, em 2020, mas o termo do contrato de um ano estava supostamente agendado para o início de Abril de 2021.
O grupo teve algum sucesso durante a sua presença em Moçambique. Entrou no terreno depois de os extremistas terem desviado as forças do Grupo Wagner, da Rússia. No entanto, num relatório de Março de 2021, a Amnistia Internacional acusou a organização e outras partes intervenientes no conflito de ataques indiscriminados a civis.
O relatório acusou o pessoal do Dyck Advisory Group de ter disparado de maneira indiscriminada contra civis durante o combate com insurgentes.
O fundador do DAG, Lionel Dyck, disse à Reuters: “Nós levamos estas acusações muito a sério e vamos formar em breve uma equipa jurídica independente para criar um comité de inquérito e investigar as nossas acções.”
O Grupo Wagner, da Rússia, é talvez a EMP mais activa e notória no continente. Este grupo está activo na República Centro-Africana, na Líbia, no Madagáscar, em Moçambique e no Sudão. Saiu de Moçambique depois de os extremistas associados ao Estado Islâmico terem causado perdas consideráveis em termos de pessoal.
O Grupo Wagner é um óptimo exemplo de uma organização privada que está a ser utilizada como representante nacional para garantir influência numa nação estrangeira sem ter sido submetida ao escrutínio normalmente apresentado pela utilização de outros governos oficiais e canais militares.
O Grupo Wagner está associado a Yevgeny Prigozhin, homem de negócios russo e estreito aliado do presidente russo, Vladimir Putin. Acredita-se que a empresa esteja a ser regida por uma oligarquia. De facto, peritos afirmam que a Rússia utiliza EMPs, como o Grupo Wagner, como meio para atingir objectivos de política externa nacionais noutras nações sem o envolvimento directo do seu governo.
EQUILIBRAR BENEFÍCIOS E AMEAÇAS
O recurso a EMPs e mercenários foi discutido em Fevereiro de 2019, durante o debate do Conselho de Segurança da ONU sobre “Actividades de mercenários como fonte de insegurança e destabilização em África.” Presidiu a sessão o Presidente Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, da Guiné Equatorial, e os membros debateram os potenciais aspectos desestabilizadores dessas forças em relação à utilização supervisionada de EMPs para o treino de militares e fornecimento de apoio logístico tão necessário.
As forças mercenárias foram consideradas uma ameaça às nações africanas, principalmente nas regiões ricas em recursos naturais. O Presidente Obiang afirmou que a sua nação se tornou alvo dos mercenários depois da descoberta de petróleo na década de 1990 e acrescentou que houve cinco tentativas de invasão da Guiné Equatorial com recurso a mercenários. “Estes mercenários tentaram assassinar-me a mim e à minha família em Dezembro de 2017,” disse o presidente ao Conselho de Segurança.
Os participantes afirmam que é necessário actualizar a legislação sobre os mercenários através de um quadro jurídico semelhante ao empregue para combater a pirataria e o terrorismo, bem como proteger as fronteiras. Contudo, alguns afirmaram que as nações devem fazer a distinção entre grupos de mercenários desestabilizadores e grupos mais profissionais e legais que prestam serviços valiosos.
É muito provável que as EMPs continuem a ser uma fonte de debate em África nos próximos anos.
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