EQUIPA DA ADF
Ao regressar à sua cidade natal, Bujumbura, Frederic Gateretse-Ngoga acordava todas as manhãs com um forte sentido de lugar e de objectivo.
Era Novembro de 2022 e ele estava de volta à capital do Burundi, no meio das cores, cheiros, azáfama e agitação familiares, a fim de acolher um diálogo regional de pessoas reunidas para promover uma nova abordagem à resolução de conflitos, denominada Principles for Peace (P4P), ou Princípios da Paz.
A apenas 15 quilómetros de distância, localizava-se a parte oriental da República Democrática do Congo (RDC) — um campo de batalha encharcado de sangue, com vários exércitos, grupos rebeldes, militantes extremistas, dezenas de milícias armadas e milhões de civis a clamar por paz e protecção.
“Todas as manhãs, quando acordamos em Bujumbura, vemos as montanhas do leste da RDC,” disse Gateretse-Ngoga à ADF.
A própria história violenta do Burundi também pesou na sua mente.
Filho de um diplomata, Gateretse-Ngoga viu a sua adolescência e juventude serem marcadas por genocídios, guerras civis, golpes de Estado e inúmeras mortes. Entre essas mortes estavam as de dois dos seus primos mais novos.
“As suas mortes marcaram-me muito,” disse. “Apercebi-me de que não havia uma única família no Burundi que não tivesse sido afectada pelos ciclos de violência.”
Esses acontecimentos e perdas forjaram o seu futuro como pacificador.
Como Conselheiro Principal da União Africana para as Parcerias Internacionais, dirigiu também a Divisão de Alertas Antecipados e Prevenção de Conflitos, no Departamento de Paz e Segurança da UA, e desempenhou funções de oficial superior na missão de manutenção da paz da UA na Somália.
Actualmente, como membro da Comissão Internacional para a Paz Inclusiva da P4P, Gateretse-Ngoga está a trabalhar para fazer da P4P e do seu Pacto de Pacificação a norma para os princípios de pacificação. É uma referência que os mediadores, os governos e os organismos regionais e internacionais podem utilizar para traçar um caminho para uma paz sustentável antes, durante e depois do conflito.
A reunião em Bujumbura foi uma das centenas de compromissos que ao longo de dois anos deram forma aos Princípios.
Com as montanhas de Itombwe como pano de fundo, uma sala de conferências repleta de pacificadores veteranos, activistas, sobreviventes e optimistas inabaláveis debateu o passado e o presente violentos da região, procurando dar sentido às ondas que se formam entre eles.
Desafios Antigos, Novos Princípios
A lista de conflitos em África é longa. Mais de 30 conflitos estão a afectar centenas de milhões de pessoas em todo o continente. Alguns são de carácter estatal; outros de carácter comunitário. Todos eles são devastadores para as sociedades e comunidades, custando vidas, perspectivas económicas e coesão social.
Concluídos em Janeiro de 2023, os Princípios oferecem um roteiro concreto e mecanismos de acompanhamento que, segundo os seus organizadores, se articularão com os esforços dos governos, das autoridades regionais e dos organismos internacionais.
A directora-executiva da Fundação P4P, Hiba Qasas, oriunda dos territórios palestinianos, afirma que a sua organização pretende criar um movimento para revolucionar a construção da paz.
“Crescer numa zona de conflito influenciou profundamente o meu percurso,” disse à ADF. “Testemunhei em primeira mão a dura realidade da perda e do sofrimento.”
Os princípios, disse ela, estão a trazer o conceito de paz social para a construção da paz para construir “um ambiente livre de conflitos e insegurança, com justiça e liberdade de expressão respeitadas, com direitos protegidos.”
O espaço de pacificação e estabilização carecia anteriormente de um conjunto comum de normas, afirmou, referindo o impacto dos princípios humanitários da Cruz Vermelha, alguns dos quais foram adoptados pelas Nações Unidas em 1991.
“É como o Faroeste,” disse Qasas. “Esta ausência levou a que vários actores se envolvessem na construção da paz, utilizando abordagens diferentes, partindo de pressupostos diferentes e medindo o sucesso de forma diferente.”
Quando as partes em conflito concordam em cessar-fogo ou em pôr termo a um litígio, existe um risco significativo de regresso ao conflito. Quase metade dos conflitos mundiais desde 1989 repetiram-se, alguns até três vezes. Mais de 2 bilhões de pessoas vivem em Estados frágeis e afectados por conflitos, sofrendo as consequências directas e indirectas da violência e da insegurança.
“Existem grandes lacunas na actual abordagem de restabelecimento da paz, que constituíram um importante factor de motivação para a criação da Fundação P4P,” afirmou Qasas. “Demasiadas vezes a paz falha quando não é suficientemente legítima, inclusiva ou transformadora.”
Os três princípios fundamentais do Pacto de Paz da organização são a dignidade, a solidariedade e a humildade. Estes abordam a necessidade de enraizar os esforços de restabelecimento da paz de forma moral e ética para promover a confiança e o respeito.
Os dois princípios seguintes — reforço da legitimidade e segurança responsável — servem de base para alcançar uma paz duradoura.
Três princípios finais sublinham os compromissos necessários para reforçar a pacificação: promover o pluralismo; adoptar a subsidiariedade, que estabelece que as questões devem ser tratadas ao nível mais local; e defender soluções integradas e híbridas.
“É crucial reconhecer que alcançar a paz política não é suficiente,” disse Qasas. “A pacificação deve ser vista como um esforço mais vasto para transformar as relações entre o Estado e a sociedade.
“Deverá melhorar a capacidade de resposta e a responsabilização dos mecanismos de governação, proporcionar benefícios reais às comunidades e resolver as fracturas sociais subjacentes.”
Os Princípios da Paz fornecem estas normas como um guia prático e uma ferramenta de responsabilização. Destinam-se a servir de quadro para a criação e aplicação de acordos de paz, abordando simultaneamente os principais factores de conflito num processo mais inclusivo.
Os Princípios foram o produto de 700 estudos de caso e 150 consultas em mais de 60 países, nos quais a P4P colaborou com milhares de partes interessadas de todo o mundo, a nível local e estatal, para aprender com as experiências e ouvir as pessoas mais afectadas pelos conflitos.
Qasas descreveu um processo em que ela e outros líderes organizacionais mantiveram diálogos com actores pacíficos e actores armados não estatais. Falaram com os “spoilers,” que são membros de grupos que são excluídos de um processo de paz ou que se excluem a si próprios e usam a violência para atacar o processo.
“Nalguns casos, quando se fala com diferentes círculos eleitorais, eles dizem: ‘Não fizemos parte do processo,’” disse ela em Bujumbura. “A paz é feita para nós, não é feita connosco e não somos necessariamente donos dela.”
Desiré Yamuremye, um padre jesuíta que foi membro da Comissão de Verdade e Reconciliação no Burundi, falou durante a reunião de Bujumbura e disse que a maioria dos acordos de paz feitos na sequência de conflitos não reflectem as realidades no terreno. Eles não têm em consideração os prejuízos económicos e o trauma psicológico da população.
“Para que um conflito seja transformado em paz efectiva, deve haver progresso económico que é visto como estando aberto para todos,” disse Yamuremye. “A paz social é mais importante do que um acordo negociado politicamente.
“A ausência de guerra não significa necessariamente paz.”
‘Dêem-lhe pernas’
Os Princípios da Paz conta com cinco patrocinadores estatais — Dinamarca, Alemanha, Países Baixos, Suécia e Suíça — e mais de 100 organizações não-governamentais apoiam-nos.
Em Maio de 2023, os Princípios da Paz foram reconhecidos como um importante quadro de referência comum e normas comuns entre os intervenientes na construção da paz no Debate Aberto de Alto Nível do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Os Princípios foram lançados a 10 de Julho de 2023, nas Filipinas, onde estão a servir de instrumento de responsabilização para acompanhar a implementação do processo de paz de Bangsamoro.
Em África, a organização realizou intercâmbios com a UA, o bloco regional da Comunidade da África Oriental e os líderes da Somália, que estão a elaborar planos para lançar uma iniciativa de Princípios da Paz no país.
Qasas está entusiasmada e tem grandes ambições relativamente a esta fase de implementação dos Princípios. Disse estar determinada a que este trabalho “não seja apenas palavras numa página a ganhar poeira.” Ela gosta particularmente de falar sobre a implementação com a frase “Vamos dar-lhe pernas.”
“O que verdadeiramente me inspirou e comoveu foi a energia inabalável da juventude, a paixão da sociedade civil e a liderança esclarecida que emergiu de vários sectores,” disse sobre a sua jornada de 20 anos como pacificadora. “A sua determinação colectiva levou-nos a avançar, quebrando barreiras e desafiando o status quo.”
Olhando para os conflitos em África e no mundo, Gateretse-Ngoga vê uma necessidade urgente de dar aos pacificadores uma caixa de ferramentas actualizada.
“As pessoas não têm de morrer por causa da forma como nasceram, do seu género ou crença,” afirmou. “Infelizmente, olhando para o que está a acontecer a nível mundial, parece que não aprendemos a lição.”
O seu objectivo é encontrar “fazedores de barulho,” pessoas cujas vozes a favor da paz possam ser amplificadas pela Fundação Princípios da Paz.
“Há uma normalização da intolerância no nosso discurso público e estamos a achar que não há problema,” afirmou. “Estamos a chegar onde nunca chegámos, mesmo em termos da forma como nos tratamos uns aos outros.
“A verdade é que as pessoas que têm os seus valores correctos e que têm uma humanidade comum têm o dever de lutar. Mas todos nós já fomos tímidos.”