EQUIPA DA ADF
Existe um novo grupo armado que causa terror entre a população do Mali.
Os combatentes falam uma língua estranha. Eles não são parecidos com os residentes locais. Convergem para as aldeias acompanhados de soldados malianos. A sua missão aparente é ajudar a eliminar uma variedade de grupos terroristas persistentes.
O seu registo histórico em toda a África, contudo, é de violência criminal, incompetência e exploração económica. Agora ganharam uma reputação por matar civis malianos com impunidade.
Eles são membros do Grupo Wagner, uma famosa empresa de mercenários russos que já teve soldados no terreno na República Centro-Africana, Líbia, Moçambique e Sudão. O seu legado é de armadilha e atrocidades civis. A sua incursão descoordenada na província nortenha de Cabo Delgado, em Moçambique, em Setembro de 2019, levou a uma derrota causada por insurgentes naquele ponto e uma retirada vergonhosa depois de cerca de dois meses. Eventualmente foram substituídos por uma força multinacional africana mais eficaz.
Agora entraram para o Mali sob um acordo com o governo militar no poder, pouco depois que as forças francesas, que operavam sob a Operação Barkhane, seguiram em frente com a sua retirada.
O acordo é o mais recente que foi celebrado entre as forças do Grupo Wagner e um governo africano, em que o Grupo Wagner oferece segurança e treinos militares em troca de direitos a valiosos recursos naturais — neste caso, o ouro do Mali. Mas o resultado provavelmente venha a ser o mesmo: o Mali será deixado em caos, relações civil-militar destruídas e alienação pelas comunidades regional e global. No processo, terá entregado riquezas que poderiam ajudar a garantir o seu futuro económico.
Um grupo que não se sente seguro com este novo acordo são os civis malianos. “Estou aterrorizado por causa dos extremistas,” um comerciante de gado maliano disse ao The Washington Post, em Maio de 2022. “Estou aterrorizado por causa do exército maliano e estes soldados brancos. Nenhum lugar é seguro.”
COMO OPERA O GRUPO WAGNER?
Enquanto o ano de 2021 acabava, Mali recebeu 800 a 1000 combatentes do Grupo Wagner. Raphael Parens, um investigador que escreveu para o Instituto de Pesquisa de Políticas Estrangeiras, em Março de 2022, indicou que o Grupo Wagner seguiu o mesmo plano de jogo no Mali que executou em outros lugares de África. A estratégia da empresa militar privada possui três componentes:
• O grupo espalha desinformação e mensagens pró‑governo, como contramanifestações e votações falsas. Em 2019, a campanha de desinformação do Grupo Wagner, no Sudão, tentou manter o então presidente, Omar al-Bashir, no poder.
• O Grupo Wagner define os pagamentos por seus serviços através de concessões mineiras, como a mineração do ouro e outros metais preciosos. O Mali possui depósitos significativos de ouro.
• O grupo cria relações com o exército nacional através de consultorias, treinos, segurança pessoal e operações de combate aos insurgentes.
Na RCA, o Grupo Wagner realiza a maior parte das consultorias e formações militares. O grupo também garante segurança pessoal para o Presidente Faustin-Archange Touadéra. Em troca, a RCA concedeu à Rússia direitos de exploração mineira e permite que ela estabeleça a rádio e os jornais na capital Bangui, de acordo com um relatório do Geopolitical Monitor, uma publicação online internacional de inteligência.
“Ao longo de todo o processo, o envolvimento do estabelecimento da política estrangeira russa é claro, particularmente como o beneficiário de relações de exército para exército, com um novo potencial Estado-cliente,” escreveu Parens.
A SITUAÇÃO NO SAHEL
Enquanto a crise no Mali entra no seu 10º ano, a violência no Sahel aumentou em 70%, de 2020 para 2021. As mortes aumentaram em 17%. Grupos de militantes, nomeadamente aqueles com ligações com o al-Qaeda e com o Grupo do Estado Islâmico, continuam os seus ataques no Mali e no vizinho Burquina Faso, de acordo com o Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS).
Pouco depois da sua chegada, o Grupo Wagner estabeleceu uma base próximo do Aeroporto Internacional Modibo Keïta, na capital Bamako, próximo da Bases Aérea 101, do Mali. Os mercenários em pouco tempo espalharam-se para o centro do Mali. Existem indicações de que até 200 tropas podem estar estacionadas em Ségou e outros foram enviados para Tombuctu, de acordo com o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.
Em Março de 2022, o Grupo Wagner e soldados do Mali convergiram para a aldeia de Moura via helicóptero. O objectivo declarado era de combater insurgentes, mas durante um cerco de cinco dias, os malianos e os russos “saquearam casas, mantiveram residentes das aldeias em cativeiro no leito de um rio seco e executaram centenas de homens,” o The New York Times comunicou depois de falar com testemunhas, activistas do Mali e funcionários ocidentais. Alguns foram mortos sem terem sido interrogados. Muitos deles eram jovens. Os mercenários roubaram jóias e levaram os telemóveis para impedir que as pessoas gravassem as suas atrocidades.
Um relatório das Nações Unidas afirmou que mais de 500 civis morreram nas mãos de forças armadas e insurgentes, de Janeiro a Março de 2022 — um aumento de 324% em relação ao trimestre anterior.
Os residentes locais contaram à al-Jazeera sobre os soldados brancos que saquearam, atacaram e mataram pessoas. “Muitas vezes, eles atacam as pessoas que tentam escapar,” disse uma pessoa, na região rural dos arredores de Tombuctu. “Se tentares fugir, eles matam-te sem saber quem és.”
Este tipo de ataques e o terror que causam estão por detrás do aumento do número de refugiados que procuram por segurança na Mauritânia em direcção ao oeste. Desde finais de 2021, o acampamento de refugiados de Mbera, daquele país, viu a sua população aumentar para 80.000 pessoas, com quase 7.000 tendo chegado apenas em Março e Abril de 2022, comunicou a Al-Jazeera.
“Muitos, muitos relatórios e muitas pessoas que entrevistamos falaram sobre o exército, afirmando que era mais violento,” Ousmane Diallo, um investigador que trabalha para a Amnistia Internacional, a partir em Dakar, Senegal, disse à Al-Jazeera. Ele disse que o aumento da violência começou “desde a chegada do Grupo Wagner.”
“Existe um novo elemento. Os abusos e as violações perpetrados pelo exército do Mali não são novos, mas a escala e a brutalidade aumentaram desde Janeiro de 2022 e isso é algo que simplesmente não pode ser dispensado.”
CAOS E FALTA DE SUCESSO
As forças do Grupo Wagner sempre entram num país prometendo melhor segurança contra os insurgentes, mas os seus resultados, muitas vezes, não logram sucesso em África, de acordo com Geopolitical Monitor.
No norte de Moçambique, as forças do Grupo Wagner rapidamente sentiram-se incapacitadas com o ambiente que os cercava, os seus aliados e os seus inimigos. O terreno denso da região fez com que muito do equipamento de alta tecnologia do Grupo Wagner, como helicópteros, ficasse obsoleto. A sua falta de compreensão da cultura e da língua locais, a sua falta de confiança nos soldados moçambicanos e as violentas tácticas assimétricas do grupo insurgente, Ansar al-Sunna, rapidamente colocaram os mercenários russos em posição desfavorável.
“Os soldados do Grupo Wagner também sofreram um ataque surpresa, quando os insurgentes entraram no seu acampamento vestidos de uniforme do exército moçambicano,” de acordo com uma reportagem de Novembro de 2019, do jornal sul-africano, Daily Maverick. “Isso tinha causado uma profunda falta de confiança do Grupo Wagner perante o exército nacional e fez com que os russos parassem de fazer patrulhas conjuntas com soldados moçambicanos.”
Depois de os ataques terem causado a morte de pelo menos 11 combatentes e ferido outras duas dezenas, o Grupo Wagner ficou farto e bateu em retirada apressadamente.
Entretanto, na RCA, uma guerra civil que dura há 10 anos continua apesar da presença do Grupo Wagner. Na realidade, até cerca de 80% do país encontra-se sob controlo de rebeldes, de acordo com a Fundação Jamestown.
“Os grupos de milícias continuam a atacar o governo e uns aos outros enquanto as divisões religiosas e étnicas complicam qualquer possibilidade de paz na região,” de acordo com Geopolitical Monitor. “Enquanto isso, os mercenários russos obtêm lucros a partir das minas de diamante da RCA, enquanto aconselham os líderes daquele país. Apesar de garantir uma influência acrescida para a Rússia na RCA, as forças do Grupo Wagner fracassaram [em] trazer qualquer vitória decisiva na guerra civil para o governo de Touadera. Muito pelo contrário, a paz parece menos provável do que nunca num futuro próximo e os mercenários continuam estacionados em Bangui com pouca supervisão internacional.”
A eficácia em campo de batalha das forças do Grupo Wagner também é suspeita. Mark Galeotti, um especialista em matérias de segurança russa, disse ao The Moscow Times, um site de notícias independente, escrito em língua inglesa, que o baixo custo do Grupo Wagner, as ligações com Kremlin e os “serviços de apoio ao regime,” fazem com que este grupo seja uma opção atractiva.
Contudo, desde que lutou para anexar a Crimeia pela Rússia, em 2014, e um ano mais tarde, em apoio às forças do Presidente Bashar al-Assad, na Síria, o grupo de mercenários cresceu significativamente.
“Eles claramente tiveram de expandir, comparando-se com os seus primeiros dias na Síria e também têm de fazer lucro,” disse Galeotti. “Isso significa que devem ser menos mesquinhos quando se trata de escolha de recrutas. Eles estão cada vez mais a operar em teatros onde não possuem muita experiência.”
Líbia oferece um dos exemplos mais flagrantes da pouca consideração do Grupo Wagner para com as vidas de civis. Enquanto ajudavam as forças do Exército Nacional da Líbia (LNA), do Marechal de Campo líbio, Khalifa Haftar, na guerra civil daquele país, eles deixaram minas terrestres, dispositivos explosivos improvisados e bombas-armadilhas nos bairros. Uma mina foi colocada numa bola de futebol. Uma outra foi colocada por baixo de um cadáver.
O relatório de Junho de 2022 das Nações Unidas concluiu que as minas terrestres e outros explosivos, na Líbia, mataram 130 pessoas e feriram outras 196 entre Maio de 2020 e Março de 2022, no sul de Trípoli, Benghazi, Sirte e outros lugares. As vítimas variam em idades desde os 4 a 70 anos e eram na maioria homens e rapazes.
O relatório afirmava que as minas terrestres “e outros engenhos explosivos não detonados tinham sido encontrados em 35 locais marcados numa tabuleta deixada para trás pela empresa militar privada Grupo Wagner, em Ain Zara, em locais que tinham estado sob o controlo do LNA e nos quais o pessoal do Grupo Wagner tinha estado presente nessa altura.”
“O Grupo Wagner acrescentou ao legado mortífero das minas e das bombas-armadilhas espalhadas pelos bairros de Trípoli que fez com que fosse perigoso que as pessoas regressassem às suas casas,” Lama Fakih, director da Human Rights Watch para o Médio Oriente e o Norte de África, disse na página da internet do grupo. “É necessário que seja feito um inquérito internacional credível e transparente para garantir justiça para os muitos civis e trabalhadores de desminagem mortos e mutilados injustamente por essas armas.”
UMA RELAÇÃO DISPENDIOSA
Alinhar-se com a Rússia, através do Grupo Wagner, pode ser dispendioso em termos de riqueza nacional e reputação. A Reuters noticiou que o Mali está a pagar ao Grupo Wagner 10,8 milhões de dólares por mês pelos seus serviços. Os relatórios também deixam claro que o Grupo Wagner possui intenções com a riqueza mineral do Mali, ao manter as suas operações em outros lugares do continente.
Muitos dos aliados tradicionais do Mali condenaram o acordo daquele país com o Grupo Wagner. Em Dezembro de 2021, a União Europeia impôs sanções, congelamento de bens e proibições de viagem contra oficiais conhecidos do Grupo Wagner. Em Fevereiro de 2022, a UE impôs sanções contra cinco membros da junta no poder no Mali.
Os países africanos que mais acolhem a influência da Rússia “tendem a exibir as suas próprias versões de modelo de governação autoritário e transicional da Russia,” Director de Pesquisa do ACSS, Joseph Siegle, escreveu para o Instituto Italiano de Estudos Políticos Internacionais, em Maio de 2022. Eritreia, Sudão e Zimbabwe encaixam-se nesta descrição.
Quando a legitimidade dos líderes é questionável, o acréscimo de esforços da Rússia para ganhar influência combina para produzir um ambiente “inerentemente desestabilizador,” escreveu Siegle. O resultado é um sistema que serve os interesses elitistas em prejuízo dos civis.
Adoptar o ponto de vista do Presidente Vladimir Putin de ordem internacional apresenta implicações assustadoras para os países africanos, especialmente à sombra da invasão sem provocação da Rússia na Ucrânia. “Imagine se um país africano maior declarar que o seu país vizinho mais pequeno nunca realmente existiu como uma entidade soberana independente,” escreveu Siegle. O modelo ameaça os princípios de governação estabelecidos na Carta da ONU.
“Embora a ordem internacional actual, baseada na ONU, esteja longe de ser perfeita, ela fornece uma base legal e colectiva para que as vozes dos cidadãos africanos sejam ouvidas, os direitos humanos sejam protegidos e os governos sejam responsabilizados,” escreveu Siegle. “A alternativa é que cada país — e cada indivíduo — esteja sozinho.”