EQUIPA DA ADF
A Primavera de 2023 foi um período de tensão no Senegal. Os manifestantes encheram as ruas de Dakar e, numa acção rara, as Forças Armadas deslocaram-se para a capital para manter a ordem. Com pneus a arder, carros blindados nas esquinas e soldados a montar barricadas, um escritor descreveu o país como “sentado sobre um vulcão.”
Com a aproximação das eleições presidenciais, algumas pessoas de ambos os lados do debate político queriam que os militares assumissem uma posição mais activa. Os apelos aumentaram para que apoiassem o movimento da oposição ou apoiassem o então Presidente Macky Sall e o seu partido.
Numa demonstração de desafio, as Forças Armadas do Senegal (SAF) afirmaram que não se deixariam envolver na política que agitava o país. “O Estado-Maior das Forças Armadas convida os actores políticos de todos os quadrantes e a sociedade civil a manter o Exército Nacional fora do debate político, no interesse da nação,” lê-se num comunicado do Coronel Moussa Koulibaly, director de informação e relações-públicas. “Este último tenciona manter a sua postura republicana e dedicar-se às suas missões de soberania.”
Numa entrevista ao Jeune Afrique em Junho de 2023, um oficial não identificado disse que as forças armadas ajudariam a manter a paz, mas não se desviariam da sua posição apolítica.
“Era necessário [o destacamento na capital] para baixar a tensão, e agora já baixou,” disse o oficial. “Queremos manter-nos afastados do resto. A política pode apanhar-nos, mas esperamos que isso não aconteça.”
Numa região onde os golpes militares têm proliferado, o Senegal é uma anomalia. Desde a independência em 1960, o país nunca teve um golpe de Estado. É um dos principais contribuintes de tropas para as missões de manutenção da paz das Nações Unidas e lideradas por África. De acordo com um inquérito do Afrobarómetro, 83% da população confia nas Forças Armadas do país, a percentagem mais elevada entre os países inquiridos.
“O exército senegalês é único em África pelo seu profissionalismo e pelos seus valores republicanos,” o general francês reformado Bruno Clément-Bollée, que passou grande parte da sua carreira em África e que actualmente é consultor militar de governos, disse ao L’Express. “É um exército republicano que respeita as regras e está em conformidade com as leis.”
Como é que o Senegal conseguiu isso? Os especialistas dizem que tem a ver com a história única do país e com os fundadores que construíram um modelo duradouro de serviço à nação. Os observadores alertam, no entanto, para o facto de esta tradição estar em risco se não for protegida de forma vigilante.
Uma Parceria de Gigantes
O presidente fundador do Senegal, Leopold Senghor, é recordado como um poeta fumador de cachimbo e um homem de paz. Ao contrário de muitos dos presidentes fundadores, ele idealizou uma democracia constitucional e a sua presidência, embora imperfeita, lançou as bases para a realização de eleições multipartidárias.
Em 1962, o jovem país enfrentou a sua primeira crise política. O Primeiro-Ministro Mamadou Dia estava envolvido numa luta pelo poder com Senghor. Quando Dia invocou os poderes executivos e ordenou aos membros do exército que barricassem o edifício da assembleia antes de uma votação, Senghor considerou que se tratava de uma tentativa de golpe e prendeu Dia.
Durante a crise, Senghor manteve a lealdade dos militares e tinha uma relação de trabalho particularmente estreita com o General Jean-Alfred Diallo, chefe das Forças Armadas.
A parceria revelou-se fundamental. Diallo era um engenheiro que acreditava firmemente que as forças armadas deviam ser uma força de desenvolvimento. Juntos, os dois homens criaram um conceito conhecido como “Armée-Nation,” que defende que os militares devem, acima de tudo, servir a população através de projectos de obras públicas e outros esforços para melhorar a vida quotidiana do povo senegalês.
“Ambos desenvolveram a ideia de que o exército deveria ser um actor distinto no desenvolvimento económico e social e que deveria participar na construção do país,” disse o historiador Romain Tiquet, que estuda a África Ocidental.
O conceito foi posto em prática em 1964 com um projecto-piloto na aldeia de Savoigne, onde os soldados e os jovens recrutas do serviço nacional ajudaram a construir uma ponte, estradas, poços e edifícios e prepararam a terra para a agricultura. Esta situação manteve-se ao longo da história do país. Em 1968, o Senegal criou uma escola militar de medicina para formar médicos capazes de responder a surtos de doenças como a cólera e a febre-amarela. Em 1999, o país criou um comité através do qual os chefes militares se podiam reunir com membros do parlamento, agências governamentais, sociedade civil e sector privado para decidir que se projectos de infra-estruturas devem prosseguir.
O modelo da Armée-Nation orientou as forças armadas para o que é frequentemente designado por “segurança humana,” escreveu o Brigadeiro-General Ousmane Kane, antigo chefe da força aérea. “A participação dos ‘homens de uniforme’ nas missões de desenvolvimento criou um forte vínculo com as pessoas cuja defesa e segurança são as razões para servir nas Forças Armadas,” escreveu Kane.
Actualmente, o conceito está profundamente enraizado nas SAF. Todos os anos, os ramos das Forças Armadas realizam projectos que vão desde o trabalho agrícola à construção de escolas, passando pelas infra-estruturas públicas e pela preservação do ambiente. As forças armadas abrem as suas instalações médicas aos civis e organizam eventos de saúde pública. Os militares não são os primeiros a responder às catástrofes nacionais, mas normalmente apoiam as agências civis.
Educação Como a Base
A ênfase na educação militar remonta à fundação das SAF. Em 1962, Senghor e Diallo aumentaram o investimento na educação para quase 30% do orçamento do exército. “Este enfoque profissionalizado ajudou a criar um ‘enclave militar’ que o tornou numa forte componente do desenvolvimento senegalês,” escreveu o Tenente-Coronel da Força Aérea dos EUA Jahara Matisek, professor no Colégio de Guerra Naval dos EUA.
Actualmente, o Senegal oferece uma variedade de oportunidades de ensino militar profissional, desde a academia até aos níveis de comando e de Estado-maior. A sua academia militar, a École Nationale des Officiers d’Active, foi criada em 1981 e admite cerca de 100 cadetes por ano para dois anos de formação. O Senegal criou o Centre des Hautes Études de Défense et de Sécurité para estudos avançados de defesa e segurança em 2013 e oferece mestrados em defesa, paz, segurança e segurança nacional. Em 2020, o país abriu o Institut de Défense du Sénégal, que possui uma escola de comando e Estado-maior e um centro de desenvolvimento de doutrina.
O general reformado Talla Niang, antigo vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas do Senegal, disse que os oficiais normalmente recebem cinco a seis anos de educação após o ensino secundário. A formação continua ao longo das suas carreiras.
“No exército senegalês, somos sempre educados e treinados para um determinado trabalho antes de sermos enviados para fazer esse trabalho,” Niang disse ao Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS). “Dessa forma, sabem como fazer o vosso trabalho.”
O Senegal ainda não dispõe de uma escola de guerra e a capacidade de formação militar nacional é limitada. Matisek, que passou anos a estudar as forças armadas do país, interagindo com oficiais senegaleses, disse que descobriu que eles tinham recebido formação de todo o mundo, o que tornava “difícil obter consistência em toda a força.”
“Continuam a depender, de certa forma, de outros países e instituições para fornecer uma grande parte da educação e da formação. Portanto, há um emaranhado de diferentes doutrinas,” Matisek, que afirmou que os seus comentários não reflectem necessariamente as opiniões do governo dos EUA, disse à ADF. “Precisam de mais capacidade na sua academia, na escola de quadros médios e de ajuda para construir uma escola de guerra, para que a maioria das suas forças seja formada internamente.”
Força na Diversidade
Muitas forças armadas nacionais não reflectem os países que servem. Muitas vezes, os escalões superiores são preenchidos por membros de um grupo étnico ou religioso com ligações ao presidente. Este desequilíbrio gera ressentimentos e pode ser um factor de motivação para golpes de Estado.
O Senegal tem trabalhado para o evitar. O país é maioritariamente muçulmano, mas possui uma diversidade étnica que inclui Wolof, Fula, Serer, Mandinka e outros. O exército faz recrutamentos em todos os grupos.
“As suas tropas reflectem a composição étnica e regional do país. Há uma chave ou um registo que mostra esta composição,” Niang disse ao ACSS. “Portanto, se dissermos que este grupo étnico representa 2% da população, vamos encontrar esses 2% no exército. O exército senegalês é, portanto, como um microcosmo do próprio Senegal.”
Do mesmo modo, o Senegal nunca criou uma guarda presidencial permanente. Em países com forças armadas disfuncionais, estas unidades estão cheias de soldados leais ao presidente e são utilizadas como um mecanismo para manter o poder e anular a dissidência. No Senegal, os membros da gendarmaria são afectos à guarda do presidente e são substituídos de dois em dois ou de três em três anos.
“Isso significa que aqueles que guarecem o presidente — ele não os escolhe, não os conhece. A Presidência é uma instituição. O presidente não escolhe o chefe da guarda presidencial,” Niang disse ao ACSS. “A guarda presidencial não pode lançar um golpe de Estado no Senegal, está menos equipada, não tem números suficientes e não é suficientemente forte.”
Promoção com Base no Mérito
Poucas coisas prejudicam mais o moral e a eficácia do que as promoções baseadas no compadrio ou em preferências étnicas. O Senegal tem conselhos de promoção em todos os níveis das suas Forças Armadas que avaliam a qualificação de um candidato para a promoção. O exército senegalês mantém um equilíbrio de 5% de oficiais, 15% de oficiais subalternos e 80% de soldados alistados. O país também tem evitado encher as fileiras superiores das suas Forças Armadas com oficiais que avançam devido ao favoritismo.
A liderança do país acredita que a meritocracia é essencial para a construção de um exército de alto desempenho. “Se for promovido com base em relações pessoais, pode ter a patente e o cargo, mas não será aceite nem legítimo aos olhos dos seus pares nem dos seus subordinados. E não será capaz de dar ordens ao seu pessoal para que este as execute sem hesitar ou reclamar,” o General Birame Diop, Ministro das Forças Armadas do Senegal, disse ao ACSS. “Num sistema baseado no mérito, nem todos concordarão sempre consigo, mas terá a legitimidade e a credibilidade necessárias para exercer autoridade sobre aqueles que lidera.”
Durante o tempo em que estudou o exército senegalês, Matisek descobriu que as unidades enfatizam os traços de liderança através de um sistema informal conhecido como “djobot.” Esta dinâmica, que se traduz aproximadamente por “relações familiares,” significa que os soldados que demonstram liderança são tratados como irmãos mais velhos ou mesmo como figuras paternais. Esta qualidade de liderança auto-identificada pode levar a uma promoção a nível formal. Significa também que as unidades se autopoliciam com uma cultura de elevados padrões e profissionalismo.
“É o elemento informal de alguém que é respeitado e visto como um bom líder que cuida das suas tropas,” disse. “A percepção é a realidade. O djobot é utilizado para descrever a forma como avaliam o seu mérito.”
Ao interagir com os soldados de todos os níveis das SAF, Matisek ouviu repetidamente que o profissionalismo e a dedicação aos valores republicanos eram uma fonte de orgulho e cuidadosamente protegidos. Ele acredita que este facto ajuda a isolar o país do contágio do golpe de Estado que se está a propagar pelo continente. “Eles levam isto muito a sério no que diz respeito a ‘Nunca tivemos um golpe de Estado e vamos manter as coisas assim’,” Matisek disse à ADF. “Disseram: ‘Há muitas coisas que fazemos informalmente entre nós para nos certificarmos de que estamos todos de acordo em garantir que mantemos a tradição republicana de não interferência na política interna.’”
Os antigos soldados sabem que esta tradição deve ser protegida.
Com a aproximação do dia das eleições, em Fevereiro de 2024, o coronel paraquedista reformado Seyni Cissé Diop publicou um editorial no jornal intitulado “Que Nenni!” ou “Acho que não!” Nesse texto, comparava os militares senegaleses à figura mítica grega Odisseu que se amarra ao mastro de um navio para não se deixar tentar pelo canto das sereias. Os golpes de Estado e a corrupção política, segundo Diop, são o canto da sereia que desorienta as forças armadas africanas. Exortou os seus colegas soldados a recordarem a sua orgulhosa tradição.
“Vós sois os herdeiros das tradições de lealdade à República,” escreveu Diop. “Vós e a vossa instituição sobreviverão a esta crise política, seja qual for a causa, se permanecerem fiéis ao espírito dos vossos anciãos que souberam guardar a sua dignidade de soldados incorruptíveis.”