EQUIPA da ADF | FOTOS: AFP/GETTY IMAGES
O Sudão encontrava-se numa posição promissora depois de livrar-se de 30 anos de um governo brutal e autocrático, em 2019.
Um ditador vicioso tinha sido derrubado, um novo primeiro-ministro estava a falar sobre a formação de um sector de segurança mais profissional e as autoridades civis e militares haviam formado um governo que estava a gatinhar em direcção à democracia.
Contudo, depois de dois anos completos de um ténue governo de transição, a desagradável história da nação interferiu.
Uma sublevação fracassada em Setembro de 2021, levada a cabo pelos soldados leais ao antigo presidente Omar al-Bashir, não foi senão um prenúncio de golpe de Estado um mês depois, quando o exército, liderado pelo General Abdel Fattah al-Burhan, dissolveu o Conselho de Soberania, suspendeu parte da Constituição e colocou o Primeiro-Ministro Abdalla Hamdok e outros em prisão domiciliária.
Em Abril de 2021, Hamdok tinha dito que o Sudão se esforçaria em criar um exército nacional unificado “destacado pelo seu profissionalismo.”
Este compromisso e a oportunidade que procura explorar elevou a esperança internacional de que o Sudão pode finalmente escrever uma nova página da sua história conturbada.
Ainda não se sabe se isso irá acontecer.
Unir grupos armados divergentes e seus líderes num quadro comum de segurança que respeite o Estado de direito e os direitos dos cidadãos é uma missão difícil para qualquer país, muito mais ainda para o Sudão.
Apesar dos desafios, a necessidade urgente de o Sudão transformar o seu sector de segurança, afastando-o de um que foi concebido para apoiar um ditador, tem atraído muitas atenções desde que al-Bashir foi derrubado do poder, em 2019.
Antes do golpe, o Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS) patrocinou uma série de cinco webinários, realizados de 1 de Março a 26 de Abril de 2021, subordinados ao tema “Reimaginando o Sector de Segurança do Sudão.” Neles, especialistas falaram sobre o papel do sector de segurança nas transições democráticas, nas relações civil-militares do Sudão e sobre a importância de ter uma estratégia nacional de segurança.
A história do Sudão está repleta de violência e instabilidade. O então Brigadeiro-General al-Bashir depôs o governo eleito do Sudão, num golpe militar, em 1989, e governou como presidente do Conselho do Comando Revolucionário para a Salvação Nacional. Ele baniu os partidos políticos, controlou a imprensa e dissolveu o parlamento. Com a ajuda de um extremista muçulmano chamado Hassan al-Turabi, al-Bashir impôs a Sharia, em Março de 1991, uma acção que acentuou as divisões entre o norte e o sul, onde a maior parte das pessoas seguem crenças animistas ou cristãs.
A sua tomada do poder veio em meio a uma Segunda Guerra Civil Sudanesa, um conflito de 22 anos entre o governo central de Cartum e o Exército de Libertação do Povo Sudanês. A guerra, que teve início em 1983, levou à eventual separação que resultou na formação do Sudão do Sul como um país independente, em 2011.
In 1993, o Conselho Revolucionário foi dissolvido e al-Bashir tornou-se o presidente do Sudão, embora tenha mantido o governo militar. Nos anos subsequentes, foi confirmado como presidente, numa eleição, levantou a proibição de criação de partidos políticos e virou-se contra o seu antigo aliado, al-Turabi.
Enquanto al-Bashir continuava o seu punho de ferro sobre o país, os rebeldes na região ocidental de Darfur pegaram em armas contra o governo central, em 2003. Al-Bashir respondeu utilizando milícias árabes, notavelmente conhecidos como Janjaweed (“diabos em cavalos”), que atacavam de forma brutal e aterrorizavam civis, apesar da condenação global. Mais tarde, uma missão de manutenção da paz híbrida, da União Africana e das Nações Unidas, interveio para restaurar a ordem e proteger os civis. A missão terminou no dia 1 de Janeiro de 2021.
Anos de sanções e declínio nos rendimentos do petróleo resultante da independência do Sudão do Sul levaram a medidas de austeridade que atingiram pesadamente os civis. Protestos que se centraram em cortes de subsídios do pão e do combustível motivaram as manifestações na região leste que, em pouco tempo, chegaram à capital, Cartum. Depois, os protestos expandiram-se para incluir exigências para a destituição de al-Bashir.
Houve uma manifestação em massa do lado de fora do Ministério de Defesa, que começou no dia 6 de Abril de 2019, em que oficiais militares juniores aderiram quando os oficiais de alta patente se recusaram a dispersar os manifestantes, noticiou o The Washington Post.
Pouco tempo depois, Al-Bashir foi deposto em meio a uma rebelião popular dirigida por uma coligação de médicos, advogados e profissionais de saúde, conhecida como a Associação dos Profissionais Sudaneses.
“Este é possivelmente um novo amanhecer para o Sudão,” Rashid Abdi, um analista do Grupo Internacional da Crise, disse ao the Post. “Demonstra que mesmo os mais entrincheirados ditadores são vulneráveis. O futuro é incerto, mas agora existe uma melhor oportunidade para engendrar uma transição viável e inclusiva.”
O REGIME DE TRANSIÇÃO ASSUME O CONTROLO
Embora a saída de al-Bashir tenha agradado os manifestantes, o mesmo não aconteceu com o tipo de governo que o sucedeu. Depois da destituição de al-Bashir, os líderes militares tomaram o controlo do Conselho Militar de Transição (TMC, sigla inglesa) e declararam um estado de emergência de três meses. Depois de meses de negociações, os oficiais militares e a oposição civil chegaram a um acordo de partilha de poder, em Julho de 2019.
O acordo fez com que o TMC e a Aliança para a Liberdade e Mudança — um grupo que representava os civis pró-democracia — formassem um Conselho de Soberania que serviu como o chefe de Estado. O conselho era constituído por uma mistura de líderes militares e civis.
Os membros do conselho civil nomearam o Primeiro-Ministro, o economista Hamdok, que supervisionava as funções executivas a nível nacional, incluindo cerca de 20 ministérios. Uma terceira componente, o Conselho Legislativo de Transição, era responsável pela legislação e pela supervisão executiva.
O Conselho de Soberania foi criado para governar por 39 meses. Uma pessoa escolhida pelo exército presidia ao conselho nos primeiros 21 meses. Os últimos 18 meses seriam presididos por alguém indicado pelos membros civis, conforme o acordo.
A controvérsia continuou apesar da existência do acordo de transição. Em Maio de 2021, um membro civil do Conselho de Soberania renunciou ao cargo, afirmando que membros militares haviam tomado decisões unilateralmente e haviam utilizado a força contra manifestantes pacíficos, noticiou a Voz da América.
Em Junho de 2021, a Reuters noticiou que o exército do Sudão planificava uma força conjunta para “combater a insegurança” enquanto as tensões económicas e regionais persistissem. Um outro ponto preocupante foi quem fez o anúncio: o General Mohammed Hamdan Dagalo, presidente-adjunto do conselho. Dagalo é conhecido pelo nome de “Hemedti” e lidera as Forças de Apoio Rápido do Sudão (RSF).
As RSF emergiram das implacáveis milícias Janjaweed, em Darfur, em 2013, e Hemedti, um antigo negociante de camelos, foi nomeado comandante da força, noticiou a Al-Jazeera, em Junho de 2019. A Human Rights Watch chamou as RSF de “homens sem misericórdia” e a força matou aproximadamente 200 pessoas e apreendeu e feriu outras centenas durante os protestos de 2013, em Cartum. Em 2015, as RSF foram consideradas uma “força normal” e dois anos depois foram incorporadas no Exército Sudanês, onde respondiam directamente a al-Bashir e o protegiam de tentativas de golpes.
A ironia de que Hemedti e as RSF estavam envolvidos no Conselho de Soberania não ficou perdida para o povo sudanês.
“Não queremos avançar com as RSF como parte do exército sudanês,” Hajooj Kuka, um manifestante e membro do movimento pró-democracia, Girifna, disse à Al-Jazeera. “Neste momento, perdemos totalmente a confiança neles.”
O CAMINHO CERTO PARA O SUDÃO
Depois da saída de al-Bashir, as dificuldades económicas persistiram no Sudão e a COVID-19 acrescentou-se aos problemas do país. Estes desafios, aliados ao recente golpe militar, fazem com que os esforços do Sudão para realizar a garantia de Hamdok, de um sector de segurança profissional, pareçam remotos.
Em Novembro de 2020, o Dr. Luka Biong D. Kuol, director dos assuntos académicos do ACSS, escreveu que a jornada do Sudão para um sector de segurança profissional enfrentou muitos desafios.
Em Outubro de 2020, o governo de transição assinou um acordo de paz com a Frente Revolucionária Sudanesa, que incluía vários grupos rebeldes, para acabar com a violência a nível nacional que matou centenas de milhares de pessoas e deixou outros milhares deslocados, noticiou a Al-Jazeera. Mas dois grupos armados influentes — o Movimento de Libertação do Sudão, com sede em Darfur, e o Movimento Popular de Libertação do Sudão-Norte — não assinaram na altura.
Kuol escreveu que a Carta Constitucional do Sudão e o pacto de paz incluía pessoal uniformizado nas suas definições restringidas de segurança. Para além disso, a carta indicou os militares como sendo os únicos responsáveis pelas transformações das suas instituições. “Para além de pedir que o exército se reforme, esta abordagem não considera o facto de que, numa democracia, os civis desempenham um papel vital no estabelecimento da visão e da estratégia política do sector de segurança,” escreveu Kuol.
Ele argumentou que os esforços de reforma abrangentes incluiriam os parlamentares, a sociedade civil, o judiciário e as finanças, as autoridades de imigração e as alfandegas, só para mencionar alguns.
O desarmamento, a desmobilização e a reintegração (DDR) também são uma componente crucial numa reforma geral do sector de segurança com vários grupos armados como o Sudão. DDR é o processo de levar as armas dos grupos armados, retirar os combatentes desses grupos e ajudar os ex-combatentes a reentrarem nas comunidades de forma segura e produtiva.
Kuol afirmou que era provável que o processo DDR do Sudão fracasse, a menos que fizesse parte de uma visão nacional maior ou de uma estratégia de segurança dirigida por líderes com comando sólido e com controlo das forças envolvidas. Uma estratégia nacional de segurança é essencial para o processo.
Os webinários do ACSS enfatizaram este ponto. Medhane Tadesse disse, no webinário do dia 29 de Março de 2021, que uma política nacional é “o ponto de entrada” para o começo de conversações inclusivas sobre o sector de segurança e esforços mais abrangentes de construção do Estado. Tais conversações deviam incluir questões sociais e políticas e serem cada vez mais inclusivas.
“Em termos mais genéricos, isso podia ajudar a criar um contrato social em África, trazendo os diferentes actores, trazendo os cidadãos e as várias partes interessadas para o diálogo na formulação de uma visão comum,” disse Tadesse, um especialista em matérias de paz e segurança em África.
O sector de segurança do Sudão também tinha um papel a desempenhar na transição do país. De facto, apenas ficará beneficiada dos esforços bem-sucedidos, argumentou o Dr. Joseph Siegle, director de pesquisa do ACSS, numa publicação feita num blog e originalmente escrita para a página da internet árabe, Tawazun.net, em Março de 2021.
Os líderes militares arriscam-se a herdar dissabores civis relacionados com as dificuldades económicas do Sudão se se apegarem ao poder. Entregar as rédeas às autoridades civis pode melhorar a segurança, permitindo que o governo busque alcançar outros acordos de paz com os grupos rebeldes residuais. Isso também permitiria que o exército se concentrasse na segurança das fronteiras e no extremismo violento, escreveu.
Um exército livre de tarefas políticas pode concentrar-se na reforma e deixar as preocupações económicas para o Estado resolver, escreveu Siegle. Uma economia mais robusta, por sua vez, garantiria rendimentos para os salários dos militares, pensões e benefícios de reforma, que podem facilitar a migração dos oficiais seniores para o sector privado.
“Não existe uma, mas sim múltiplas forças armadas sudanesas,” escreveu Siegle. “A transição constitui uma oportunidade para que os profissionais militares voltem a ganhar o controlo e voltem a dedicar as forças armadas para proteger o Estado e os seus cidadãos, com uma estrutura de comando unificada e padrões uniformes para o treinamento, a disciplina, o recrutamento e as promoções baseadas no mérito.”
Até aos princípios de Novembro de 2021, dezenas de milhares de civis estavam a protestar contra o golpe nas ruas de Sudão, um desenvolvimento que alguns observadores afirmam que encontrou al-Burhan desprevenido. As forças de segurança tinham matado muitos manifestantes em consequência dos protestos.
“Por causa da resistência e do apoio dados a Hamdok e seus camaradas civis pelo Ocidente, acreditamos que Burhan terá de concordar em partilhar o poder,” Zaynab Mohamed, analista de assuntos políticos da Oxford Economics Africa, disse à CNBC. “As tensões na arena política continuarão altas nos próximos meses enquanto as partes envolvidas tentam negociar um novo acordo, e esperamos que a violência mortal continuará contra os manifestantes que se posicionam contra o golpe de Estado.