EQUIPA DA ADF
Vinte anos atrás, poucos tinham ouvido falar sobre guerra cibernética. O extremismo religioso não era considerado uma ameaça para muitos países. Pensava-se que a pirataria já tinha sido erradicada há um século.
As coisas podem mudar rapidamente.
Quando os chefes das forças terrestres de toda a África se reuniram em Adis Abeba, Etiópia, no mês de Fevereiro de 2020, estavam a perspectivar o futuro. A Cimeira das Forças Terrestres Africanas (ALFS, sigla em inglês), um evento de quatro dias, financiado pelo Exército Africano dos Estados Unidos (USARAF) e co-organizado pelas Forças de Defesa Nacional da Etiópia (ENDF), foi uma oportunidade para perspectivar o horizonte e começar a preparar para enfrentar ameaças que serão mais prevalecentes daqui a alguns anos.
“É sempre mais fácil prevenir do que remediar,” disse o Gen. Birame Diop, Chefe do Estado-Maior da Defesa do Senegal, aos líderes presentes.
A antecipação estava na agenda. O tema da ALFS 2020 foi “A segurança do amanhã exige liderança hoje.” Os tópicos incluíam preparar-se para calamidades naturais, estudos de caso em missões multinacionais de manutenção da paz e modernização do ensino militar para satisfazer as exigências do Século XXI. Diariamente havia sessões em que os participantes se dividiam em grupos menores para estarem em salas privadas, sob a moderação de especialistas no assunto. Lá, os líderes de defesa tiveram a oportunidade de falar livremente e criar relacionamentos com as suas contrapartes de outras partes do continente.
“Isso cria um ambiente favorável para que os chefes de segurança africanos se conheçam uns aos outros,” disse o Tenente-General Molla Hailemariam, comandante das forças terrestres das ENDF e co-organizador do evento. “É uma oportunidade de construir relacionamentos e continuá-los.”
A 8ª ALFS contou com a presença de 42 chefes das forças terrestres africanas, oito aliados e parceiros globais da Europa e de outras partes do mundo, e ainda 12 parceiros de Estado vindos dos Estados Unidos da América.
Molla disse que está confiante de que as alianças feitas durante o evento serão duradoiras. “Foi uma boa oportunidade para vermos como podemos complementar aquilo que os outros países estão a fazer,” afirmou. “Estamos a interagir a nível de um-por-um mas também regionalmente. É muito crucial.”
O destaque da semana foi para o fórum de Líder Veterano Alistado do Comando, que decorreu na mesma altura. O Comandante do USARAF, Brigadeiro Charles W. Gregory Jr. disse que edificar um corpo capacitado de oficiais não comprometidos (NCO) em África será de vital importância para melhorar o treino e o uso da tecnologia nos exércitos nacionais.
Ele disse aos participantes que “todo comandante tem um sargento”, e um sargento capacitado pode ajudar o comandante a identificar os “ângulos mortos” na estrutura das forças e preparar-se para futuros desafios.
“Se estiver sempre preparado para aquilo que espera, e ore para que nunca aconteça, quando esse dia mau chegar você estará preparado,” aconselhou Gregory.
Os EUA investiram na ajuda a exércitos africanos para treinar as próximas gerações de NCOs através da sua Estratégia de Desenvolvimento dos Alistados de África, que opera para normalizar o treino de NCO em países como o Quénia, Marrocos, Moçambique e Senegal. O General Stephen Townsend, comandante do Comando Africano dos Estados Unidos, chama um corpo profissional de NCO “a espinha dorsal” de uma força eficaz.
O evento recebeu a sua primeira participante do sexo feminino, subtenente júnior Menbere Akele Kibert, da Etiópia. Ela disse aos participantes que as mulheres estão a fazer progresso no exército etíope, em particular, no domínio cibernético, mas ela gostaria de ver mais.
“Nas Forças Aéreas Etíopes, temos muitas técnicas, engenheiras e especialistas. Mas não é suficiente; é muito pequeno em termos de número”, lamentou ela. “Então, como melhorar e incluir mais participação da mulher e as capacitar em todos os aspectos da vida militar? Especialmente em cargos profissionais ou de liderança.”
Em jeito de considerações finais, Townsend destacou a importância do tempo do evento. Ele destacou igualmente a eminente transferência de responsabilidades de segurança na Somália, da Missão da União Africana na Somália para as Forças Armadas Nacionais da Somália, em 2021. Falou sobre a complicada guerra civil da Líbia e referenciou a ameaça de terror que assola o Sahel. Os que lidarão com esta e outras ameaças à segurança, disse Townsend, “estão sentados aqui nesta sala.”
“Estamos num ponto decisivo colectivo em relação ao futuro da segurança de África,” disse, acrescentando que “o futuro que todos desejamos ver, uma África mais segura, estável e próspera, está centrado na liderança africana e nos exércitos africanos que garantem a segurança regional.”
Pontos de vista da Cimeira
Durante a ALFS 2020, os comandantes falaram com a ADF e compartilharam as suas ideias sobre as questões de segurança mais prementes nos seus países de origem, tendo destacado as lições que aprenderam na conferência. Abaixo se encontram os pontos de vista de quatros líderes do sector da segurança do continente.
Textos e Fotos da EQUIPA DA ADF
Um Exército em Ascensão
A República Centro-Africana (RCA) está a reconstruir as suas Forças Armadas a partir do zero. Depois de uma crise nacional, entre 2013 e 2014, muitas unidades das Forças Armadas Centro-Africanas dissolveram-se, e o país começou uma campanha nacional para recrutar, treinar e profissionalizar as Forças Armadas.
Ainda em 2018, a maior parte do país estava sem ordem e era controlada por rebeldes e outros actores diferentes do Estado. Um Plano Nacional de Defesa assinado pelo presidente da RCA destaca os passos para criar uma tropa de guarnição de 9.900 pessoas posicionadas em quatro zonas até 2022. Cerca da metade dos soldados ficará posicionada fora da capital, Bangui, muitos deles em zonas controladas por rebeldes.
O Brigadeiro-General Alfred Service, líder do Grupo Especial da RCA para a Protecção da República, disse haver muito trabalho a ser feito, mas ele é optimista. “Temos muitos desafios por vencer: o desenvolvimento, uma situação desafiadora de segurança na maior parte do país, grupos armados que ocupam zonas de minérios e não respeitam a lei, bandidos que devem ser trazidos para a justiça.”
Service disse que usou o seu tempo na ALFS para compartilhar experiências com colegas oficiais sobre aspectos específicos do trabalho em parceria com uma missão multinacional. A RCA é a base de uma missão das Nações Unidas composta por 13.000 pessoas.
“Falamos sobre o aspecto multidimensional desta coisa: assuntos de natureza política, assuntos de natureza civil, protecção de civis. Existe também o processo de tomada de decisões em missões multinacionais,” disse Service. “Um certo número de coisas a saber de modo a caminharmos juntos na mesma direcção.”
Tal como disse nos princípios de 2020, Service olha para as eleições nacionais da RCA, previstas para Dezembro, como um marco para o país. “A reconstrução do país necessita da democracia,” recomendou. “Tivemos as eleições de 2015 sob a supervisão da ONU. Agora devemos continuar com eleições porque para termos autoridades legítimas, devemos evitar a troca de poder através do uso da força. São as eleições que devem ser valorizadas pelo povo para dar um mandato aos líderes.”
O caminho tem sido sinuoso, mas Service disse estar esperançoso em relação ao futuro do país. “Existem desafios que permanecem, mas estamos a avançar na direcção certa porque estamos nesta direcção juntos.”
Uma Experiência de Manutenção de Paz Conquistada com Muita Dificuldade
O Brigadeiro-General Gilbert Mulenga, chefe de operações do exército da Zâmbia, já viu os altos e baixos da manutenção da paz. Ele serviu em missões em Angola, República Democrática do Congo e Serra Leoa e comandou o batalhão da Zâmbia (ZAMBATT) na República Centro-Africana (RCA).
Recorda o desespero que sentiu no ano 2000, quando mais de 200 elementos zambianos da força de manutenção da paz foram mantidos reféns na Serra Leoa. Mas também partilhou do triunfo de 2018, quando as Nações Unidas classificaram os zambianos como o contingente com maior desempenho na missão da RCA.
Ele lembrou que o seu país traz uma história rica para o treino de manutenção da paz. “Os nossos treinos são baseados no cenário; o que quer que esteja a acontecer na RCA, nós trazemos esse cenário para as tropas e observamos como eles reagem,” explicou.
“Aqueles que já estiveram no terreno, vocês os orientam. Sempre que virem uma lacuna, fechem-na através da orientação, a qual vem da experiência.”
O mais recente destacamento de tropas, conhecido como ZAMBATT 5, é o quinto contingente zambiano a servir na RCA. Mulenga disse que, quando começaram os treinos, há cinco anos, eram 100% dirigidos por formadores dos EUA e outras forças estrangeiras. Agora são dirigidos por zambianos, com formadores dos EUA a servirem essencialmente como observadores.
“Agora nós fornecemos o grosso dos instrutores; a maior parte deles possuem experiência dessas missões, em particular, na RCA. Por isso, eles também partilham experiências com os soldados,” disse Mulenga.
A missão na RCA não é tranquila. Mulenga disse que os seus homens enfrentaram rebeldes que disparavam foguetes de morteiros de 107 mm montados sobre Land Cruisers. Preparar-se para a realidade requer uma mudança no treino.
“Os soldados novatos, que vão para as missões, devem ser preparados psicológica, mental e fisicamente,” frisou. “Na verdade, não é um ambiente onde haja paz para manter, mas uma paz para fazer cumprir.”
Durante o seu tempo na ALFS, Mulenga falou com os seus colegas comandantes sobre a necessidade de adaptar-se à guerra assimétrica, a necessidade de ter consciência situacional ao entrar no ambiente operacional e, acima de tudo, a importância de se compreender as atribuições da missão. “Se não compreender as suas atribuições poderá estar a operar à margem delas,” disse. “As atribuições da ONU devem ser protegidas a todo o custo.”
A Saúde nas Linhas da Frente
A preparação para a pandemia foi um assunto de destaque durante os primeiros meses de 2020 enquanto a COVID-19 se alastrava pelo mundo.
Para o Brigadeiro General Tensai Yilma Mequantie, comandante interino da área da saúde da Força de Defesa Nacional da Etiópia (ENDF), esta é uma preocupação contínua.
“O exército está muito exposto em comparação com outros sectores,” destacou. “Os soldados estão na linha da frente, movimentam-se para aqui e para lá. Têm comunicação com grande parte da sociedade e estão directamente expostos a pandemias.”
Antes do primeiro caso de COVID-19 ter sido declarado na Etiópia, a ENDF criou um comité para desenvolver um plano de prevenção e coordenar com o Ministério da Saúde. A ENDF também contou com o conhecimento trazido da experiência de 26 soldados etíopes que foram destacados para Libéria durante o surto do Ébola de 2014 para dar apoio médico.
“Como exército, estamos a trabalhar com um conhecimento comum, conhecendo a fonte da doença, a transmissão da doença e como estamos a controlá-la,” disse Tensay. “Este conhecimento deve ser transferido para o exército, ensinando, por meio de demonstrações.”
A ENDF, tal como muitas forças de segurança em África, é vulnerável a doenças como HIV/SIDA, malária e cólera. Tensay disse que a ENDF registou sucesso notável contra o alastramento da malária. Ele apontou para o sistema de aviso antecipado da doença e os “grupos eficazes de vigilância” no exército, que fazem a monitoria de surtos e dão treinamento sobre as melhores práticas.
“A malária é uma doença endémica no nosso país,” disse a ADF. “No passado, muitas pessoas morreram por causa da malária, mas hoje não. Temos muito equipamento de protecção, incluindo, um creme repelente utilizado para a protecção, redes mosquiteiras, tratamos de forma adequada os nossos uniformes [para repelir mosquitos].”
Tensay disse que a ALFS é uma oportunidade para o pessoal médico do exército etíope fazer o uso das parcerias feitas durante o Justified Accord em 2019, um exercício do Exército Africano dos Estados Unidos, na Etiópia. Durante o exercício militar, médicos do 212° Hospital de Campanha do exército americano, a 30ª Brigada Médica, formaram o pessoal do Hospital das Forças Armadas, em Adis Abeba. Tensay disse que a parceria entre os dois países foi fortalecida desde aquela altura e agora inclui formação sobre tratamento das vítimas de combate.
“Esta é uma oportunidade de nos reunirmos para que, no futuro, durante qualquer tempo de guerra ou qualquer tempo difícil, tenhamos um conhecimento comum,” disse Tensay. “Preparamo-nos juntos.”
Preparando-se para o Pior
Para as Ilhas Maurícias, a segurança começa com a preparação para os desastres. A pequena nação insular do Oceano Índico está exposta a ciclones, tsunamis e inundações.
Mas se o país tem desvantagens geográficas, Khemraj Servansing, comissário-adjunto da polícia das Ilhas Maurícias, acredita que a preparação oferece ao país uma vantagem. “Estamos expostos a calamidades naturais. É a natureza, e não se pode mudar,” disse. “O nosso governo investiu massivamente em questões relacionadas com a redução de riscos de desastres naturais.”
Servansing lidera o Centro de Gestão e Redução do Risco de Desastres das Ilhas Maurícias, que foi criado em 2015. Quando uma ameaça, como um ciclone, é detectada, o país activa um Centro Nacional de Operações de Emergência com várias agências. O Comité Nacional de Crises coordena com os centros de gestão de emergência locais em cada um dos 12 municípios do país. O processo deve ser perfeito. Em caso de um tsunami, eles terão menos de seis horas para tirar os cidadãos para zonas seguras.
“O foco agora não está apenas na resposta,” disse Servensing. “Não esperamos que o desastre aconteça. Mas temos de ser proactivos.”
As Ilhas Maurícias também criaram um mapa de risco de inundações e investiram 2% do seu produto interno bruto anual em medidas de resiliência. A preparação é cara e requer muito tempo, mas Servansing acredita que vale a pena.
Há quatro anos, a infra-estrutura de resposta do país chegou a fazer com que fosse a 13ª nação mais vulnerável a desastres do mundo, de acordo com o World Risk Report. Até 2019, esse número tinha baixado para a 47ª posição.
“Reduz-se o risco porque, se houver um evento grande, as perdas económicas que o país incorrerá serão muitas, muito mais do que aquilo que iremos investir na redução de risco de catástrofes,” disse Servansing.
Na ALFS, Servansing estava mais interessado em ouvir de países e especialistas com experiência em calamidades naturais em grande escala. Todos os países, disse ele, devem ter um plano para coordenar a ajuda que irão receber, para supervisionar as acções de organizações não-governamentais e permitir que os bens de ajuda humanitária sejam desalfandegados e entrem no país.
“Organizar a recepção para todas estas organizações entrarem no seu país não é tarefa fácil. É muito complicado,” comentou. “É o país anfitrião que tem de apropriar-se disso. É necessário que você dirija a operação, não eles. Então, temos de ter um plano.”