EQUIPA DA ADF
Desde terras aráveis a campos de petróleo, o exército sudanês está profundamente enraizado nas indústrias que estão no centro da economia do país. Os Sistemas de Indústrias de Defesa (DIS), controlados pelo exército, operam mais de 250 empresas, colectivamente avaliadas em 2 bilhões de dólares, que produzem uma variedade de equipamento para o uso do exército e para o uso civil. Para além da produção de equipamento militar, as empresas do DIS estão envolvidas com ouro, mármore, cabedal, pasta arábica e utensílios domésticos.
Os DIS também investiram em telecomunicações, sector bancário, distribuição de água, empreendimentos imobiliários, aviação, transporte, fármacos e têxteis. Para além disso, os DIS controlam 60% das importações de trigo do Sudão.
“Eles estão em todo o lugar,” Jean-Baptiste Gallopin, um investigador do Conselho Europeu de Relações Internacionais, escreveu numa análise da situação política e económica do Sudão.
Através dessas empresas, o exército ganha um rendimento fora do orçamento para financiar as operações. Pelo menos 50 empresas financiam as Forças de Apoio Rápido geridas pelo General Mohammed Hamdan Dagalo, também conhecido por Hemedti. Todo este rendimento é livre de impostos.
Depois da deposição do governante de longa data, Omar al-Bashir, os líderes civis do Sudão anunciaram uma agenda ambiciosa, em preparação das eleições planificadas para 2023 — uma agenda que incluía alienar os acordos empresariais civis do exército e cobrar-lhes impostos.
O General Mohammed Fattah al-Burhan acabou com esses planos em 2021 quando dissolveu o Conselho de Soberania no poder, prendeu o Primeiro-Ministro Abdalla Hamdok e encerrou as investigações às actividades militares.
Desde o golpe de Estado, protestos contra a junta tornaram-se uma parte normal da vida no Sudão.
A experiência do Sudão ilustra o risco que os exércitos representam para o governo civil e a sua própria credibilidade quando entram nos negócios por si próprios.
Sudão não é o único. Desde Cuba ao Zimbabwe, dezenas de exércitos na Ásia, África e na América Central e América do Sul envolvem-se nos negócios por uma variedade de motivos:
Os governos nacionais não são capazes de financiar completamente o exército e encorajam-no a angariar os seus próprios fundos através de acordos.
Uma falta de profissionalismo permite que os membros de todo o exército se envolvam num estilo de empreendedorismo do tipo “cada um por si.”
Os líderes civis e militares desenvolvem uma relação simbiótica que mantém os civis no poder enquanto permitem que o exército faça a gestão dos seus próprios assuntos. Em alguns casos, os líderes civis acreditam que permitir que o exército ganhe lucros a partir das suas posições é fazer com que os seus governos sejam a “prova de golpe de Estado.”
“O envolvimento do exército na economia funciona como uma estratégia de sobrevivência para os líderes e um esquema de criação de lucro para o exército,” a investigadora Roya Izadi escreveu no Journal of Conflict Resolution.
De acordo com Izadi, 47 exércitos lançaram as próprias empresas comerciais entre 1950 e 2010. Os exércitos do Sudão do Sul e do Gana abriram as suas próprias empresas depois de 2010. Argentina, Haiti, Índia, Paraguai e Uruguai encontram-se entre os poucos países que encerraram empresas militares nas últimas décadas.
Embora as empresas militares possam resolver os problemas de financiamento do governo a curto prazo, elas criam muitos mais problemas a longo prazo, de acordo com especialistas.
Exemplos históricos demonstram que, enquanto os interesses empresariais militares crescem, a corrupção que eles fomentam degrada a prontidão do exército, uma vez que a cadeia de comando se concentra mais em fazer dinheiro do que em defender o país. Afastando as empresas privadas, as empresas militares destroem as relações civil-militares.
Com o passar do tempo, as empresas militares tornam-se predadoras porque as forças armadas monopolizam os recursos em detrimento do país, de acordo com Ayesha Siddiqa, autora do livro “Militares Inc.: Inside Pakistan’s Military Economy (Um Olhar sobre a Economia Militar do Paquistão).”
“O poder económico militar segue em espiral para fora,” disse Siddiqa à ADF numa entrevista. “Quanto mais se procura agradá-lo, mais ele fica ambicioso.”
As Origens das Empresas Militares
A Célula Nacional de Logística do Paquistão (NLC) foi criada em 1978 para desenvolver estradas, caminhos-de-ferro e outras infra-estruturas necessárias para resolver o problema de transportes no Porto de Karachi, quando as autoridades civis demostraram incapacidade de o fazer. Os países, muitas vezes, recorrem ao exército quando estão em crises, fornecendo-os um ponto de entrada para a economia do país.
A NLC, que foi criada pelo quartel-mestre-general do exército paquistanês, é um exemplo de como o exército entra em negócios. Em vez de dissolver-se depois da crise, a NLC expandiu as suas operações de forma significativa.
As guerras repetitivas do Paquistão com a Índia revelam um outro motivo pelo qual os exércitos entram nos negócios: para financiar tudo, desde as operações diárias até aos benefícios dos veteranos. Através de uma rede de fundações e subsidiárias, o exército do Paquistão angariou aproximadamente 20 bilhões de dólares, somente em 2017. O orçamento oficial da defesa naquele ano era de 11,5 bilhões de dólares.
Em países com governos fracos, os líderes civis consideram as empresas militares como uma forma de manter as forças armadas felizes, de acordo com Izadi. No final, contudo, as empresas militares tornam-se uma espada de dois gumes.
A autonomia financeira oferece às forças armadas um sentimento de poder e confiança de serem independente dos civis ‘incompetentes,’ disse Siddiqa. “Enquanto o exército pode fingir que está a acrescentar algo para a segurança nacional, na realidade, está a acrescentar a ameaça.”
Empresas Militares e Corrupção
O Paquistão serve de um exemplo de como as empresas militares se desenvolvem e um alerta sobre o que pode acontecer se não forem controladas.
Desde finais da década de 1970, o exército, a marinha e a força aérea do Paquistão concorreram para obter as receitas, expandindo as suas empresas para todos os cantos da economia nacional.
Quando os paquistaneses compram sapatos, fazem reservas para férias ou fazem transacções bancárias, colocam dinheiro no exército. Quando enviam bens, a NLC — entre as maiores frotas de transporte do sector público na Ásia — faz o trabalho com o seu pessoal de 2.500 soldados no activo. Quando os paquistaneses viajam de avião, um piloto do exército ou da força aérea fica no comando, dependendo da linha aérea.
Com ligações fortes com o governo e uma força de trabalho subsidiada pelos impostos dos cidadãos, as empresas militares do Paquistão facilmente conseguem uma vantagem em relação às outras na obtenção de contratos com o governo. A empresa de caminhos-de-ferro do Paquistão, de propriedade do Estado, por exemplo, transportou 65% da carga daquele país em 1980. Entre a sua rede de camiões e serviços ferroviários, a NLC reduziu o volume transportado da empresa de caminhos-de-ferro do Paquistão para transportar menos de 15% da carga daquele país até 2010.
“A NLC está a afastar todos outros concorrentes,” disse Siddiqa à ADF.
O alcance das empresas militares no Paquistão desvia uma vasta quantidade de dinheiro, que de outro modo iria alimentar as empresas privadas, para os bolsos de oficiais reformados e no activo que estão no topo dos sistemas de empresas militares, afirmam os especialistas.
O foco do exército em fazer dinheiro alimenta a corrupção e coloca em risco a prontidão militar do Paquistão. Os oficiais subalternos brincam com o sistema de aquisições do exército para obter favores dos superiores que controlam as promoções e outros privilégios, como a distribuição de terras agrícolas lucrativas, disse Siddiqa, a antiga directora do Gabinete de Pesquisa Naval do Paquistão.
“Até à categoria de capitão, os oficiais fizeram avaliações de aquisições correctas,” disse Siddiqa à ADF. “De capitão em diante, de repente, tudo vira do avesso.”
Ao colocar soldados para trabalharem como construtores de estradas e recepcionistas de lavandarias, em vez de os treinar para missões, os líderes do exército do Paquistão estão a prejudicar a prontidão militar do país, disse Siddiqa.
“Quando os exércitos gerem empresas, os seus interesses económicos competem com as suas obrigações de segurança nacional,” escreveu Izadi.
Controlar as Empresas Militares
“Quando um exército se torna um actor económico, é extremamente difícil que os governos os convençam a abandonar as actividades económicas,” escreveu Izadi. “É extremamente difícil que os líderes confisquem as empresas sob a propriedade do exército.”
Isso acontece mesmo enquanto as empresas militares profundamente enraizadas fazem com que o país fique menos atractivo para investimentos estrangeiros e prejudica as relações entre o exército e a população civil, de acordo com um estudo da Transparência Internacional (TI).
Consideremos o caso da Indonésia: de acordo com a TI, o governo comprometeu-se, em 2004, em encerrar as operações empresariais do seu exército, a Tentara Nasional Indonesia (TNI), para fazer com que esta preste contas em tudo à população civil.
Depois de cinco anos sem que nada fosse feito, o governo permitiu que a TNI reorganizasse as suas empresas em 23 fundações e 1.000 cooperativas militares com a compreensão de que qualquer rendimento ganho iria para o tesouro do Estado. Até 2019, a TNI continuou no controlo firme dos seus interesses empresariais, de acordo com o investigador Meidi Kosandi, da Universidade da Indonésia.
“Depois de 20 anos de reforma política na Indonésia, desde 1998, tudo indica que o exército não demonstrou um forte compromisso para com o princípio de não participação nos negócios,” Kosandi escreveu no seu estudo de 2019.
O poder estatal é um factor importante na evolução e controlo dos empreendimentos militares, Kristina Mani, uma especialista em empresas militares, do Oberlin College, disse à ADF. Governos fracos são incapazes de voltar a moldar os seus exércitos ou acabar com actividades comerciais militares, disse.
“Reformar qualquer instituição envolve reconfigurar as relações de poder,” disse Mani, que estudou actividades empresariais militares na China, Paquistão e El Salvador.
“Os governos civis podem fazer isso se tiverem muita legitimidade doméstica ou bom apoio internacional com verdadeira influência.”
Os países que paralisaram empresas militares tiveram de tomar medidas drásticas para o fazer. Haiti, por exemplo, dissolveu o seu exército por completo em 1995, em parte, para colocar um fim às empresas militares. Em outros casos, governos civis e suas forças armadas passaram muitos anos a negociar para acabar com interesses empresariais militares fora do orçamento.
“Exércitos altamente profissionais têm maior probabilidade de seguir actividades económicas para fins institucionais em vez de fins individuais,” disse Mani. “Em Estados fortes, um exército ficará mais apegado aos objectivos determinados pelos oficiais do Estado em vez de seus próprios interesses.”
Reduzir empresas militares beneficia as forças armadas e os governos civis a quem eles devem prestar contas. Isso porque, a longo prazo, as empresas militares retiram a legitimidade dos exércitos que as praticam, disse Siddiqa à ADF.
“Isso cria fricção, o que não é saudável para o exército nem para o Estado,” concluiu.