EQUIPA DA ADF
FOTOS DE: AFP/GETTY IMAGES
Enquanto jovens rondavam pelas ruas de Mocímboa da Praia com catanas e AK-47s, no dia 5 de Outubro de 2017, algumas pessoas da cidade espreitavam pelas janelas com medo, gravando a marcha desafiadora com os seus telemóveis.
Quando um militante empunhando uma arma passava por ali, um residente sussurrou o famoso e temível nome: “al Shabaab.”
A cena faz parte de um documentário da BBC Africa Eye, intitulado “Filhos de Mocímboa: a crise de extremismo em Moçambique,” que descreve os desafios representados pelo grupo terrorista que assola a província de Cabo Delegado desde o seu primeiro ataque em Outubro de 2017. Naquele assalto, cerca de 30 insurgentes cercaram as três esquadras da polícia daquela cidade, matando 17 pessoas, incluindo dois agentes da polícia e invadiram os arsenais. Cabo Delgado é conhecido pela alcunha Cabo Esquecido.
Os residentes locais informalmente utilizam o nome al-Shabab, que se traduz para “a juventude,” para se referir ao grupo. Mas este grupo não está afiliado ao grupo terrorista da Somália, ligado ao al-Qaeda, que tem o mesmo nome. É também chamado Ansar al-Sunna, que significa “os defensores da tradição.”
O ataque de 2017 foi o primeiro de muitos na região e causou a morte de mais de 3.700 pessoas e deixou mais de 850.000 pessoas deslocadas, até Fevereiro de 2022. As tropas e a polícia ruandesas entraram no país em Julho de 2021 e, em pouco tempo, recapturaram Mocímboa da Praia com uma força de 1.000 homens.
A missão multinacional da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral em Moçambique (SAMIM) foi destacada dias depois das forças ruandesas, acrescentando várias centenas de soldados para as tropas de Moçambique entre oito países participantes: Angola, Botswana, República Democrática do Congo, Lesoto, Malawi, África do Sul, Tanzânia e Zâmbia. As forças terrestres, na sua maioria, vieram de Botswana, Lesoto, África do Sul e Tanzânia, tendo outros participantes, contribuindo com logística, reportou o jornal sul-africano, Daily Maverick, em Janeiro de 2022.
Mesmo numa altura em que as forças moçambicanas, ruandesas e da SAMIM lograram sucessos notáveis durante o segundo semestre de 2021 e até 2022, a violência brutal persistiu e, com ela, perguntas que procuram saber se a insurgência pode ter iniciado anos atrás.
UMA HISTÓRIA DE ISOLAMENTO
A cidade portuária de Mocímboa da Praia situa-se a mais de 2.600 km de estrada da capital de Moçambique, Maputo. A distância em relação aos centros de governo é uma característica comum de zonas radicalizadas em países africanos. As distâncias tendem a resultar em presença reduzida do governo e de serviços em zonas recônditas, criando percepções de marginalização entre os locais. Exemplos incluem o norte do Mali, onde nasceu o expansivo extremismo jihadista daquele país e o norte da Nigéria, onde teve origem a insurgência do Boko Haram.
A distância é exacerbada mais ainda pelo facto de que Moçambique ainda está a recuperar de uma guerra civil brutal que decorreu de 1977 a 1992. Estima-se que a guerra tenha matado milhares de pessoas e deixado outras milhares deslocadas. Para além disso, a costa de Cabo Delgado geralmente está associada aos rebeldes do movimento de Resistência Nacional Moçambicana, conhecido como RENAMO. Na guerra, as suas forças lutaram contra a Frente de Libertação de Moçambique, conhecida como FRELIMO, que agora é liderada pelo Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi.
Alguns afirmam que esta divisão política serve para separar mais ainda Cabo Delgado e o seu povo da atenção e das preocupações do governo. Um outro grande problema regional é a descoberta e a capitalização de vastas reservas de gás natural e interesses em pequenas minas de rubi. Especialistas apontam para o facto de os residentes locais estarem a ser excluídos e — por vezes retirados — de locais de extracção mineira de rubis na região, depois de beneficiar por muitos anos do comércio artesanal, perdendo assim o acesso a oportunidades económicas, incluindo ilícitas.
Geografia, história e política. Todas elas são culpadas em vários graus pelas condições que subsistem actualmente em Cabo Delgado. Mas os especialistas afirmam que o governo de Moçambique também cometeu erros ao longo da caminhada, por não ouvir os alertas e as preocupações das bases. Se as forças de segurança tivessem prestado atenção muito antes, em 2015, talvez a insurgência pudesse ser confrontada de forma eficaz no seu estágio inicial.
A RESPOSTA DE MOÇAMBIQUE
Quando terminou o ataque de Outubro de 2017, a polícia moçambicana chegou, atribuiu a culpa pela violência aos bandidos e declarou que iria lidar com a situação dentro de uma semana, Dr. Salvador Forquilha, investigador sénior do Instituto de Estudos Sociais e Económicos de Moçambique, disse à ADF.
Forquilha disse que o governo cometeu vários grandes erros em 2017. Primeiro, as forças de segurança responderam com violência e encerraram mesquitas e fizeram algumas apreensões rápidas. Isso semeou confusão e também deixou agitados alguns muçulmanos moçambicanos, de acordo com os relatos.
“Penso que o governo não estava preparado para lidar com um fenómeno como estes,” disse Forquilha à ADF. “Recorde-se que tivemos uma guerra civil durante 16 anos e ainda estamos no processo de terminar com o processo da guerra civil com a reintegração de antigos membros da guerrilha do grupo rebelde RENAMO. …Portanto, isso foi uma surpresa.”
Por último, disse, houve problemas de organização e coordenação entre a polícia e o exército. Às vezes, essa falta de coordenação levou a conflitos entre os dois grupos. Enquanto este problema persistia, os insurgentes espalharam-se para mais e mais zonas até que as forças do Ruanda e da SAMIM foram destacadas para aquele lugar, em 2021.
“Penso que a abordagem do lado do governo para lidar com o fenómeno foi errada desde o início e, de facto, foi tarde quando o governo entendeu que o país estava a enfrentar um problema sério ligado ao jihadismo e ao terrorismo,” disse Forquilha à ADF.
SEMENTES DE EXTREMISMO
O ataque de Outubro de 2017 é amplamente considerado o primeiro ataque organizado e coordenado do Ansar al-Sunna. Mas não foi o primeiro exemplo de violência em Cabo Delgado ou a primeira indicação de que o ensino islâmico radical estava a germinar na região.
O Ansar al-Sunna surgiu em 2015, atacando muçulmanos locais. O documentário da BBC Eye indica que os líderes locais estavam a soar o alarme sobre novas formas de ensinamento islâmico a entrarem na região em 2015.
O presidente do município de Mocímboa da Praia anunciou que um grupo chamado al-Shabaab estava a recrutar jovens na região e que representava uma ameaça à paz, reportou a BBC Eye. Um ano depois, em 2016, um director de escola disse à Rádio Comunitária de Nacedje, em Macomia, que a participação nas escolas tinha diminuído e que ele culpava uma seita islâmica que dizia que ir à escola era inútil.
Em 2016, um chefe local enviou uma lista de preocupações ao conselho islâmico local com elementos de uma pregação peculiar dos insurgentes. As instruções orientavam os adoradores para orarem sem tirarem os seus sapatos, não trazerem identificação consigo, evitarem escolas financiadas pelo Estado e evitarem a bandeira e os eventos nacionais. “Eles estiveram a recrutar muçulmanos que não estavam assim cientes, que não tinham estudado e eram pobres,” disse ele na reportagem da BBC.
“Os líderes muçulmanos estavam realmente a alertar e alguns deles foram falar com as autoridades locais para dizer ‘olha, estamos a enfrentar muitos desafios nas nossas mesquitas locais,’” contou Forquilha à BBC. “Temos pessoas que vêm de fora, especialmente jovens, que tentam pregar um islamismo muito radical. Não houve acções muito claras por parte do governo… de modo a lutar contra o grupo mesmo no início.”
INFLUÊNCIAS EXTERNAS
Problemas ligados a ineficácias do governo há muito estiveram presentes na província de Cabo Delgado e nas zonas circunvizinhas. Mas as raízes do islamismo radical podem estender-se para fora da região e atravessar a fronteira para Tanzânia e outros lugares, de acordo com alguns especialistas. O Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS) realizou um webinar em Outubro de 2021 para debater as origens da violência em Cabo Delgado.
Nesse webinar, Dino Mahtani, então director-adjunto do Programa Africano do Grupo Internacional de Crise, apontou para a repressão dos radicais islâmicos na Tanzânia, em 2017, que podem ter pressionado os extremistas a entrarem em Moçambique, onde se juntaram aos extremistas daquele ponto.
As repressões, disse Mahtani, tiveram como alvo aqueles que eram afiliados “a franquias do al-Qaeda da costa Swahili” desde a Somália, passando pelo Quénia e pela Tanzânia, entrando depois em Moçambique. O grupo do Estado Islâmico, disse, está a procurar “furar” a rede e incluí-la na sua posse que já inclui as Forças Democráticas Aliadas, na República Democrática do Congo. Estudos demonstram que os tanzanianos recrutados desde 2017 aparecem em acampamentos na região leste da RDC e depois em Cabo Delgado, “então, existem movimentos de ida e volta de rapazes da costa swahili que participam em conflitos violentos em Cabo Delgado, mas também no leste do Congo,” disse Mahtani.
Dr. Adriano Alfredo Nuvunga, director do Centro para Democracia e Desenvolvimento, uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos em Moçambique, concorda que as influências externas moldaram a insurgência de Cabo Delgado.
A região, disse Nuvunga no webinar do ACSS, há muito vem sendo marginalizada e negligenciada pelo governo central. “Todo o tecido social que é conducente ao conflito está ligado a problemas locais,” disse através de um intérprete. Mas a violência bárbara perpetrada pelos insurgentes, que inclui decapitações e mutilações, aponta para métodos terroristas que estão a ser importados para Cabo Delegado.
O QUE PODIA SER FEITO?
Forquilha concorda que muitos extremistas atravessaram a fronteira, vindo da Tanzânia. “O que é surpreendente é ver que o governo levou tanto tempo, por exemplo, para cooperar com Tanzânia,” disse à ADF. Moçambique podia ter aprendido mais sobre o que esperar e como lidar com a insurgência, comunicando com Quénia, Tanzânia e Uganda, todos eles confrontaram violência extremista há vários anos.
Seria muito bom que outros países africanos que enfrentam desafios semelhantes levassem potenciais ameaças a sério desde o início, disse. Isso inclui fazer uso eficaz de serviços de inteligência estatais e procurar garantir que as instituições do governo sejam suficientemente fortes para garantir resiliência e oportunidades económicas para os residentes.
Se o governo de Moçambique tivesse seguido esta abordagem mais colaborativa desde o início, isso podia ter impedido que os insurgentes se incorporassem de forma incontrolável na região, o que veio a causar números significativos de pessoas deslocadas internamente e outros problemas, considerou Forquilha.
Forquilha, que já realizou pesquisas e inquéritos nas regiões afectadas de Cabo Delgado, estava na região, em Janeiro de 2022, a conversar com residentes de Pemba, uma cidade portuária e capital da província. Disse que os residentes afirmaram que “ainda existem ataques em alguns lugares,” apesar da presença das forças militares multinacionais. Pequenos grupos de insurgentes agora têm como alvo pequenas aldeias para os seus ataques, o que será mais difícil e levará mais tempo para os soldados os combater. As forças militares podem minimizar o problema de segurança, “mas isso não irá eliminar a insurgência em si,” disse.
Antes da intervenção das forças do Ruanda e da SAMIM, Moçambique recorreu a empresas militares privadas: primeiro, ao famoso Grupo Wagner, da Rússia, depois ao sul-africano, Dyck Advisory Group. As forças do Grupo Wagner deixaram o país depois de sofrerem pesadas derrotas, e o Dyck saiu depois do seu contrato terminar no início de 2021. Os participantes do webinar do ACSS concordaram com Forquilha que as intervenções militares por si só provavelmente não irão acabar com a insurgência em Moçambique.
Idriss M. Lallali, director da Unidade de Alerta e Prevenção, no Centro Africano para Estudos e Pesquisas sobre o Terrorismo, traçou paralelos entre Moçambique e aquilo que aconteceu no Mali desde 2012. Moçambique deve “restabelecer a presença do Estado” e criar a confiança entre o Estado, o sector de segurança e a população que serve.
“Se não desenvolver certas partes do seu país, isso virá contra o governo em algum momento,” disse Lallali no webinar. “E penso que o que aconteceu no Mali está agora a acontecer em Moçambique.”
Neste ponto, disse Forquilha, Moçambique terá de lidar com as dinâmicas internas com esforços socioeconómicos que abordam a pobreza e a falta de emprego. Isso faria muito em dar oportunidades aos jovens, preterindo o recrutamento dos extremistas. Tais esforços também precisam de alcançar as províncias vizinhas de Nampula, Niassa e Zambézia, onde as condições são semelhantes.
A dimensão externa das ligações do Ansar al-Sunna com organizações terroristas internacionais, como o grupo do Estado Islâmico e as redes da África Oriental, destaca a necessidade de cooperação com outros países. O grupo do Estado Islâmico começou a reivindicar os ataques dos insurgentes em 2019, “então existe uma ligação e nós não podemos recusar a ligação,” disse Forquilha.
“Não penso que um país sozinho possa lutar contra o terrorismo, jihadismo, ou seja o que for, sem cooperar com outros países, com outros Estados, com outros outras nações,” disse Forquilha. “Porque tornou-se um fenómeno global, uma ameaça global e têm de ser combatida como tal. Por isso, a componente da cooperação é muito, muito importante a ser tida em conta.”