EQUIPA DA ADF
Quando os piratas no litoral da Costa do Marfim viram um arrastão de pesca enferrujado, provavelmente acharam que era um alvo fácil. Os piratas munidos de armamento pesado acreditaram que podiam rapidamente assumir o controlo do navio, navegar de volta para a região delta da Nigéria e manter refém a sua tripulação para depois exigir dinheiro de resgate. Eles também, provavelmente, planearam ficar com o arrastão para utilizá-lo como uma “embarcação-mãe” para futuros sequestros.
As coisas não correram como o planificado.
No dia 15 de Maio de 2020, 10 piratas subiram a bordo do Hailufeng 11, de bandeira chinesa, subjugaram os seus 18 tripulantes e desligaram o seu sistema de identificação automática (AIS). O transponder AIS transmite a localização do barco, e os piratas acharam que desligando-o faria com que a embarcação ficasse invisível aos sistemas de monitoria.
Mas as autoridades ainda estavam a vigiar.
Tendo recebido uma chamada de emergência do proprietário da embarcação, as autoridades foram capazes de determinar manualmente a última localização conhecida do Hailufeng. Eles fizeram a monitoria dos seus movimentos em tempo real com recurso às ferramentas de Conscientização do Domínio Marítimo (MDA, acrónimo em inglês), partilhadas por todos os países da região. Quando a embarcação roubada atravessou as águas do Gana, Togo e Benin, os profissionais que trabalham com MDA, nesses países, rastrearam-na, trocaram informação e destacaram barcos para a perseguirem.
Quando o barco atravessou as águas nigerianas, no dia 16 de Maio, o barco Nguru, da Marinha Nigeriana, estava à espera. Nguru encostou ao lado do barco de pesca a cerca de 140 milhas náuticas a sul de Lagos e ordenou que se desligassem os motores. Quando os piratas se recusaram, os comandos nigerianos fizeram um embarque oposto, subindo a bordo do Hailufeng, enquanto prosseguiam-no a uma velocidade de mais de 9 nós.
Não houve ferimentos nos marinheiros nem na tripulação, e a Marinha Nigeriana acompanhou o Hailufeng de volta para o Porto de Lagos e entregou os piratas para serem julgados.
“A Marinha Nigeriana tem capacidade e força para lidar com esse tipo de perpetradores,” disse o Comodoro Ibrahim Shettima, da Marinha Nigeriana, quando anunciava a apreensão.
Shettima acrescentou estendendo os seus agradecimentos especiais ao vizinho Benin, que partilhou informação com as autoridades nigerianas. “Isso sublinha a necessidade de um aumento da cooperação regional, em termos de partilha de informação e aprofundamento da capacidade de resposta,” disse Shettima.
Esse sequestro frustrado destaca o quanto a região desenvolveu em apenas alguns anos. A cooperação, a tecnologia e a formação demonstradas durante o esforço de recuperação, que durou 39 horas, seriam impossíveis até há bem pouco tempo, dizem especialistas.
Isso “demonstrou o domínio do uso de sistemas de monitoria de embarcações por especialistas da região e a sua utilidade para a monitoria de embarcações, para lutar contra a pesca [ilegal] e para a protecção da vida humana e de bens,” disse Seraphin Dedi, secretário-geral do Comité das Pescas do Centro-Oeste do Golfo da Guiné.
Sea Vision
Rastrear todos os navios que cruzam uma vasta extensão de mar é difícil. Na África Ocidental, onde as marinhas geralmente têm apenas algumas embarcações de profundidade e poucos meios aéreos, é ainda mais difícil. A tecnologia pode ser um multiplicador de forças.
Desde 2012, uma ferramenta de baixo custo desempenhou um papel importante na melhoria de MDA dos países costeiros de África. O Sea Vision foi criado pelo Departamento de Transportes dos EUA a pedido das Forças Navais para África (NAVAF) e foi oferecido gratuitamente às forças navais africanas. Nessa altura, o crime marítimo era uma ameaça crescente, e as marinhas em todo o mundo tentavam estar à altura do desafio. “Sempre fomos bons em rastrear forças inimigas — forças vermelhas — e nossas forças –– forças azuis. Mas rastrear navios comerciais, na verdade, nunca tínhamos trabalhado muito nesta área,” disse o gestor do projecto MDA, das NAVAF, David Rollo.
O Sea Vision é uma ferramenta MDA não classificada que exige apenas uma ligação à internet, nome de usuário e palavra passe. Permite que os usuários rastreiem embarcações comerciais no mundo inteiro. Com recurso aos dados AIS obtidos a partir de radares costeiros, satélites e outras fontes, o Sea Vision dá uma imagem completa sobre onde um navio está, onde esteve e o que está a bordo. Esta foi uma reviravolta para muitos países da África Ocidental e foi adoptado no norte e no sul da África Ocidental, de Angola à Mauritânia.
“Rapidamente expandiu-se,” disse Rollo. “Houve muitas pessoas que o utilizaram porque naquela altura havia muitos países que não tinham os seus próprios radares costeiros.”
Hoje, o Sea Vision é a única ferramenta MDA partilhada pelos 25 países da África Ocidental e Central que fazem parte da arquitectura de segurança marítima regional, conhecida como Código de Conduta de Yaoundé. Os usuários, geralmente de centros de operação marítima de certos países, podem criar listas de embarcações, pesquisas e alertas personalizados numa grande variedade de critérios. Também existe uma função de chat que permite que os usuários troquem informação. Existem grupos comunitários em que os usuários podem fazer perguntas ou colocar informação para que todos possam ver.
Esta capacidade de MDA e a troca de informação levaram a respostas mais rápidas e melhor conhecimento daquilo que estava a acontecer, em particular no Golfo da Guiné.
“Costumava ser assim: caso um arrastão de pesca fosse sequestrado, recorria-se ao chefe do pessoal da marinha de um país, este entrava em contacto com a CNS de um outro país e podia descer a níveis mais baixos, mas já seriam dois, três dias, e nessa altura já é muito tarde,” explicou Rollo. “Agora estes homens passam informação de forma rápida. É espantoso.”
A colaboração é reforçada pelo exercício marítimo anual, denominado Obangame Express, patrocinado pelos EUA. Desde a década passada, Obangame permite que anualmente profissionais de MDA de países da África Ocidental se reúnam, colaborem e criem confiança.
“Todos eles trabalham juntos durante os exercícios. E os organizadores levam de propósito pessoas de países diferentes e as colocam juntas,” disse Rollo. “Agora todos eles conhecem-se uns aos outros e conversam num nível profissional e pessoal. Então, quando uma coisa acontece, eles já têm pessoas com quem podem entrar em contacto.”
Código de Conduta de Yaoundé
A recuperação do Hailufeng também destaca o desenvolvimento do Código de Conduta de Yaoundé. Assinado em 2013 por 25 países da África Ocidental e Central, o código fornece a estrutura para operações marítimas conjuntas, partilha de inteligência e quadros legais harmonizados. O código inclui cinco zonas, dois centros regionais e um Centro de Coordenação Inter-regional que vigia 6.000 quilómetros de linhas costeiras em 12 portos principais.
De acordo com uma análise feita pelo Dr. Ian Ralby, especialista em segurança marítima e Director-Executivo da I.R. Consilium, a informação sobre o sequestro do dia 15 de Maio foi partilhada de forma rápida e exacta com as autoridades competentes. Ele escreveu que o Ministério das Pescas da Costa do Marfim primeiro emitiu o alerta e depois partilhou a informação com a Comissão Permanente Inter-ministerial para a Acção do Estado no Mar, que, por sua vez, a partilhou com as autoridades da zona e da região na arquitectura Yaoundé.
Ralby disse que a partilha de informação foi dirigida pelo Centro de Coordenação Marítima Multinacional da Zona E, que inclui Benin, Nigéria e Togo. O centro regional conhecido como CRESMAO, que lida com águas da África Ocidental, desempenhou um papel de coordenação assim como o fez a sua contraparte da África Central, CRESMAC, que já estava preparada para enviar barcos caso a perseguição se alastrasse para além das águas nigerianas.
“Embora a marinha nigeriana mereça o crédito pelo sucesso da operação, existem muitas instituições sem as quais a situação não teria sido resolvida tão rapidamente e de forma bem-sucedida,” escreveu Ralby, num artigo publicado pelo The Maritime Executive.
A interdição bem-sucedida esteve em contraste com o desvio de um petroleiro, de 2016, o MT Maximus. Durante aquele incidente, as marinhas regionais contaram muito com a ajuda das marinhas estrangeiras.
“Muitos argumentaram que o incidente de 2016 não teria sido uma história de sucesso se não fosse pela assistência de marinhas estrangeiras, que trabalharam para rastrear a embarcação e coordenar o fluxo de informação sobre a mesma,” escreveu Ralby. “Desta vez, a Arquitectura Yaoundé e os Estados da região foram capazes de fazê-lo sem qualquer envolvimento estrangeiro.”
As 10 detenções destacaram um outro desenvolvimento positivo. Em 2019, a Nigéria promulgou a Lei da Supressão da Pirataria e Outros Delitos Marítimos. Isso modernizou as leis de combate à pirataria do país e destaca sanções severas de 15 anos de prisão à prisão perpétua e multas de até 500 milhões de naira, ou 1,3 milhões de dólares, a pessoas ou organizações condenadas por crimes marítimos.
Durante as interacções recentes do Obangame Express, o Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime analisou leis marítimas nacionais e levou a cabo simulações de pirataria. Vários países, incluindo a Nigéria, actualizaram ou estão em processo de actualizar as suas leis de combate à pirataria.
Os piratas que desviaram o Hailufeng estarão entre os primeiros a serem julgados nos termos do novo decreto da Nigéria.
“A nossa apreensão recente mostra à comunidade internacional que nós não lidamos com ilegalidades nas nossas águas de forma branda,” disse Dr. Bashir Jamoh, director-geral da Agência Nigeriana de Administração e Segurança Marítima.