EQUIPA DA ADF
Os últimos dois anos têm sido difíceis para as forças de manutenção da paz das Nações Unidas. A missão no Mali foi encerrada subitamente. A missão na República Democrática do Congo começou a ser encerrada, enquanto as missões na República Centro-Africana e na fronteira entre o Sudão e o Sudão do Sul continuam a enfrentar desafios.
Num estudo de 2023, o professor de investigação Cedric de Coning, do Instituto Norueguês de Assuntos Internacionais, observou que, desde 2014, não foram destacadas novas missões de manutenção da paz da ONU, para além das missões políticas especiais. As missões na República Centro-Africana, na República Democrática do Congo e no Mali não conseguiram “proteger os civis a uma escala que corresponda às expectativas criadas pelos seus mandatos.”
As autoridades da ONU dizem que, no ano passado, alguns intervenientes questionaram se as missões de manutenção da paz da ONU teriam algum futuro. O Observatório Global do IPI disse que havia um “sentimento predominante de que a ONU deixaria de enviar grandes operações multidimensionais de manutenção da paz, que seriam reduzidas em favor de presenças políticas mais leves.” Uma sessão de Dezembro de 2023 da Reunião Ministerial de Manutenção da Paz da ONU mostrou que, embora ainda haja apoio para as actuais e novas missões de manutenção da paz, são necessárias novas abordagens.
As razões para o fracasso das missões são complicadas. Os críticos dizem que as missões são por vezes vistas como uma extensão das forças armadas do país de acolhimento e são responsabilizadas pelos seus fracassos. As forças de manutenção da paz têm, muitas vezes, dificuldade em adaptar-se a mudanças na dinâmica política e cultural. Grupos como o mercenário russo Grupo Wagner — que agora se chama Africa Corps — têm-se imiscuído em operações de manutenção da paz e espalhado desinformação. O financiamento também é um problema, visto que as missões de paz que duram anos podem custar milhares de milhões de dólares.
A ONU tem tido missões de manutenção da paz bem-sucedidas em locais como Costa do Marfim, Libéria e Serra Leoa. Mas os fracassos das missões na RDC e no Mali estão a obrigar o país a reavaliar a forma como conduzirá futuras missões.
“Ao longo dos anos, os mandatos de manutenção da paz da ONU tornaram-se extensos e as responsabilidades das forças de manutenção da paz por vezes confusas,” escreveram Claire Klobucista e Mariel Ferragamo para o Council on Foreign Relations em 2023. O seu relatório incluía um estudo do Professor Theo Neethling, da Universidade do Estado Livre, que observou que, em vez de monitorizar a paz, tal como acordado pelas partes em conflito, algumas operações de manutenção da paz em África foram solicitadas a proteger instalações e infra-estruturas enquanto realizavam a contra-insurgência.
No entanto, os estudos mostram que as missões de manutenção da paz salvam vidas. Klobucista e Ferragamo referem que Lise Howard, da Universidade de Georgetown, descobriu que “as forças de manutenção da paz estão correlacionadas com menos baixas civis e que um maior número de forças de manutenção da paz — em particular, forças de manutenção da paz mais diversificadas — está em paralelo com menos mortes de civis e menos mortes de militares.” Um grupo de peritos modelou cenários com e sem intervenção e concluiu que as missões de manutenção da paz são, em última análise, uma medida eficaz em termos de custos, cujos contributos para atenuar os conflitos e evitar repercussões são frequentemente subestimados. Jean-Pierre Lacroix, o chefe das operações de paz da ONU, também argumenta que as missões são subestimadas.
“Os soldados da paz ajudaram muitos países a percorrer com sucesso o difícil caminho da guerra para a paz, desde a Libéria e a Namíbia até ao Camboja, Serra Leoa, Timor-Leste e muitos outros países,” disse Lacroix à Deutsche Welle. Acrescentou ainda que as operações da ONU têm um forte historial de prevenção e redução da violência e de prevenção da recorrência de guerras.
TEMPO DE MUDANÇA
Há já algum tempo que a ONU tem consciência de que tem de mudar. Em 2018, lançou a iniciativa “Acção para a manutenção da paz” (A4P) e actualizou-a em 2021. A iniciativa inclui agora prioridades para futuras missões:
A coerência colectiva por detrás de uma estratégia política. A estratégia deve abranger a missão e os principais parceiros, incluindo organizações regionais, países-membros, instituições financeiras internacionais e agências das Nações Unidas. As missões também utilizarão o seu poder de convocação para mobilizar os recursos colectivos de todos os parceiros.
Responsabilização das forças de manutenção da paz. É necessário prosseguir os esforços para melhorar a segurança, as condições de vida e o bem-estar das forças de manutenção da paz.
Responsabilização das forças de manutenção da paz. A tónica deve ser colocada na conduta e na disciplina, com destaque para a prevenção, a aplicação, as medidas correctivas e o reforço do apoio às vítimas de exploração e abuso sexual. A responsabilização deve incluir a pegada ambiental das missões e também reconhecer o bom desempenho.
Comunicações estratégicas. Este aspecto deve ser integrado nos ciclos de planeamento e na gestão dos riscos para promover os êxitos e gerir as expectativas. Deve ser dada uma ênfase renovada ao combate à desinformação, à falsa informação e ao discurso de ódio.
Cooperação com os países de acolhimento. O empenho construtivo continua a ser fundamental para as soluções políticas, aumentando a segurança e a protecção das forças de manutenção da paz, reforçando o desempenho e apoiando transições bem-sucedidas.
A iniciativa inclui também dois “temas transversais”: a agenda “Mulheres, Paz e Segurança” e “a manutenção da paz inovadora, baseada em dados e na tecnologia.”
‘A PAZ NÃO PODE SER IMPOSTA’
As missões de manutenção da paz não exigem que as negociações de paz estejam em curso. No entanto, de Coning concluiu que as futuras missões de manutenção da paz têm mais hipóteses de sucesso em países que tenham estabelecido um processo de paz viável. Afirmou que as futuras missões devem começar com um projecto político adequado, salientando que “a paz não pode ser imposta.”
Algumas missões de manutenção da paz têm tido mais a ver com a estabilização do que com a manutenção da paz, observou de Coning. Uma verdadeira missão de manutenção da paz deve ter por objectivo manter um cessar-fogo ou aplicar um acordo de paz com o consentimento de todas as partes em conflito. Nas missões de estabilização, afirmou, a percepção tende a ser a de que a nação anfitriã é a única beneficiária, enquanto os dissidentes e os rebeldes são o inimigo.
De acordo com de Coning, as futuras missões de manutenção da paz terão de ser mais independentes das forças de segurança do país anfitrião e não ser vistas como uma simples capacidade adicional das forças armadas do país. Alertou também para um fenómeno chamado “dilema da estabilização,” em que uma diminuição da hostilidade retira às partes o incentivo para negociar.
Muitas missões de manutenção da paz do passado não tiveram o mandato e a capacidade de neutralizar completamente os grupos rebeldes armados. Em vez disso, infligiram danos a esses grupos, deixando-os “perturbados, mas não derrotados.”
IDEIAS PARA NOVAS MISSÕES
A ONU continua a investigar formas de melhorar as missões de manutenção da paz. No seu estudo, “The Future of UN Peace Operations in a Changing Conflict Environment” (O Futuro das Operações de Paz da ONU num Ambiente de Conflito em Mudança), o investigador da ONU Adam Day ofereceu sugestões sobre como repensar as futuras missões:
Preparar-se para o longo prazo. Day observou que o tempo médio de vida das operações de paz tem aumentado constantemente nos últimos 30 anos. Actualmente, há missões que se prolongam durante anos com poucas perspectivas de produzir uma paz clara e duradoura. Tal como o Banco Mundial observou, as transformações sociais e políticas necessárias para a transição para democracias bem-sucedidas demoram décadas. A fixação de prazos e períodos de mandato para essas missões só é útil para acompanhar o seu progresso.
Day observou que a ONU poderia ter de estabelecer objectivos mais modestos e analisar o que pode ser feito através da manutenção da paz num período de três anos, enquanto planeia o que outras componentes da ONU podem realizar em 20 anos.
Reexaminar a utilização de força pesada. Durante as guerras civis de longa duração, em que não existe um processo de paz viável, a contribuição das tropas com recurso à força pesada “é muito menos certa, enquanto os custos são extremamente elevados, tanto em termos financeiros como humanos.” Por vezes, a força bruta é necessária para proteger os civis e evitar atrocidades, mas este objectivo deve ser claramente estipulado e não deve ser confundido com o apoio a um processo de paz.
Day afirmou que, se os futuros destacamentos incluírem guerras civis em curso, violência assimétrica e “misturas caóticas” de mercenários, milícias e forças estrangeiras, “a utilidade dos soldados de manutenção da paz da ONU deve ser seriamente revista e não presumida como necessária.”
Construir parcerias inovadoras para além da ONU. A ONU estabeleceu parcerias bem-sucedidas com organizações regionais para aumentar a eficácia das operações, como com as tropas da União Africana na Somália. Se a tendência se mantiver, a ONU “será ainda mais marginalizada nos grandes conflitos e terá de investir ainda mais em parcerias do que actualmente,” afirmou Day.
Day disse que as parcerias poderiam incluir o trabalho com uma instituição financeira internacional para desenvolver um planeamento de resposta a desastres sensível aos conflitos. “Ou, no caso de conflitos que envolvam redes ilícitas transnacionais, uma operação de paz poderá ter de estar ligada a organizações de combate ao tráfico ou empregar peritos em rastreio cibernético,” observou.
Desenvolver a capacidade analítica. Day observou que as operações de paz da ONU melhoraram significativamente as suas capacidades analíticas, incluindo a criação de programas de identificação de ameaças e a capacidade emergente de informação.
Acrescentou que os futuros conflitos serão em grande parte ditados por factores socioeconómicos, como as alterações climáticas, as recessões económicas globais ou o aprofundamento das desigualdades resultantes da urbanização, do crescimento desigual e das novas tecnologias limitadas aos que podem pagar por elas.
“A construção de uma análise de economia política personalizada é um primeiro passo importante; o estabelecimento de compromissos mais significativos com as instituições financeiras internacionais e nacionais é outro,” afirmou Day.
Aceitar a complexidade. Day observa que as missões se tornarão mais complicadas devido às alterações climáticas, às mudanças demográficas e às novas tecnologias. Mas, observou, há uma tendência para reduzir as narrativas a termos simples, em parte, para comunicar eficazmente com todas as partes envolvidas. Com o passar do tempo, a ONU terá de aceitar a natureza inter-relacionada dos conflitos mais do que o faz actualmente.
“As futuras operações de paz poderão ter de incluir cientistas das alterações climáticas, economistas, urbanistas e especialistas em redes sociais, se quiserem compreender e afectar as trajectórias dos conflitos violentos,” afirmou Day.