A Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul (UNMISS) é uma operação de manutenção da paz que foi criada aquando da independência do Sudão do Sul, em Julho de 2011. Em Janeiro de 2017, David Shearer, da Nova Zelândia, foi nomeado chefe da missão e serviu por mais de quatro anos, até ao dia 15 de Abril de 2021. Shearer passou aproximadamente 20 anos a trabalhar para a ONU, fazendo a gestão de programas de ajuda para a Somália, Ruanda, Libéria, Kosovo, Afeganistão, Líbano e Iraque. A ADF falou com Shearer por via telefónica, em Março de 2021. A entrevista foi editada para se adequar a este formato.
ADF: O senhor vive e trabalha no Sudão do Sul. Como é a missão?
SHEARER: Certamente que é um grande desafio. Eu cheguei ao país durante um período de grandes conflitos, quando a missão estava a trabalhar intensamente para acabar com a luta e proteger os civis apanhados no meio dos beligerantes. Nos últimos quatro anos, houve um progresso lento, mas firme. Um cessar-fogo esteve em vigor durante três anos, um acordo de paz foi assinado em 2018 e uma governo de transição foi formado no ano passado. Houve uma grande diminuição da violência política, mas continuamos preocupados com os conflitos subnacionais. Em termos gerais, o processo de paz está a progredir, mas ainda existe muito por fazer.
ADF: Qual é a diferença entre ter a polícia ao dispor e ter os soldados ao dispor?
SHEARER: Devido à luta, em 2013 e 2016, milhares de pessoas fugiram para procurar abrigo nas bases da UNMISS e nós os acolhemos. Abrir os nossos portões para civis que fugiam do conflito foi algo sem precedentes nas operações de manutenção da paz. Mas ao fazer isso, a ONU salvou milhares de vidas. Estabelecemos aquilo que se chama locais de “protecção de civis” (PDC) próximo das nossas bases. No seu auge, havia cerca de 200.000 pessoas em cinco acampamentos. A polícia da ONU garantia a segurança daqueles que viviam nessses locais, enquanto os soldados protegiam as famílias deslocadas de potenciais ameaças externas. Entretanto, o trabalho que os soldados fazem é muito mais amplo do que este. O seu principal papel é ir para as zonas remotas e garantir a protecção física, deter a violência e ajudar a trazer estabilidade. Este é um dos papéis fundamentais da UNMISS como operação de manutenção da paz.
ADF: O que fazem os trabalhadores civis lá?
SHEARER: O trabalho do nosso pessoal civil distribui-se em duas categorias principais: operacional e aquilo que chamamos substancial. Na frente substancial, temos um papel político, que trabalha com funcionários do governo, líderes comunitários, o sistema de justiça e por aí em diante. Unimos as partes para reconciliar e edificar a paz, a nível local e nacional. Também temos pessoal civil nos assuntos civis, direitos humanos, género e muito mais. Basicamente, fazemos tudo o que podemos para ajudar o Sudão do Sul a avançar em quase todas as áreas da sua vida social e política. O nosso pessoal civil também trabalha no lado operacional, para apoiar a logística de movimentos, habitação e mais. Eles certificam-se de que a missão continue a decorrer sem sobressaltos.
ADF: Existe uma data limite para o fim da missão?
SHEARER: O mandado da UNMISS é determinado pelo Conselho de Segurança da ONU, que decide por quanto tempo a nossa presença é necessária. Entretanto, estamos a fazer alterações para fazer com que esta se enquadre no propósito, visto que envolve a situação política e de segurança do Sudão do Sul. Por exemplo, como resultado da redesignação de alguns locais de PDC para acampamentos normais de pessoas deslocadas, fomos capazes de voltar a destacar tropas, tirando-as de tarefas estáticas nos acampamentos para colocá-las em locais de conflito intenso. Na essência, calibramo-nos de novo para garantir que os nossos recursos limitados tenham o maior impacto nos lugares onde a violência emergiu ou que possivelmente venha a emergir. Também estamos a alocar recursos na edificação de instituições locais. Por exemplo, um dos objectivos é ajudar a criar uma força policial mais profissional no Sudão do Sul e fazer com que o sistema de justiça seja mais eficiente. O que em última instância estamos a fazer é fornecer apoio e, posteriormente, retirarmo-nos pouco a pouco, para possibilitar que as autoridades sul-sudanesas dêem continuidade.
ADF: Quantos países participam nesta missão?
SHEARER: Mais de 100 nacionalidades diferentes contribuem para a UNMISS — entre soldados e civis. É uma grande representação do mundo.
ADF: De que forma é que estes países trabalham juntos? Não existem barreiras linguísticas?
SHEARER: Inglês é a língua franca aqui, porque é um país falante de Inglês, mas claro que cidadãos de vários países falam as suas línguas maternas entre eles. Existem desafios quando se tem um grupo tão diversificado como este, mas a vantagem desta diversidade é que o mundo está, com efeito, a participar na transformação do Sudão do Sul. Isso cria uma grande seriedade para o nosso trabalho. A UNMISS representa os interesses da comunidade internacional.
ADF: Existirão alguns desafios em termos de logística?
SHEARER: Nós operamos em todo o país. E isso não é tarefa fácil num país que é quase do mesmo tamanho que a França. Temos 10 bases fixas e, actualmente, 10 bases operadas temporariamente, que estabelecemos em zonas onde existem ameaças de violência. Para além disso, o nosso pessoal militar e civil sai para as comunidades, através de patrulhas integradas feitas constantemente. Os nossos soldados, muitas vezes, passam semanas em determinadas alturas em vários locais remotos para garantirem a estabilidade em locais de conflito intenso. Fazemos isso para dar visibilidade e lidar com quaisquer questões que emergirem nas ou entre as comunidades.
Em termos logísticos, é um país difícil, porque a infra-estrutura é tão subdesenvolvida. O Sudão do Sul apenas tem 300 quilómetros de estradas asfaltadas. Na época seca, podemos nos movimentar de forma relativamente fácil, porque as estradas de terra batida estão secas. Mas quando chega a época das chuvas, a maior parte do país fica fechada e é quase impossível viajar por via terrestre. Por isso, dependemos de embarcações ou do transporte aéreo para chegarmos às zonas remotas.
Uma área onde a UNMISS realmente contribui é na manutenção de estradas. Os nossos engenheiros militares de sete países diferentes estão a explorar a época seca para construir e melhorar 3.200 quilómetros de estradas. Isso ajuda as comunidades do Sudão do Sul a deslocarem-se para o comércio, trabalho e para se reunirem nos acordos de paz. Não posso enfatizar mais o impacto tangível deste trabalho. É um legado, muitas vezes, não considerado das nossas operações de manutenção da paz. Melhorar as estradas impulsiona a comunicação, aumenta o comércio e os empregos e, especialmente, cria a paz, ligando as comunidades.
ADF: Qual é a sua relação com o povo do Sudão do Sul?
SHEARER: Temos uma relação muito forte. Uma empresa independente de pesquisas fez estudos de percepção para perguntar as pessoas o que elas acham da UNMISS e que tipo de trabalho fazemos. Os resultados foram estrondosamente positivos. Mas ter cerca de 20.000 pessoas de nacionalidade estrangeira a trabalhar num país, há-de surgir algumas questões onde haverá atritos com o governo anfitrião. Por exemplo, quando virmos situações de abuso de direitos humanos, denunciaremos. Esse também é o nosso dever.
ADF: Como é o vosso trabalho, no dia-a-dia?
SHEARER: A maior parte do meu trabalho é com o governo e vários outros actores, reunindo com eles e desfazendo quaisquer desentendimentos, para que a UNMISS possa ter um papel produtivo e de apoio. Actualmente, por exemplo, estamos a apoiar o governo a esboçar a nova constituição, entre muitas outras actividades políticas. Muito do meu trabalho envolve ir ao encontro de vários sul-sudaneses pelo país para ver se os podemos unir e fazer o processo de paz avançar. Eu também falo com grupos humanitários e grupos locais da sociedade civil sobre as suas operações para ver como nós podemos apoiar. E regularmente presto relatórios ao Conselho de Segurança da ONU. Então, são muitos papéis diferentes e cada dia é diferente para mim.
ADF: O país parece ter estado envolvido numa guerra civil quase que desde a sua fundação.
SHEARER: Os conflitos surgiram no país em 2013 — apenas dois anos depois da sua independência. Um conflito maior continuou até que o Sudão do Sul organizou um acordo de paz, em 2015. Infelizmente, esse acordo teve um colapso um ano depois e o país retomou a guerra. Desde 2017, houve um cessar-fogo, um acordo de paz e agora um governo de transição. Foi um início conturbado para o país mais jovem do mundo. Muitas pessoas perderam as suas residências e muitos morreram nos conflitos. Mas penso que o Sudão do Sul está a avançar na direcção certa agora e está num bom ritmo para um futuro melhor.
ADF: Fale sobre o seu papel em comparação com o papel do comandante da força.
SHEARER: Enquanto a UNMISS estiver na categoria de operação de manutenção da paz, ela, em última instancia, é uma operação política com facilitadores do processo de manutenção da paz. É muito mais que apenas exército e polícia, e o nosso trabalho com os nossos interlocutores políticos é amplo. Em termos de estrutura de liderança, temos um comandante da força que é meu adjunto no lado militar. Eu também tenho adjuntos no lado político e no lado humanitário. E temos um comissário da polícia, que supervisiona a componente da polícia.
ADF: Qual é o próximo passo da missão?
SHEARER: O que esperamos é que a UNMISS forneça mais apoio para a polícia e para o sistema de justiça do Sudão do Sul. Queremos ver um sistema de justiça mais desenvolvido para que as pessoas que cometerem crimes sejam presas, trazidas para a justiça e, se forem culpadas, penalizadas. Também queremos que as nossas forças mantenham a sua mobilidade para que se possam movimentar livremente para as zonas onde são mais necessárias, para que possamos ajudar a deter o conflito antes que este ocorra.
O mais importante é que estamos a pressionar para avançar com o processo de paz, procurando ajudar o país a manter esta dinâmica. Muitos cidadãos estão preocupados com o facto de poder haver falta de vontade política. Eles temem que o progresso positivo possa entrar em colapso. É por estas pessoas que a comunidade internacional se deve manter unida e comprometida em fazer avançar o processo de paz. Não podemos ficar à margem, como espectadores. Se olharmos para quatro anos atrás, quando o conflito estava no seu auge, podemos facilmente ver como é o fracasso, e ninguém tem o interesse de voltar para aquele ponto.
Mais sobre a UNMISS
A Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul surgiu um dia antes de o Sudão do Sul ter oficialmente se tornado no país mais jovem do mundo. A ONU nomeou a missão de manutenção da paz, no dia 8 de Julho 2011, por ordem da Deliberação 1996, do Conselho de Segurança da ONU.
Em Março de 2021, a ONU prorrogou o mandato até Março de 2022, adoptando a Deliberação 2567, que também exige que “todas as partes do conflito naquele país e outros actores armados parem imediatamente os conflitos e se envolvam no diálogo político, conforme o acordo de paz assinado em 2018.”
Nicholas Haysom, da África do Sul, assumiu como chefe da missão em finais de Abril de 2021. Haysom é Licenciado em Direito, pela Universidade de Natal e pela Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul.
Tenente-General Shailesh Tinaikar, da Índia, é comandante da força, responsável pelos soldados da missão, desde Maio de 2019.
O mandado da missão inclui apoiar:
- A consolidação da paz, contribuindo para a construção do Estado a longo prazo e para o desenvolvimento económico.
- O governo do Sudão do Sul ao exercer as suas responsabilidades de prevenção, mitigação e resolução de conflitos assim como a protecção de civis.
- O Sudão do Sul no desenvolvimento da sua habilidade de garantir segurança, para estabelecer o Estado de direito e para fortalecer os sectores da segurança e da justiça.
- A criação de condições conducentes à entrega de ajuda humanitária.
Pessoal do Quadro em Novembro de 2020:
- Soldados: 14.800
- Polícia: 1.600
- Civis: 2.600
- Especialistas em missões: 230
- Oficiais do Estado-Maior: 425
- Voluntários da ONU: 395
- 7% dos soldados são do sexo feminino.
- 25% dos civis são do sexo feminino.
Cerca de 45 países contribuíram com oficiais da polícia para a missão desde a sua criação, sendo que 15 destes países se encontram em África.
Cerca de 60 países contribuíram com soldados para a missão desde a sua criação. Cerca de 15 destes países encontram-se em África.
A missão possui oito aeronaves de asas fixas e 20 helicópteros.
Uma distribuição típica do orçamento
47% Pessoal do exército e da polícia
28% Custos operacionais
25% Civis