EQUIPA DA ADF
O Major-General Emmanuel Kotia lembra-se de ter sido destacado para o Líbano em 2006 para comandar o batalhão ganês da Força Interina da ONU no Líbano (UNIFIL).
Algumas aldeias do sul da sua área de responsabilidade tinham sido ocupadas e gravemente destruídas durante a guerra. Os residentes tinham sido obrigados a fugir e, ao regressarem a casa, a sua raiva era palpável.
“Ficaram de rastos,” disse à ADF. “Quando as pessoas regressavam às aldeias, não queriam ver nenhum veículo da ONU a passar na estrada.” Ele disse que os civis acreditam que a ONU deveria ter feito mais para evitar ataques.
Kotia decidiu dirigir-se aos líderes tradicionais conhecidos como mukhtars e oferecer ajuda do seu batalhão. “Eu disse: ‘Olha, estamos aqui para vos apoiar. O que pode ter acontecido, aconteceu, mas vamos perdoar e esquecer,’” recordou. “Então, tomava café com eles, conversava com eles, ia ter com eles e isso provavelmente fê-los mudar de ideia.”
Na segunda vez que se encontrou com os líderes locais, a conversa foi mais aberta. Enquanto antes insistiam que não queriam nem precisavam da ajuda da ONU, agora admitiam que precisavam apenas de um pouco de ajuda. Pediram à ONU que utilizasse o seu equipamento para deslocar um contentor que estava a bloquear uma estrada. Kotia fez com que isso acontecesse imediatamente.
Este pequeno gesto, segundo ele, abriu a porta a uma parceria civil-militar mais forte. Em pouco tempo, a ONU estava a oferecer à comunidade água potável, através dos seus camiões-cisterna, e serviços de saúde, através do seu pessoal médico.
“Uma das questões fundamentais que as missões de manutenção da paz devem ter como parte do seu mandato ou conceito de operações é que a vida dos civis que estão a proteger deve ser melhorada,” disse Kotia. “Se não houver uma melhoria da qualidade de vida, a operação de manutenção da paz não será bem recebida.”
Kotia escreveu um livro intitulado “As Forças Armadas do Gana nas Operações de Paz no Líbano e na Libéria” e serviu em missões no Camboja, na República Democrática do Congo (RDC), na Libéria, no Ruanda, no Sahara Ocidental e noutros locais. Ele afirmou que a compreensão das relações civis-militares na manutenção da paz é mais importante do que nunca. A ONU tem enfrentado protestos violentos contra a sua presença na RDC e no Mali. Kotia e outros especialistas ofereceram orientações sobre como obter a aceitação das comunidades anfitriãs e tornar as missões mais eficazes.
Gerir Expectativas
Embora os especialistas digam que é importante que a população veja os benefícios de uma operação de manutenção da paz, também alertam para o facto de as pessoas precisarem de conhecer os limites das capacidades e do mandato das forças de manutenção da paz.
Muitas vezes, os civis ficam zangados, porque existe um fosso entre o que as forças de manutenção da paz podem fazer e o que os civis esperam delas.
“Já vimos as forças de manutenção da paz regressarem e dizerem que a comunidade esperava que respondêssemos a todas as questões: fornecimentos médicos, alimentos, acesso a transportes, lidar com infra-estruturas, lutar contra as pessoas que consideram uma ameaça,” Ouiem Chettaoui, responsável sénior de programa, que trabalha na formação em gestão de conflitos para as forças de manutenção da paz no Instituto da Paz dos EUA (USIP), disse num webinar.
É fundamental comunicar o que uma missão pode e não pode fazer. Para tal, é necessário o envolvimento da comunidade, através de eventos como reuniões públicas, emissões de televisão e rádio e outros esforços de alcance. “Se a expectativa é que a missão de manutenção da paz resolva problemas que estão fora ou além da sua capacidade, isso cria um problema de confiança,” disse Chettaoui. “Por isso, a gestão das expectativas é essencial e a comunicação direccionada é essencial.”
Chettaoui disse que cada pessoa numa missão deve conhecer o mandato e os objectivos da missão para poder comunicá-los claramente quando interage com o público. Uma acção eficaz de sensibilização do público também ajuda a missão a combater a desinformação, que pode envenenar a relação entre os civis e as forças de manutenção da paz.
“Toda a gente precisa de conhecer exactamente os pontos de discussão sobre os objectivos da missão e o que esta pode razoavelmente alcançar naquele momento,” disse Chettaoui.
Encontrar Projectos de Impacto Rápido
No início de uma missão, é importante que a população veja benefícios tangíveis da presença das forças de manutenção da paz. Uma forma de o fazer é através de um “projecto de impacto rápido” que melhore a vida do público e que, ao mesmo tempo, dê credibilidade às forças de manutenção da paz.
Kotia recordou que o contingente italiano da UNIFIL enfrentou uma forte resistência à sua presença. Os aldeões vaiavam as forças de manutenção da paz e atiravam pedras aos seus veículos. Aconselhou o comandante italiano a dirigir-se aos chefes locais e perguntar-lhes sobre o que precisavam, com ênfase em algo que pudesse ser realizado rapidamente.
Tornou-se evidente que os libaneses necessitavam de melhorias nas estradas e de outro tipo de assistência. Os italianos puderam lançar um projecto de renovação de estradas e a dinâmica civil-militar mudou completamente. “Isso tornou-os queridos para o povo,” disse Kotia.
Estes projectos de impacto rápido podem ser pequenos, como a perfuração de um poço de água, ou podem ser mais complexos, como a melhoria do acesso à electricidade ou a melhoria dos caminhos-de-ferro. A desminagem é uma outra necessidade vital em muitos países afectados pela guerra. A chave, dizem aqueles que lideraram as missões, é que a comunidade veja os resultados.
“As operações de manutenção da paz devem apresentar estratégias de projectos de impacto rápido que melhorem a vida das pessoas no mais curto espaço de tempo possível,” afirmou Kotia.
Aceitar Responsabilização
Por vezes, as missões de manutenção da paz perdem a credibilidade devido a actos ilícitos, como a exploração sexual ou a violência contra civis. Noutros casos, a sua incapacidade ou falta de vontade de actuar perante uma ameaça aos civis quebrou a relação. No leste da RDC, por exemplo, os casos em que as forças da ONU não intervieram para impedir os massacres dos rebeldes tornaram-se um grito de guerra para os manifestantes que pediam o fim da missão.
“Precisamos de reforçar o nosso mecanismo de responsabilização enquanto Nações Unidas,” Claudia Croci, especialista sénior do Instituto das Nações Unidas para a Formação e Investigação, disse num webinar. “Se algo não vai na direção certa, penso que temos de fazer uma pausa e tentar perceber: ‘Porque é que isto correu tão mal e o que vamos fazer para corrigir?’ E mostrar às comunidades que existe um sistema de responsabilização.”
Isso pode incluir fóruns públicos em que a ONU explica as suas acções e as medidas concretas que está a tomar para melhorar. A ONU interage com o público através das suas equipas de protecção conjunta, das redes de alerta comunitário e do pessoal da missão responsável pelo envolvimento comunitário. Ainda assim, dizem os especialistas, é possível fazer mais.
“Se algo correr mal, não basta dizer ‘Lamentamos, algo correu mal,’ mas mostrar que há consequências, que as pessoas são responsabilizadas, é muito importante para evitar esta situação,” disse Croci.
Em 2015, a ONU publicou a sua Política de Responsabilização de Conduta e Disciplina em Missões de Campo, reforçando as punições para o pessoal que cometeu abusos. Por exemplo, as forças de manutenção da paz da ONU acusadas de disparar balas reais contra manifestantes do lado de fora de um armazém em Goma, na RDC, em Julho de 2022, foram presas, e a ONU emitiu um pedido formal de desculpas, chamando o incidente de “indescritível e irresponsável.”
“Parem e tentem perceber por que isso aconteceu e, se houve um erro, reconheçam,” apelou Croci. “Somos humanos, podemos cometer erros. Mas devemos reconhecê-los.”
Acrescentou ainda que uma atitude de impunidade ou indiferença é uma forma rápida de os soldados da paz se afastarem da população que estão a proteger. “Não o aceitaríamos enquanto indivíduos; porque haveríamos de esperar que as comunidades onde intervimos, mas onde somos acolhidos, o aceitassem?”
Conhecer a Cultura e Estar Pronto para Mediar
Durante o tempo que passou no Líbano, Kotia viu algumas forças de manutenção da paz quebrarem tabus locais, como beber álcool abertamente. Num país maioritariamente muçulmano, este acto pode desacreditar toda a força aos olhos dos civis e dificultar o trabalho da ONU.
Segundo ele, a educação cultural precisa de ser incorporada na formação antes do destacamento.
“As tropas têm de estudar o ambiente, tem de lhes ser explicado e têm de conhecer os costumes das pessoas,” disse Kotia. “Isso ajuda-os a apreciar o tipo de pessoas que vão encontrar e como se podem relacionar com elas.”
A ONU e o USIP estão a incorporar mais cenários da vida real na formação oferecida às forças de manutenção da paz.
Chettaoui disse que essas ferramentas podem levar a melhores interacções civis-militares e promover formas alternativas de resolução de conflitos, como a mediação e a resolução colaborativa de problemas. Desta forma, disse ela, a comunidade verá que as forças de manutenção da paz podem mediar disputas em vez de “fechar os portões se as coisas ficarem muito difíceis ou sacar as armas.”
“É necessário equipá-los com as ferramentas de como negociar, como mediar, como resolver um problema sem recorrer à violência,” disse Chettaoui.
Croci disse que, à medida que a ONU reforma o seu treino de pré-destacamento, está a trabalhar para apresentar aos soldados de manutenção da paz os tipos de cenários complexos e carregados que irão enfrentar quando estiverem no terreno.
“A formação está directamente relacionada com as experiências que irão viver quando forem destacados,” disse. “A preocupação era dar aos soldados de manutenção da paz as ferramentas práticas para operarem e fazerem a diferença quando forem destacados. Não se trata de teoria…, mas de como isso se traduz no trabalho do dia-a-dia.”