EQUIPA DA ADF
Enquanto blindados transportadores de pessoal e tanques russos seguiam para a Ucrânia, levando mais de 100.000 recrutas sudaneses, o General Mohamed Hamdan Dagalo, do Sudão, conhecido como Hemedti, reunia-se com o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, em Moscovo.
Hemedti, chefe-adjunto do Conselho Soberano do Sudão, e outros líderes chegaram dispostos a fortalecer a cooperação entre os dois países — um, que está a levar a cabo uma guerra brutal contra civis, e o outro, que recentemente pós fim a um movimento em direcção a um governo democrático através de um golpe de Estado.
Durante a visita de oito dias, Hemedti alegadamente renovou o desejo da Rússia de criar uma base naval em Port Sudan, na costa norte do Mar Vermelho, dando ao presidente Vladimir Putin uma cobiçada presença naval africana numa região cada vez mais estratégica e muito movimentada.
Do outro lado do continente, no Golfo da Guiné, o governo da China colaborou durante décadas com a Guiné Equatorial, essencialmente através de projectos de infra-estruturas. Agora tudo indica que está a trabalhar para criar uma base naval permanente, mais provavelmente no porto de Bata, na região continental do país.
O porto de Bata apresenta dois cais comerciais, sendo que qualquer um deles pode manusear qualquer carga da Marinha do Exército de Libertação Popular (PLAN), de acordo com um artigo de Dezembro de 2021, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS).
O porto foi adaptado para uso pelos chineses. Um posto de abastecimento de combustíveis adjacente faz com que o abastecimento seja conveniente e o espaço do armazém facilita o trabalho de reabastecimento. Na verdade, a First Harbor Engineering Co., da China Communications Construction Co., construiu o porto em 2014. A The China Road and Bridge Corp. modernizou-a mais tarde. O Banco de Exportação e Importação da China financiou o projecto.
A China até construiu a estacão hidroeléctrica que fornece a maior parte da energia do porto.
“A China fortaleceu os laços de defesa e segurança com a Guiné Equatorial directamente através de colaborações bilaterais e indirectamente através do aumento das suas actividades no Golfo da Guiné,” lê-se no relatório do CSIS. “Em 2014, a PLAN começou a realizar visitas aos portos com os países do Golfo e lançou os seus primeiros exercícios de combate à pirataria com marinhas locais. De 2014 a 2019, a China envolveu-se em 39 trocas de experiência militares com contrapartes do Golfo, muitas delas envolvendo embarcações da PLAN que fazem operações de combate à pirataria.”
Uma base naval chinesa do litoral da África Ocidental iria complementar a sua base militar no Djibouti, criada em 2017. No Djibouti, a China juntou-se a França, Alemanha, Itália, Japão, Arábia Saudita, Espanha, o Reino Unido e os Estados Unidos, criando bases ao longo do estratégico corredor de Suez-Mar Vermelho-Golfo de Áden.
Os esforços da Rússia e da China para reforçar a sua presença naval ao longo da linha da costa do continente levantam questionamentos sérios sobre como os países podem controlar as suas zonas económicas exclusivas, principalmente no que diz respeito à indústria de pescas, extracção de recursos naturais e outras preocupações financeiras. Os governos nacionais terão de reflectir sobre as ramificações a longo prazo de tais acordos enquanto os esforços continuam a fazer com que o continente seja o marco zero entre as grandes potências concorrentes.
RISCO PARA A SOBERANIA
Sempre que um governo estrangeiro financia, constrói e opera um grande projecto de infra-estruturas num outro país, existem riscos inerentes. Muita coisa foi escrita nestes últimos anos sobre como a China utiliza a sua Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR) para assinar acordos desiguais de infra-estruturas que fornecem grandes projectos, utilizando a mão-de-obra chinesa, enquanto acumula bilhões de dólares em dívidas esmagadoras para os países anfitriões. Projectos da ICR desta natureza já existem em todo o continente e na Ásia.
Acordos de bases e de portos abrem os países para vulnerabilidades em pelo menos três níveis, de acordo com “Influence and Infrastructure: The Strategic Stakes of Foreign Projects,” um estudo de Jonathan E. Hillman, um antigo membro sénior do CSIS.
Financiamento é a mais ampla categoria de potencial influência. Enquanto um projecto é negociado, o país que faz o empréstimo pode ganhar concessões e determinar condições de reembolso. Enquanto os fundos são desembolsados, o credor detém o poder de recompensar ou de punir. A dívida, que pode ser profunda e fora das capacidades de um país anfitrião poder reembolsar, pode ser alavancada contra a infra-estrutura caso o receptor não seja capaz de satisfazer as condições de pagamento. Países como China e Rússia podem exercer um controlo não desejado sobre as infra-estruturas caso não sejam efectuados os pagamentos.
A recolha de informações encontra-se entre os riscos no estágio de concepção e construção, escreveu Hillman. “Por exemplo, agentes de inteligência soviéticos produziram mapas altamente detalhados que incluíram não só a localização e dimensões básicas de uma ponte, mas também a sua altura acima da água, o material de construção utilizado, os seus limites de peso e outros pormenores,” escreveu. Os riscos também podem incluir a instalação de equipamento de vigilância.
Esse foi o caso do edifício da sede da União Africana, em Adis Abeba, Etiópia, que a China construiu como uma oferta para a UA. As autoridades souberam em 2017 que todas as noites, entre a meia-noite e 2 horas da madrugada, dados confidenciais eram transferidos dos servidores da UA para servidores de Shanghai, uma acusação que a China refutou. Três anos depois, concluiu-se que os piratas informáticos chineses viciaram um sistema para copiar imagens de videovigilância a partir da sede da UA, noticiou a Reuters.
Finalmente, a posse e a operação podem limitar o acesso de concorrentes a zonas estratégicas e ajudar os proprietários a acumularem influência, “uma vez que possuem e controlam uma rede mais ampla de activos de infra-estruturas,” escreveu Hillman. Mais uma vez, isso pode ajudar na recolha de informações.
“Existe um grande histórico de países que utilizam portos comerciais para operações de inteligência, quer seja para ganhar informação ou para ocultar o movimento de bens ou de pessoas,” escreveu.
A posse também oferece vantagens logísticas. O potencial de tais vantagens seria maior para a China caso fosse bem-sucedida em criar uma base naval na Guiné Equatorial ou em qualquer parte ao longo da costa da África Ocidental.
EXPLORAÇÃO DE RECURSOS
A China e a Rússia são conhecidas por financiar embarcações que pescam ilegalmente ao largo da costa de países africanos. Mas a frota de pesca em águas longínquas (PAL) da China encontra-se numa categoria única. Não está claro quantos navios compõem a PAL, mas estimativas mais conservadoras a colocam em cerca de 3.000.
A frota já desviou uma quantidade substancial de unidades populacionais de peixe da África Ocidental, e uma base naval da Guiné Equatorial — ou em qualquer outra parte da costa do Golfo da Guiné — faria com que os esforços de fiscalização fossem quase que impossíveis. O especialista em leis marítimas, Ian Ralby, PCA da I.R. Consilium, disse que o acréscimo de uma base naval chinesa no pequeno país da África Ocidental provocaria uma “situação muito desagradável.”
“A situação já está cataclísmica vis-à-vis com a pesca ilegal chinesa em quase toda a África Ocidental e Central,” disse à ADF. “Se eles nessa altura tiverem também recursos navais para proteger isso de qualquer interferência, simplesmente não há esperança.”
Com navios chineses estacionados no centro do Golfo, países como Camarões, Gabão, São Tomé e Príncipe e outros ficariam pressionados a enfrentar uma grande potência naval se esta procurar proteger as embarcações de pesca do seu país.
Os potenciais problemas não acabam apenas com a pesca. Ralby disse que um aumento da presença naval chinesa também pode prejudicar o desenvolvimento económico da Guiné Equatorial e da região. Os efeitos podem estender-se ao turismo marinho e da costa e podem ainda afectar os esforços da economia azul como a colheita de algas marinhas ou outros recursos marinhos para o uso em sabão, cosméticos e medicamentos.
Do outro lado do continente, a relação da Rússia com o Sudão ameaça saquear outros recursos, principalmente os provenientes do interior de África.
Os laços do Sudão com a Rússia não são novos. Quando Putin convidou líderes africanos para uma cimeira em Sochi, em 2017, o então ditador do Sudão, Omar al-Bashir disse que “o Sudão seria uma chave da Rússia para África,” Mohammed Elnaiem, um activista sudanês que se encontra em Londres, disse ao serviço alemão de imprensa, Deutsche Welle.
O Sudão é estrategicamente importante para a Rússia, porque “se localiza na confluência” do Sahel, Corno de África e da bacia do Mar Vermelho, afirma o especialista em matérias ligadas ao Sudão, Kholood Khair. Uma base como esta ofereceria ao Kremlin um conjunto de novas vantagens geopolíticas, disse.
“Uma base no Mar Vermelho para a Rússia iria permitir que ela tivesse presença entre dois pontos de estrangulamento internacionais — um, o Canal de Suez e o outro, o estreito de Bab el Mandeb entre Yemen e Somália,” Khair, fundador e membro gestor do Insight Strategy Partners, um grupo de reflexão sudanês, em matéria de políticas, de Cartum, disse à ADF. “Assim, isso permitirá que ela seja capaz de potencialmente controlar, se não influenciar, parte do comércio que ocorre através daquele ponto e também permitirá que expanda o seu comércio, incluindo, claro, trazer recursos para a Rússia – por exemplo, ouro proveniente não apenas do Sudão, mas da República Centro-Africana, Mali, etc.”
A base proposta iria alegadamente acomodar embarcações movidas a base de energia nuclear e estaria disponível para a Rússia por 25 anos com oportunidades de renovação inclusas. Pode reabastecer as embarcações russas e as dos seus aliados. Talvez o mais importante, disse Khair, oferece uma saída para o mar para a extracção de recursos minerais pela força de mercenários privados do Grupo Wagner da Rússia.
Os operativos do Grupo Wagner encontram-se activos na República Centro-Africana, Mali e Sudão. “O Grupo Wagner é um activo militar que está no terreno para fins económicos,” disse Khair. É utilizado para canalizar recursos como o ouro, tirando-o de países sem saída para o mar para reforçar o orçamento de guerra do Presidente Vladimir Putin. Uma base na costa do Sudão facilitaria significativamente essa tarefa.
Alinhar-se com uma Rússia cada vez mais isolada representa uma jogada de sorte para o Sudão. O Kremlin viu uma oportunidade renovada no Sudão, com generais como Hemedti e Abdel Fattah al-Burhan no comando. E a Rússia oferece ao Sudão um aliado importante que não a pressionaria a pautar por direitos humanos ou por uma governação democrática, disse Khair.
O regime militar está a perder dinheiro e acesso ao alívio da dívida e financiamento, por isso, a Rússia oferece mercados para o ouro e fortalece a posição financeira do Sudão. É, segundo Khair, um retorno a todas as políticas de al-Bashir.
Contudo, agora que a Rússia enfrenta um isolamento, o cálculo inicial pode não trazer os resultados que se esperavam. A invasão da Ucrânia fez com que Putin fosse considerado um pária. O exército do Sudão deseja ter legitimidade, mas também pretende manter o poder. Estes dois desejos, misturados com ligações com a Rússia, são difíceis de conciliar. Como resultado, a possibilidade de um governo civil duradouro também sofre.
“Para o movimento pró-democracia, isso não é boa notícia,” disse Khair. “Isso significa que o papel dos generais é mais ou menos fortalecido a partir de fora por um patrono como a Rússia que também não vê motivos para cultivar qualquer tipo de vontade democrática.”