EQUIPA DA ADF
Nuvens negras de medo invadiram a capital da Somália, Mogadíscio, após a recente decisão da Rússia de pôr termo ao seu acordo sobre os cereais do Mar Negro. Os padeiros, os comerciantes e os clientes famintos prepararam-se para mais uma vaga de dor, numa altura que a guerra da Rússia contra a Ucrânia continua a afectar África.
Halima Hussein, mãe de cinco filhos, que vive num campo de deslocados em Mogadíscio, estava entre as pessoas preocupadas com a escassez.
“Não sei como vamos sobreviver,” disse à Reuters. “As agências de ajuda tentam fazer o seu melhor para manter as nossas vidas. Elas têm muito pouco para dar.”
Os preços do trigo, que tinham duplicado em 2022 quando a Rússia invadiu a Ucrânia, caíram um quarto após a assinatura do acordo sobre os cereais. Mas alguns comerciantes de Mogadíscio estimam que um saco de trigo de 50 quilos poderá subir dos actuais 20 dólares para quase 30 dólares.
A decisão da Rússia, de 17 de Julho, de romper o acordo sobre os cereais e os subsequentes ataques aéreos contra os depósitos de trigo ucranianos suscitaram a condenação internacional.
O Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, acusou o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, de tentar “transformar a fome numa arma.”
Os líderes africanos opuseram-se a Putin com mais força do que nunca.
“A decisão da Rússia de abandonar a Iniciativa dos Cereais do Mar Negro é uma punhalada nas costas dos preços globais da segurança alimentar e afecta desproporcionadamente os países do Corno de África já afectados pela seca,” afirmou Abraham Korir Sing’Oei, um alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Quénia, no Twitter, a 17 de Julho.
O Presidente da Comissão da União Africana, Moussa Faki Mahamat, também manifestou o seu desagrado, mas fê-lo directamente a Putin, com os líderes africanos presentes, durante o seu discurso de encerramento da Cimeira Rússia-África, em São Petersburgo, na Rússia.
“A interrupção do fornecimento de energia e de cereais deve terminar imediatamente,” disse Mahamat a 28 de Julho. “O acordo sobre os cereais deve ser alargado em benefício de todos os povos do mundo, e dos africanos em particular.”
O Presidente do Egipto, Abdel Fattah al-Sisi, cujo país é um grande comprador de cereais do Mar Negro, também instou a Rússia a inverter o rumo, dizendo, na cimeira, que era “essencial chegar a acordo” sobre o relançamento do acordo.
Mediado pelas Nações Unidas e pela Turquia em Julho de 2022, o acordo sobre os cereais do Mar Negro ajudou a baixar os preços dos alimentos a nível mundial e permitiu que as organizações humanitárias tivessem acesso a centenas de milhares de toneladas métricas de alimentos numa altura em que a fome e a seca aumentavam e o financiamento era escasso.
O acordo permitiu à Ucrânia expedir 32,9 milhões de toneladas métricas de cereais e outros alimentos para todo o mundo. Os dados oficiais revelam que 57% dos cereais ucranianos se destinavam a países em desenvolvimento — até a Rússia ter interrompido o processo.
Putin respondeu, como já o fez no passado, culpando outros países. Prometeu entregar até 300.000 toneladas de cereais russos gratuitos aos seis países africanos com os quais tem acordos militares.
O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, desvalorizou o gesto e reiterou a exigência de que a Rússia renove o acordo.
“Não é com um punhado de donativos a alguns países que se corrige este impacto dramático que afecta toda a gente, em todo o lado,” afirmou durante uma conferência de imprensa a 26 de Julho. “O aumento dos preços será pago por todos em todo o lado, nomeadamente pelos países em desenvolvimento e pelas pessoas vulneráveis nos países de rendimento médio e mesmo nos países desenvolvidos.”
Sing’Oei afirmou que os preços dos produtos alimentares, que já atingiram máximos históricos, irão aumentar ainda mais no Quénia, que também se debate com a pior seca das últimas décadas no Corno de África.
“As mercadorias que costumavam custar, digamos, uma libra ou duas, agora custam quatro,” disse à Reuters. “Os preços vão duplicar.”
Desde que saiu do acordo, a Rússia agravou o problema ao atacar sistematicamente as instalações portuárias e os terminais de cereais ucranianos com drones e ataques aéreos quase diários.
O preço global do trigo registou um aumento de 9%.
Analistas como Harry Broadman, um antigo funcionário sénior do Banco Mundial na Rússia e em África, questionaram o pensamento de Putin.
“Moscovo deve saber que a interrupção abrupta das exportações de cereais ucranianos através do Mar Negro vai provocar um aumento dos preços de importação de cereais, prejudicando assim alguns dos países mais pobres do mundo,” afirmou à revista The Africa Report.
“É difícil compreender plenamente a avaliação custo-benefício que o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, faz da prossecução desta estratégia, dado o seu desejo de expandir a influência russa no continente.”