EQUIPA da ADF
O vídeo de 27 minutos mostra como um dos grupos extremistas mais ferozes da bacia do Lago Chade transforma crianças dos 8 aos 16 anos em radicais religiosos, extremistas armados e assassinos.
Intitulado “The Empowerment Generation” (A Geração do Empoderamento), o filme de propaganda, de Janeiro de 2022, é da “Escola de Cadetes do Khilafah [Califado]” da Província da África Ocidental do Estado Islâmico (ISWAP). Trata-se do vídeo mais detalhado do grupo do Estado Islâmico (EI) sobre crianças divulgado até à data, segundo a Fundação Jamestown. “O objectivo é mostrar um dia na vida de um recruta da escola,” diz a fundação.
As crianças passam os seus dias a recitar o Alcorão, a rezar e a estudar o Islão e a língua árabe. “Há também uma sessão em que vêem vídeos de propaganda do EI e outra que envolve duas sessões de treino físico que incluem defesa pessoal e treino de armas,” relata a fundação. “Perto do fim do vídeo, as crianças são finalmente vistas a participar em exercícios de guerra urbana em que se deslocam para um edifício abandonado de uma forma altamente coordenada. Capturam vários reféns, que na realidade são soldados nigerianos capturados pela ISWAP em combates anteriores, e depois executam-nos.”
O vídeo sugere que estes “Filhotes do Califado,” como o EI chama às crianças recrutadas, fazem parte da estratégia a longo prazo da ISWAP para reabastecer e rejuvenescer as suas fileiras.
Enquanto o conflito se desenrola na região da Bacia do Lago Chade, o remanescente do Boko Haram conhecido como Jama’tu Ahlis Sunna Lidda’awati wal-Jihad (JAS) e o seu ramo ISWAP continuam a combater-se mutuamente, mesmo quando perdem terreno, devido a um exército nigeriano armado com novos meios letais e uma nova determinação.
Pouco depois de a Nigéria ter começado a bombardear as posições do Boko Haram e da ISWAP a partir do ar, em 2021, com uma dezena de aviões de ataque ligeiro A-29 Super Tucano recentemente adquiridos, milhares de combatentes, os seus familiares e associados começaram a emergir da região para se desarmarem e se renderem.
Em Março de 2022, o Chefe do Estado-Maior da Defesa da Nigéria, Major-General Christopher Musa, disse que pelo menos 7.000 “insurgentes, incluindo combatentes, não combatentes, soldados de infantaria, juntamente com as suas famílias, continuavam a depor as armas em diferentes partes de Borno para aceitar a paz,” segundo a agência noticiosa da Nigéria.
Algumas notícias de finais de 2022 e do início de 2023 indicavam que mais de 80.000 homens, mulheres e crianças associados às organizações extremistas violentas (OEV) se tinham rendido aos militares.
Estes factores combinaram para fomentar um sentimento de pânico entre os insurgentes. A ISWAP, mais dominante, voltou-se para o recrutamento de crianças combatentes e procura uma causa comum com outras filiais do EI na região do Sahel, disse o Dr. Folahanmi Aina, investigador nigeriano e investigador do grupo de reflexão sobre segurança e defesa do Royal United Services Institute, em Londres.
“Antes de mais, é interessante notar que a ISWAP está actualmente muito desesperada e que sofre pesadas perdas, não necessariamente em resultado dos ataques militares contra ela; essa é uma parte da situação,” disse Aina à ADF.
“Por um lado, é correcto dizer que a utilização dos Super Tucanos fez pender radicalmente o campo de batalha a favor da Nigéria, tendo em conta que se trata de meios aéreos de precisão destinados a alvos de precisão durante o combate aéreo,” disse Aina. “Mas também devemos ter o cuidado de não atribuí-lo apenas a esse facto. Por isso, o que eu estaria mais inclinado a dizer é que se trata de uma combinação de vários factores. Sim, um deles são olhos melhorados no céu. Mas também uma melhoria no que diz respeito aos nossos recursos humanos no terreno, ou seja, uma melhoria em HUMINTS — inteligência humana.”
Nos últimos anos, a ISWAP tem procurado distinguir-se do JAS, evitando ataques indiscriminados contra civis, em especial contra outros muçulmanos. Desta forma, a ISWAP conseguiu integrar-se nas comunidades civis da região e obter o seu apoio.
“Parece que a suposta estratégia da ISWAP de não visar civis desviou a atenção do seu recrutamento de jovens rapazes,” escreveram Malik Samuel e Oluwole Ojewale no seu artigo “Children on the battlefield: ISWAP’s latest recruits” para o Instituto de Estudos de Segurança (ISS), em Março de 2022.
“Os maus tratos infligidos a civis, nomeadamente a utilização de jovens em combate, a escravatura de mulheres e raparigas e a morte de crianças à fome foram algumas das razões que levaram à divisão do Boko Haram,” refere o artigo do ISS. “A ISWAP criticou [o falecido líder do JAS, Abubakar] Shekau, em particular, por ter causado a morte de muitas crianças. Seria de esperar que a ISWAP agisse de forma diferente, mas as recentes perdas de combatentes em combate, os confrontos com o JAS e a deserção de membros podem tê-lo obrigado a repensar a sua posição relativamente às crianças-soldado.”
O Dr. Daniel Eizenga, investigador do Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS), resumiu a situação da seguinte forma à ADF: “Isso mostra-nos que, ideologicamente, estas organizações extremistas são bastante inconstantes.”
De acordo com um relatório das Nações Unidas de 2021, a região da África Central e Ocidental lidera o ranking mundial de ameaças graves contra crianças, incluindo o recrutamento e a utilização de crianças como combatentes. De 2016 a 2021, a região ficou em primeiro lugar a nível mundial, com mais de 21.000 crianças recrutadas e utilizadas por grupos armados não estatais. Também ficou em primeiro lugar no que diz respeito às crianças vítimas de violência sexual, com mais de 2.200 violações registadas. Os mais de 3.500 casos de raptos de crianças ocuparam o segundo lugar a nível mundial durante esse período.
Embora a contribuição da ISWAP para estas estatísticas possa ser atribuída, em grande medida, ao desespero resultante dos ataques militares, das disputas entre facções e das deserções, Aina disse à ADF que também podem estar envolvidas algumas considerações estratégicas.
“Uma segunda coisa a ter em conta é que, como a ISWAP está a tentar consolidar os seus ganhos na região, está também a tentar alavancar e expandir a sua influência através de mais colaborações com outras OEV na região do Sahel,” disse Aina.
É possível, argumenta, que haja mesmo partilha de recrutas entre a ISWAP e outras filiais regionais do EI, como o Estado Islâmico no Grande Sahara. “Afinal de contas, eles têm a mesma agenda,” disse.
Há já informações de que mais de 200 crianças treinadas da região do Lago Chade foram enviadas para o Mali e o Níger em Fevereiro de 2022 para se aliarem a um afiliado do EI “para levar a cabo uma campanha de terror,” de acordo com a SBM Intelligence, uma plataforma nigeriana de informações geopolíticas.
A abordagem e a prevenção do recrutamento de crianças para as OEV exigirão uma abordagem multifacetada. Aina afirmou que o exército nigeriano “melhorou muito a sua capacidade de conquistar os corações e as mentes” e de criar confiança entre os civis na Bacia do Lago Chade. Para tal, organizou actividades desportivas, forneceu materiais de socorro e ofereceu assistência médica. Estes esforços de boa vontade ajudam a criar recursos humanos no terreno que podem complementar os esforços militares, como o reconhecimento aéreo e os ataques aéreos. Mesmo com tecnologia avançada e meios aéreos, as forças de segurança precisam da capacidade de recolher informações para ajudar a localizar alvos adequados e corroborar as avaliações do impacto da batalha, disse.
A chave é transformar essa boa vontade em medidas concretas para ajudar a solidificar os esforços que impedem a utilização de crianças-soldado. Aina vê três oportunidades para o conseguir.
Em primeiro lugar, as forças armadas nigerianas devem intensificar as suas operações de influência, que têm por objectivo conquistar os corações e as mentes dos civis. Segundo ele, os militares podem fazer mais no domínio da informação para desacreditar as narrativas da ISWAP e do JAS que os jovens possam considerar atractivas. Uma forma de o fazer seria pedir os jovens que abandonaram o extremismo que contrapusessem às histórias gloriosas contadas pelos terroristas com histórias verdadeiras sobre as realidades duras e perigosas de viver com a ISWAP e o JAS. Para o efeito, será essencial visar o recrutamento, através de plataformas das redes sociais mais populares entre os jovens, como o X, anteriormente conhecido como Twitter, o Facebook, o WhatsApp e o Telegram.
A segunda recomendação seria que a Nigéria implementasse plenamente a sua Iniciativa Escolas Seguras, criada em 2014. O então Presidente Muhammadu Buhari assinou o plano em 2019 e, em 2023, há indicações de que a sua implementação está iminente. O objectivo da iniciativa é garantir o acesso seguro das crianças à educação no norte da Nigéria, visto que o Boko Haram tem um historial de ataques e encerramento de escolas na região e de rapto de alunos, como aconteceu com as 276 raparigas de Chibok, em 2014. De acordo com uma estimativa do Governo do Estado de Borno, os insurgentes destruíram mais de 5.000 edifícios escolares ao longo dos anos.
Aina disse que o governo nigeriano deveria expandir o programa, aproveitando a tecnologia para proporcionar aprendizagem virtual e à distância, incluindo nas línguas locais. Se o fizer, o programa deixará de se limitar à protecção dos edifícios e ajudará a proporcionar oportunidades de aprendizagem em locais menos propícios a ataques de insurgentes.
Relacionado com isto está um projecto de lei recentemente assinado que permite aos Estados, empresas e indivíduos gerar, transmitir e distribuir electricidade em determinadas condições. Isso pode ajudar a alargar o serviço de electricidade, tornando mais viável a aprendizagem em casa, disse Aina.
Por último, a Nigéria deve alargar a Operação Corredor Seguro, o programa iniciado em 2016 para acolher os desertores de modo que possam ser reabilitados e reintegrados na sociedade, a fim de responder especificamente às necessidades das crianças ex-combatentes.
Eizenga, do ACSS, afirmou que, à medida que as forças armadas nigerianas continuam a travar a batalha contra a ISWAP e outros insurgentes, há razões para estar optimista quanto ao fim da ameaça extremista no nordeste do país. Mas também é necessário perceber que, se o fizerem, devem estar preparados para tomar as medidas que impedirão o ressurgimento dessa ameaça.
“Penso que estamos num momento em que existe uma verdadeira oportunidade para o governo nigeriano erradicar o Boko Haram e a ISWAP e degradá-los de uma forma que há muito tempo não eram degradados,” disse Eizenga. “Penso que estas facções foram gravemente enfraquecidas e, por isso, este é um momento em que o governo nigeriano pode optar por mobilizar recursos para evitar que consigam recuperar.”
Para tal, o governo e as forças armadas terão de encontrar uma forma de estabelecer uma “presença de segurança sustentada na região, centrada na protecção das comunidades e dos civis,” afirmou. As forças nigerianas e outras forças regionais já tiveram os insurgentes da Bacia do Lago Chade em desvantagem, mas não tiveram a capacidade de os impedir de regressar. Desta vez, isso será essencial.
“Vimos também que estas organizações extremistas violentas podem ser bastante resistentes e que podem funcionar como uma espécie de insurgência de sabotagem,” disse.