Equipa da ADF
Quando se trata de doenças endémicas, o continente africano foi forjado no fogo.
A história está repleta de exemplos de doenças mortais que originaram no continente e assolaram as populações país após país. Algumas, como o Ébola, manifestam-se de forma agressiva em certas regiões específicas em períodos diferentes, matando e aterrorizando as populações enquanto o mundo observa amedrontado.
Outras, como o HIV/SIDA, originam-se numa determinada região e tornam-se uma preocupação de saúde endémica por gerações e gerações, que não é muito diferente da malária ou da febre amarela.
Poucas delas, entretanto, emergem em outros lugares e marcham em todo o globo, infectando a África em todas as direcções e com uma intensidade metódica, incansável e crescente. A COVID-19 é uma destas doenças. Embora este coronavírus seja novo, as suas semelhanças com uma predecessora contagiosa –– a gripe espanhola de 1918 –– são instrutivas.
A África já passou por uma pandemia catastrófica e global antes. A pergunta é, que lições podem ser aprendidas da praga que passou pelo continente há mais de 100 anos?
Começou Com a Primeira Guerra Mundial
Os efeitos da “Grande Guerra” do mundo tinham sido espalhados desde a Europa para envolver países em todos os oceanos e continentes desde que começou em 1914. Até à Primavera de 1918, o conflito estava no seu estágio final. Mesmo assim, os movimentos de tropas entrando e saindo dos países e continentes continuaram em grande escala por via marítima e ferroviária. Estudiosos e especialistas concordam que as movimentações de tropas deram lugar a um alcance global mortal da pandemia da gripe.
“A Primeira Guerra Mundial desempenhou um grande papel na transmissão rápida e global do vírus,” de acordo com um documento do Cento Africano de Estudos Estratégicos (ACSS), de Maio de 2020, intitulado “Lições da Pandemia da Gripe Espanhola de 1918-1919 em África.” “Os navios que transportavam algumas das 150.000 tropas africanas e 1,4 milhões de trabalhadores que garantiam o apoio logístico para a guerra na Europa trouxeram a gripe espanhola aos portos de Freetown, Cidade do Cabo e Mombasa.”
Os portos da Serra Leoa, África do Sul e Quénia ainda são os principais impulsionadores económicos regionais até hoje. A sua importância um século atrás para um continente sob controlo colonial não pode ser subestimada. Cada uma faz parte de uma infra-estrutura vasta e de longo alcance que fazia com que a entrada e a saída do interior do continente fossem simples. Os navios iam para aqueles portos superlotados com homens vindos do solo contagioso da Europa. Ao desembarcar, a maior parte deles seguiam em vagões de comboios para viajar para o interior da África Subsaariana.
Com toda a sua respiração, tosse, apertos de mão e abraços, eles libertavam um potencial para a morte.
É fácil subestimar o poder da gripe. A sua ressurreição e a sua propagação em cada época apresentam novas estirpes com mutações que podem atormentar mesmo aqueles que já lutaram contra a gripe múltiplas vezes. Existem vacinas disponíveis, mas nenhuma delas é infalível. A gripe pode causar sintomas ligeiros a graves, desde febre e mal-estar até à pneumonia debilitante e dificuldades respiratórias. Ela aflige 3 a 5 milhões a nível global, a cada ano, matando entre 290.000 e 650.000 através de sintomas respiratórios, de acordo com a Organização Mundial de Saúde.
Entretanto, houve algo diferente em relação à gripe de 1918.
Um Campo Africano de Mortes
O número de mortes pela gripe espanhola a nível de todo o mundo não teve comparação desde então e foi especialmente letal em África.
A gripe espanhola infectou meio bilhão de pessoas e matou entre 20 milhões e 50 milhões. Com uma população mundial nessa altura que se considerava ser de 1,8 bilhões, isso marca uma potencial taxa de infecções a nível de todo o mundo de até 28% e uma taxa de mortalidade de até 2,8%. Algumas estimativas colocam o número de mortes a nível global em 100 milhões de pessoas.
A África sofreu as piores consequências. “Estima-se que aproximadamente 2 porcento da população de África tenha morrido num intervalo de 6 meses –– 2,5 milhões de uma estimativa de 130 milhões,” afirmou o documento do ACSS. “A febre espanhola dilacerou as comunidades, nalguns casos infectando até 90 porcento da população e gerando taxas de mortalidade de 15%.”
A África do Sul foi um dos cinco países mais afectados do mundo, afirmou o ACSS. A gripe também matou 4% da população de Freetown, na Serra Leoa, num espaço de três semanas. No continente, até 6% da população de Quénia pereceu em nove meses.
A gripe espanhola ficou famosa por ser uma doença dos jovens. No seu auge, rapidamente sobrecarregou os infectados, fazendo com que os seus corpos desencadeassem reacções imunes agressivas que causavam mortes rápidas. Anedotas históricas contam que as pessoas que iam dormir bem de saúde, acordavam doentes e morriam no final do dia.
Contrariamente, a COVID-19 aparenta ser mais perigosa para pessoas mais idosas e para aqueles que tenham condições clínicas subjacentes. Isto é notável para um continente em que a idade mediana é de apenas abaixo de 20 anos.
A Gripe Veio Em Vagas
A gripe espanhola veio em três vagas diferentes. A primeira atingiu a África, na Primavera de 1918, e continuou durante a maior parte do Verão. Esta vaga poupou a África Subsaariana, mas teve casos na África do Norte, Etiópia e em partes da África Oriental e na África do Sul.
Depois, algo aconteceu.
O vírus afligiu a Europa durante os meses em que a guerra estava em declínio, as mutações transformaram a estirpe num patogénico mais mortal.
“No final de Agosto de 1918, navios militares partiram do porto inglês da cidade de Plymouth transportando tropas inconscientemente infectadas com esta estirpe nova e mais mortal da gripe espanhola,” lê-se num artigo escrito por Dave Ross na página History.com. “Quando estes navios chegaram em cidades como Brest na França, Boston nos Estados Unidos e Freetown na África Ocidental, a segunda vaga da pandemia global começou.”
Foi esta segunda vaga que devastou as populações africanas. Como a vaga inicial não penetrou o continente, as vastas populações subsaarianas foram deixadas sem um pouco de imunidade para a investida que se avizinhava. Foi nessa altura que três portos marítimos abrigaram regressados de guerra e, com eles, a gripe mortal.
Um navio da Marinha de Guerra Real Britânica, transportando 124 tripulantes doentes, atracou em Freetown, no dia 14 de Agosto de 1918, sem uma quarentena adequada, escreveu o historiador sul-africano, Howard Phillips, num documento de 1914-1918, que se encontra disponível online: Enciclopédia Internacional da Primeira Guerra Mundial. Homens entraram a bordo com nova carga de carvão, e médicos de outras embarcações entraram a bordo para dar assistência àqueles que estavam doentes na enfermaria. Dentro de duas semanas, escreveu Phillips, 70% da população de Freetown tinha ficado doente.
A infecção de Freetown propagou-se para o sul quando dois navios transportando tropas do Corpo de Trabalhadores Nativos da África do Sul, de regresso a casa e provenientes da Europa, parou no porto da África Ocidental para obter carvão. Pouco depois, os navios partiram, e a doença espalhou-se a bordo. As autoridades da Cidade do Cabo hospitalizaram os doentes e enviaram os soldados para acampar por dois dias, onde foram postos em quarentena livre, escreveu Phillips.
“Quando ninguém apresentou sintomas de gripe, eles foram formalmente desmobilizados e permitidos a embarcarem em comboios para as suas casas em todo o país,” escreveu Phillips. “No dia seguinte, casos de gripe ‘espanhola’ apareceram entre o pessoal do acampamento militar e da unidade de transporte que tinha trazido as topas para ali, entre o pessoal do hospital e entre os estivadores e pescadores que trabalhavam no porto.”
Pensa-se que um navio indiano que veio para o terceiro maior porto, em Mombasa, tenha trazido a segunda vaga da gripe para a África Oriental.
Pouco depois, soldados desmobilizados, carregadores, carvoeiros, funcionários dos caminhos-de-ferro, emigrantes que trabalhavam nas minas e em outros locais começaram a dispersar-se na esperança de escapar de locais de trabalho e aldeias infectadas – o que Phillips chamou de “a ubiquidade da gripe infectou homens em movimento.”
“Foi desta forma que o vírus da gripe aviária se propagou, em maior ou menor escala, em toda a África Subsaariana, no último trimestre de 1918,” escreveu Phillips. “A partir destes três portos — que se tinham tornado verdadeiros nós de infecção para o continente — a pandemia propagou-se ao longo da costa e para o interior, subjugando comunidade após comunidade.”
Logo que a segunda vaga mortal começou a chegar ao fim, em Dezembro, uma terceira vaga, mais moderada, chegou. Ela persistiu durante o Verão de 1919.
Contudo, Mari Webel e Megan Culler Freeman, da Universidade de Pittsburg, alertam contra a abordagem de atribuir ressurgências em termos de vagas para a actual pandemia da COVID-19. Num artigo reeditado pela Smithsonian.com, as pesquisadoras disseram que as diferenças estavam enraizadas no facto de a biologia dos dois vírus fazer com que a COVID-19 seja menos propensa a aderir ao comportamento de vaga da gripe.
Dito de uma forma simples, o coronavírus tende a replicar-se de forma mais eficiente do que os vírus da gripe, diminuindo o número de mutações que pode levar a mudanças sazonais. É precisamente pelo facto de as gripes não apresentarem mutações de forma mais fácil e frequente que as pessoas são aconselhadas a receber vacinas da gripe uma vez por ano.
A gripe também tende a eclodir com maior frequência em climas mais frios, correspondendo ao Inverno. A COVID-19 já se propagou de forma eficiente em climas quentes, temperados e mais frios.
“Tudo isso significa que as oscilações dos casos da COVID-19 são menos propensas a aparecerem com previsibilidade que os debates sobre as ‘vagas’ da gripe de 1918-19 podem sugerir,” escreveram Webel e Freeman. “Ou melhor, enquanto o SARS-CoV-2 continuar a circular em populações não imunes a nível global, o distanciamento físico e o uso de máscaras irão evitar a sua propagação e, de preferência, manter as infecções e as mortes estáveis.”
Lições Modernas da Gripe de 1918
Embora os dois vírus sejam biologicamente distintos, a gripe e a COVID-19 são semelhantes o suficiente que as mesmas precauções de mitigação são eficazes para ambas. O ACSS destaca algumas áreas que precisarão de atenção especial enquanto a luta contra a COVID-19 continua.
Promover o distanciamento social e a higiene: Febre, mal-estar, tosse, dor de cabeça, dores na garganta e dificuldades de respirar são todas elas partilhadas pelos dois vírus. Somente por essa razão, as pessoas deveriam ser bem aconselhadas a manter uma boa higiene pessoal com lavagem frequente das mãos, distanciamento social e uso da máscara, assim como isolamento quando doentes.
Durante a pandemia de 1918, encerramentos e proibições de grandes aglomerados ajudaram a reduzir a propagação da gripe. Zanzibar, um arquipélago que agora faz parte da Tanzânia, e Niassalândia, um antigo protectorado britânico agora conhecido como Malawi, ficaram conhecidos por quarentenas e rastreamento de contactos. “Os esforços destes dois governos foram elogiados como sendo alguns dos mais exaustivos do continente,” de acordo com o documento do ACSS.
Monitorar a segurança alimentar: Muitos relatórios demonstram que os preços dos produtos alimentares subiram de forma galopante em toda a África durante a actual pandemia. Uma reportagem de Setembro de 2020 do jornal The Guardian observou que os produtos de primeira necessidade tinham subido 50% no Sudão devido à COVID-19 e outros factores. Os confinamentos obrigatórios, o distanciamento social, o clima e os conflitos existentes provocaram insegurança alimentar. A Rede de Sistemas de Alerta Antecipado de Fome demonstra que alguns dos problemas mais complicados se encontram no Sudão do Sul.
Os líderes terão de fazer a monitoria das cadeias de produtos alimentares e incentivar os agricultores enquanto garantem o seu acesso ao transporte, armazenamento e processamento de produtos alimentares. Os agregados familiares precisarão de dinheiro suficiente para adquirirem produtos nos mercados locais.
Criar comunicação e confiança: Quando as doenças se propagam, quer sejam elas o Ébola ou a COVID-19, as autoridades devem trabalhar para criar confiança no seio das comunidades de modo a ganhar acesso para tratar, vacinar e promover campanhas de educação cívica às populações sobre a saúde pública. Os surtos de Ébola congolesa, na África Ocidental, sublinharam a importância disto, e isso será de vital importância de agora em diante enquanto a pandemia da COVID-19 continua e novas vacinas começam a ser utilizadas.
As autoridades, em 1918, utilizaram a rádio e os telégrafos para informar de forma eficiente as autoridades médicas sobre navios que estavam a caminho transportando a gripe espanhola assim como aos aldeãos sobre as oportunidades de tratamento médico.
Proteger os profissionais de saúde: Muitas partes de África já possuem poucos médicos e enfermeiros para cobrirem grandes populações. Enquanto a COVID-19 se propaga, as instalações e os profissionais que trabalham nelas devem ser protegidos. Alguns países como o Quénia, Lesotho, Malawi e Sudão estão a mobilizar o exército e as forças de segurança para apoiarem e protegerem os profissionais de saúde. Esta é uma das coisas mais importantes que as forças de segurança podem fazer durante um surto de doença.
Ninguém pode prever de forma confiável quando a pandemia da COVID-19 irá passar, mas lidar com ela de forma eficaz – independentemente do tempo que ela pode durar – precisará de vigilância, cooperação e compromisso com a transparência, segurança e boa governação.