Durante mais de 40 anos no exército, o General Robert Kibochi, esteve em posições de comando como vice-chefe das Forças de Defesa do Quénia (KDF), comandante do Exército do Quénia e vice-chefe de operações, planificações, doutrina e formação no Quartel-General da Defesa. Ele comandou o contingente queniano da Missão da ONU na Serra Leoa, de 2000 a 2001, e foi atribuído a ordem de Ancião da Ordem de Coração Dourado e Chefe da Ordem de Espada Flamejante pela sua liderança. Em 2020, foi nomeado chefe das forças de defesa (CDF) e em 2022 tornou-se o primeiro CDF em exercício a concluir o seu doutoramento. Ele falou com a ADF a partir de Nairobi. Esta entrevista foi editada por questões de espaço e clareza.
ADF: Pode partilhar um pouco sobre a sua infância e o que o levou a juntar-se ao exército?
Kibochi: Eu venho de uma família muito humilde. Nasci próximo da região do Vale do Rift, na parte ocidental do país. Cresci assim como qualquer outra criança rural, cuidando do gado e caminhando para a escola. No Quénia, passa-se por um ensino primário, com duração de sete anos, depois segue-se para a escola secundária. Acabei por entrar numa escola secundária que tinha sido construída pelos britânicos durante os dias do colonialismo num quartel de infantaria. O tempo nesta instituição, que está mesmo dentro do acantonamento, moldou a maior parte de nós, não apenas a mim. Aqueles que estavam ali foram moldados para serem oficiais e alguns tornaram-se militares primeiramente por causa da socialização daquele ambiente onde você cruza com estes jovens de uniforme e os admira. Então, juntei-me às KDF em 1979 como um cadete e fui treinado e comissionado como um segundo-tenente em 1980.
ADF: Ao longo da sua carreira obteve uma licenciatura, dois mestrados e recentemente concluiu o seu doutoramento em paz e gestão de conflitos. Por que razão a formação é tão importante para si?
Kibochi: Quando crescíamos naqueles dias, no ambiente rural e em situações ténues, a educação tornou-se a única forma de podermos sair do ambiente em que vivíamos. Alguns de nós possuem uma forte crença de que existe uma natureza transformadora na educação. Penso que, desde o início, dediquei uma grande paixão para ganhar conhecimento e ser curioso. Desde essa altura em diante, tive um bom desempenho até ao ponto em que me juntei ao exército. Tive a curiosidade de querer conhecer mais e também ficar na linha da frente, que eu penso que é muito importante num mundo competitivo.
ADF: De que modo a sua educação na sala de aulas foi valiosa para a sua vida profissional?
Kibochi: Uma das coisas que a educação faz é capacitar alguém para ver as conexões e as ligações em falta que as outras pessoas não vêem. Penso que, ao longo dos meus estudos, houve aspectos que me permitiram concentrar-me de forma eficaz em várias áreas. Penso que a educação nos dá a coragem, a confiança, para sermos capazes de enfrentar as inquisições que vêm dos líderes. Também penso que a educação é de vital importância, especialmente para os líderes seniores, por ajuda-nos a sermos capazes de compreender as coisas. Sou o conselheiro principal do comandante-em-chefe no Conselho de Segurança Nacional, por isso, preciso de ser capaz de compreender o âmbito das questões, e a educação faz exactamente isso.
ADF: Em Agosto de 2022, o país inaugurou o complexo da Universidade Nacional de Defesa do Quénia (NDU-K), em Lanet, Condado de Nakuru. O que esta instituição pioneira de ensino irá oferecer?
Kibochi: A questão à volta da criação da Universidade Nacional de Defesa do Quénia foi uma abordagem muito progressiva, começando pelos meus predecessores. O Colégio de Defesa Nacional foi criado 25 anos atrás e, antes disso, houve a criação do Colégio de Pessoal de Defesa há cerca de 40 anos. Nós fomos o primeiro país na região a criar estas instituições. Esta progressão foi informada por uma questão fundamental: o pensamento de que as habilidades humanas nas Forças de Defesa do Quénia são uma componente de vital importância para garantir que a força continue relevante para se apresentar perante as dinâmicas de um ambiente muito complexo e em constante mudança.
Houve várias instituições que foram criadas ao longo dos anos, incluindo o Colégio de Pessoal de Defesa, o Colégio Nacional de Defesa, o Colégio Técnico das Forças de Defesa, o Colégio de Defesa de Ciências de Saúde e também o Centro de Treinamento Internacional de Apoio à Paz. Portanto, esta NDU-K é uma culminação ou uma progressão que é de extrema importância. É informada pela necessidade de sermos capazes de ter uma força relevante, uma força que estará à frente de várias dinâmicas que estão a ocorrer em todos os domínios da guerra, incluindo agora o quinto domínio, que está a ficar claro que é o domínio cibernético.
A NDU-K não é apenas uma força multiplicadora em termos de criação de conhecimento, também é um local de inquisição, onde as pessoas são capazes de fazer pesquisas no mais alto nível. Dentro da NDU-K, temos um centro de estudos estratégicos, um grupo de reflexão e pesquisa que os EUA estão a ajudar a desenvolver aqui, em Nairobi. Isso, na minha opinião, é muito importante por causa da multiplicidade de ameaças que temos de enfrentar, sejam elas ameaças transnacionais, estejam relacionadas com a pirataria, terrorismo e também com as pandemias. Esta instituição é uma peça fundamental.
ADF: Olhando pelo continente, por que acha que é importante que os países africanos expandam o acesso doméstico ao ensino militar profissional?
Kibochi: É importante que o exército mantenha os valores fundamentais de profissionalismo, lealdade política e subserviência às autoridades civis. Para fazer isso, a bolsa de estudo militar é indispensável para o desenvolvimento de uma cultura militar que protege a constituição e orienta a prontidão para a missão de modo a tornar-se uma força confiável e capaz. Este tem sido um grande desafio em muitos países africanos. Sendo assim, encontramo-nos como um exportador de conhecimento no continente. Temos o orgulho do facto de que a maior parte dos países vizinhos da Comunidade da África Oriental tiveram oportunidade de aprender de nós. Este tem sido um dos principais divisores de água na forma como os países estão a desenvolver-se e a democratizar-se.
A formação militar profissional é uma peça fundamental e estou confiante de que os países que visitaram e levaram a sério a questão viram o quão ela é importante.
ADF: Nos últimos anos, as KDF assumiram algumas tarefas não tradicionais a pedido do presidente. Estas incluem assumir as operações da Comissão de Carne do Quénia, trabalhar para melhorar o sistema ferroviário entre Longonot e Butere e reabilitar o Porto de Kisumu. Como olha para o papel do exército nestas tarefas tradicionalmente civis?
Kibochi: Tem a ver realmente com o papel da instituição da defesa em apoiar e cooperar com as agências governamentais. Isso, no nosso caso, está muito bem plasmado na Constituição. Fornece-nos um mandato para proteger e defender a soberania e integridade territorial do país como uma tarefa primária. Depois vai para além disso e diz que devemos cooperar e ajudar as outras instituições do governo em tempos de emergência, desastres e em áreas onde temos competências.
É aparente que o comandante-em-chefe, que é responsável pelo instrumento militar, quando ele compreende que têm competências que podem ajudar a mitigar as dificuldades que aconteceram no país, ele usa este instrumento.
Há pouco tempo, visitei uma das fábricas da Comissão de Carne do Quénia, em Mombaça. O que está a acontecer lá tem um grande impacto, porque alcança o agricultor que é criador de animais e apenas depende do gado ou de cabritos. Eles não têm outro lugar em termos de mercados para vender esses produtos. Esta instituição criou um mercado para aqueles que não são capazes de tê-los. Também criou um produto que nós, no sector de segurança, devemos ter. Precisamos de carne de conserva para as nossas tropas quando estão a treinar. Antes comprávamos no Brasil e outros países, agora é produzida localmente. É importante olhar para isso numa perspectiva de que o instrumento militar existe para servir o país em várias dimensões: ao proteger o país de ameaças à segurança e também em termos de envolvimento em cooperação civil-militar, sabendo muito bem que os impostos dos cidadãos é que sustentam o instrumento de poder do exército. Se temos capacidades que podem ajudar a levar a cabo estas tarefas, temos uma forte crença de que devemos estar envolvidos. E sob um ponto de vista mais amplo, a população do Quénia gostou disso. Ela encoraja-nos a fazermos mais. Mas nós temos de criar um equilíbrio e recordar que a nossa responsabilidade primária é garantir a segurança do país.
ADF: Outra transformação durante o seu tempo de liderança das KDF foi o foco no combate ao terrorismo. Isso incluiu uma quantidade significativa de dinheiro e recursos investidos no Corpo de Inteligência Militar. De que forma pode indicar que as KDF mudem e respondam para enfrentar a ameaça?
Kibochi: O combate ao terrorismo e o combate ao extremismo violento tornaram-se algumas das principais preocupações de países como o Quénia, particularmente por causa da nossa proximidade com o epicentro de grupos violentos como o al-Shabaab. E também vimos este extremismo violento a expandir-se de uma forma séria — descendo até Moçambique — o que anteriormente não era o caso.
Como nós nos envolvemos nas operações de combate ao terrorismo há 10 anos, aprendemos lições de uma forma muito dura. Uma das áreas em que tivemos de fortalecer e reforçar é o campo da inteligência, porque o terrorismo e o extremismo violento apenas podem ser combatidos se tivermos inteligência. Lida-se com um inimigo sem rosto, que é capaz de integrar-se ou infiltrar-se no seio da população, disfarçar-se de muitas formas e causar muita confusão. Eles fizeram isso na Universidade de Garissa e em supermercados aqui no Quénia. O investimento na inteligência foi tremendo e estamos confiantes de que está a trazer recompensa. Somos capazes de antecipar muitos dos ataques que são planificados. Para além disso, cooperar com outras agências, incluindo os nossos parceiros das forças armadas dos EUA que estão na região, também trouxe grandes recompensas. Trouxe-nos lições de que não podemos lutar contra o terrorismo na postura que tínhamos no passado. Essa postura foi definida por uma doutrina que dizia que lutaríamos uma guerra entre países. Tivemos de introduzir forças especializadas, equipas pequenas que podem viver dentro das áreas operacionais, resistir dias longos e ser capazes de enfrentar as dificuldades do terreno. Também reforçámos a formação e a educação, mudando a doutrina e garantindo que treinamos e equipamos as tropas com equipamento relevante e para lidar com estas ameaças. Será que traz resultados? Sem dúvidas. Continuamos a fortalecer estas capacidades assim como a trabalhar estreitamente ligados aos nossos parceiros.
ADF: De que modo vê as KDF a transformarem-se no futuro para enfrentar as ameaças emergentes do Séc. XXI?
Kibochi: Um dos principais desafios é de que a situação de segurança será mais complexa à medida que avançamos. O meu ponto de vista sempre foi de que devemos melhorar a escala da nossa formação e devemos tirar vantagem da tecnologia, porque os recursos que obtemos do governo são finitos. Não estão a aumentar. São prioridades concorrentes dentro do governo. Por conseguinte, devemos perguntar como nós próprios, como uma instituição, podemos desenvolver capacidades?
Uma das áreas que temos estado a abordar é perguntar “Como podemos melhorar a nossa capacidade de industrialização militar?,” o que é muito importante e esteve latente por muito tempo. Temos de ser capazes de desenvolver alguns sistemas localmente sem ter de depender por completo de importações. Temos uma população muito jovem neste país. Os que estão a juntar-se às KDF são jovens brilhantes. Temos de garantir que fornecemos oportunidades e um ambiente para que eles possam explorar o seu potencial no desenvolvimento de soluções e aplicar essas soluções. Procurei criar um ambiente em que os jovens especialistas em TI possam criar um centro para explorar a sua inteligência e modernizar alguns dos antigos equipamentos de legado que temos. Vi uma grande melhoria na forma como eles têm estado a transformar sistemas analógicos antigos em sistemas digitalizados. Isso significa que, cumulativamente, estamos a reduzir a dependência de recursos externos. E, se isso puder acontecer em várias dimensões, então, significa que seremos capazes de ver umas KDF mais prontas, bem equipadas e preparadas para enfrentar os desafios do futuro.