EQUIPA DA ADF
Os protestos da Primavera Árabe alastraram-se por toda a África do Norte e pelo Médio Oriente no início de 2010 quando os cidadãos se levantaram contra anos de um governo autocrático. Os protestos produziram uma variedade de resultados, desde o caos duradouro na Líbia a um namoro com o governo democrático no vizinho Egipto.
O alcance da Primavera Árabe chegou a Barém, Emirados Árabes Unidos e Iémen. Acendeu o pavio que explodiu transformando-se na guerra civil da Síria, que persiste até hoje.
Mas na Tunísia, um país de 12 milhões de habitantes localizado entre Argélia e Líbia, as coisas foram diferentes. Estas diferenças podem ser atribuídas, em grande parte, às características do exército tunisino e como este respondeu aos protestos. As decisões que os comandantes tomaram nos momentos cruciais ajudaram a guiar o país para longe do governo autocrático em direcção àquela que foi uma democracia razoavelmente estável — embora imperfeita — desde essa altura.
O exemplo da Tunísia pode fornecer um roteiro valioso para outros exércitos. Quando um país está na iminência da democracia, a forma como os seus exércitos respondem — ou optam por não responder — pode fazer uma grande diferença.
“O que faz a diferença entre uma transferência democrática e uma transição complicada? Onde reside a lealdade dos exércitos?” questionaram o Dr. Nathaniel Allen, do Centro de Estudos Estratégicos de África, e o cientista político, Dr. Alexander Noyes, no Rand Corp. em 2019. “Quando as forças de segurança apoiaram o partido político de um ditador em detrimento da oposição, como no Togo e no Zimbabwe, o antigo regime continuou no poder através de um golpe ou eleições fraudulentas. Mas quando as forças de segurança depuseram os que estavam em exercício, como no Sudão e na Argélia, ou permaneceram neutros, como na Etiópia e Angola, houve oportunidades para transformar o sistema político através de eleições genuinamente livres, pacíficas e justas.”
A EXPERIÊNCIA DA TUNÍSIA
O exército da Tunísia, em última instância, tomou as melhores escolhas para a cidadania e para as probabilidades de democracia em 2011. Mas talvez o mais fascinante tenham sido as motivações do exército ao fazer tais escolhas.
O tamanho do exército, a estrutura e a ligação com o regime do então presidente, Zine El Abidine Ben Ali, oferecem perspectivas. Quando os protestos começaram, em Dezembro de 2010, as pequenas Forças Armadas da Tunísia — cerca de 40.000 soldados — na essência estavam desligadas do regime de Ben Ali pelo facto de o presidente autocrático ter criado um sistema em que a polícia e os guardas presidenciais e nacionais tivessem maior parte do poder.
Esse afastamento funcionou contra o regime quando os soldados se recusaram a ficar entre os protestantes e Ben Ali, que desistiu do poder e fugiu do país em Janeiro de 2011. Mais de 10 anos depois, Dr. Sharan Grewal chama Tunísia de “único caso de sucesso” da Primavera Árabe por ter conseguido manter a sua democracia, independentemente do quão ténue isso possa parecer.
Ben Ali e o seu predecessor, Habib Bourguiba, tinham confiado num sistema de segurança fragmentado que distanciava o exército do regime a favor de outras forças de segurança, Grewal, do Colégio de William & Mary, dos Estados Unidos, escreveu para a Brookings Institution, em Janeiro de 2021.
“Esta imparcialidade foi uma grande vantagem durante a revolução e a transição, quando o exército marginalizado afastou-se de Ben Ali e, subsequentemente, permitiu que a transição prosseguisse sem quaisquer interesses pessoais,” escreveu Grewal. “Para além disso, a imparcialidade significou que sem o exército, as forças de segurança internas não podiam sozinhas preservar Ben Ali nem planificar um golpe e impedir a transição em 2013.”
Resumindo, o exército ajudou a capacitar a revolução e a marcha do país em direcção à democracia, rejeitando a sua própria marginalização de longa data. Ben Ali e o seu predecessor, conforme Grewal escreveu para o Carnegie Endowment, em Fevereiro de 2016, mantiveram os soldados nos quartéis, sem financiamento, sem equipamento e distantes das alavancas do poder político e económico.
“Esta falta de interesses pessoais permitiu que o exército deixasse rapidamente de lado a situação de Ben Ali, depois da sua deposição, em Janeiro de 2011, e depois permanecer muito mais retirado do desenvolvimento político doméstico do que outros exércitos da região,” escreveu Grewal para o Carnegie.
Quando Bourguiba esteve no poder, eventualmente confiou mais no pessoal do exército para segurança, e alguns deles assumiram um cargo mais político. Mas Ben Ali, anteriormente um brigadeiro-general, começou a subir através de cargos civis e políticos e eventualmente removeu Bourguiba num golpe branco, em 1987.
“Bourguiba não gostava do exército, mas respeitava-o,” General Said el-Kateb, na reforma, um antigo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, disse à Grewal. “O exército, no regime de Bourguiba, tinha melhor tratamento do que a polícia, no que diz respeito ao orçamento, equipamento e treinamento. No regime de Ben Ali, o orçamento alocado à polícia era superior em relação ao alocado ao exército; o número de agentes da polícia aumentou drasticamente. Podíamos sentir a nossa marginalização.”
O PODER DOS EXÉRCITOS
Os comandantes do exército tunisino podiam ter ordenado os soldados para irem às ruas esmagar violentamente a rebelião civil desde o começo. Mas, em vez disso, as tropas ficaram do lado do povo e, em última instância, da democracia. Agora a Tunísia tem aquilo que Grewal chama de “uma das constituições mais progressivas do mundo” e está a continuar a sua jornada longa e complicada em direcção a uma democracia mais estável.
Infelizmente, nem todos os exércitos africanos fazem os mesmos tipos de cálculos como a Tunísia. A história recente está repleta de exemplos de exércitos que tomaram decisões erradas no que diz respeito à ingerência em assuntos políticos. O registo de golpes do continente fornece comprovativos.
De acordo com o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), houve mais de 200 golpes militares entre o início dos movimentos de independência africana, em 1960 e 2012. Cerca de 45% foram bem-sucedidos, resultando em mudança de poder no topo. O estudo analisou 51 países africanos e apenas 10 destes nunca tiveram uma tentativa ou planificação de golpe bem-sucedida nesse período: Botswana, Cabo Verde, Egipto, Eritreia, Malawi, Ilhas Maurícias, Marrocos, Namíbia, África do Sul e Tunísia. Desde essa altura, o Egipto já teve um golpe de Estado militar.
O estudo do BAD concluiu que no mesmo período de tempo, 80% dos países da amostra tiveram pelo menos um golpe ou um golpe fracassado. Aproximadamente dois terços — 61% — teve entre duas e 10 tentativas de golpe de Estado militares.
Quando os exércitos interferem na política de um Estado democrático, eles pisam na soberania popular, Craig Bailie, professor de ciências políticas na Universidade Stellenbosch da África do Sul, escreveu para o Centro Africano para a Resolução Construtiva de Disputas (ACCORD).
Os exércitos africanos “devem conhecer, compreender e aceitar” o seu lugar no que diz respeito à política. “Isto levará àquilo que os estudiosos de relações civis-militares designam ‘controlo democrático’ do exército,” escreveu Bailie. “Sem a aceitação do exército dos princípios de controlo democrático, a democracia não pode existir.”
O Dr. Naison Ngoma, vice-reitor da Universidade de Copperbelt da Zâmbia, resumiu os princípios e as responsabilidades geralmente aceites pelos exércitos profissionais no artigo “Civil-military relations in Africa: Navigating uncharted waters (Relações Civil-Militares em África: Navegando em águas desconhecidas)” da revista African Security Review, do Instituto de Estudos de Segurança. Os exércitos devem:
- Responder perante às autoridades civis, à sociedade e às agências de supervisão competentes.
- Respeitar o Estado de Direito doméstico e internacional.
- Fazer a planificação e produzir orçamentos de forma transparente.
- Respeitar os direitos humanos e o civismo cultural.
- Sujeitar-se ao controlo político nos assuntos operacionais e financeiros.
- Consultar regularmente a sociedade civil.
- Comportar-se de forma profissional.
- Apoiar a paz e a segurança de forma colaborativa.
“Embora estes princípios não sejam sempre fáceis de respeitar, as RCM [relações civil-militares] em África seguiram em direcção a e continuarão a seguir para cada vez mais próximo da observação destes princípios,” escreveu Ngoma. “Por conseguinte, é fundamental que os exércitos africanos incluam programas de educação cívica a todos os níveis do ensino e formação de modo a ganhar um melhor entendimento dos e um comprometimento com estes princípios.”
O QUE MOTIVA AS LEALDADES MILITARES?
Allen e Noyes apontam cinco coisas que indicam como os exércitos irão comportar-se em meio a potenciais transições para a democracia — se eles a apoiam ou lutam contra ela.
Primeiro, quanto mais inclusivos, maiores e pacíficos os protestos populares forem, menos provável é que os soldados reajam de forma violenta. Se os manifestantes estiverem unidos nas linhas económica, étnica e religiosa, os exércitos serão menos propensos a reprimi-los, principalmente se os soldados das bases forem representantes da sociedade. Esse foi o caso da Argélia, Etiópia e do Sudão.
Segundo, se as forças militares forem amplamente representativas e recrutadas e promovidas com base no mérito, estarão mais aptas para apoiar as transições democráticas.
Um ponto crucial que Allen e Noyes descrevem é que os exércitos, muitas vezes, agem de acordo com os seus melhores interesses. Os orçamentos, os pagamentos, o equipamento, as condições de vida e mais podem ser uma grande influência. A marginalização do exército tunisino a favor de outras forças de segurança é um exemplo. Os soldados daquele país não acharam bom intervir contra o público. Da mesma forma, o regime de Ben Ali não dependia deles nem os utilizava em sua defesa.
Este sentimento de auto-interesse pode ser visto de uma outra forma. No Zimbabwe, por exemplo, o exército está estreitamente alinhado com os agentes políticos. Embora tenha deposto o ditador, Robert Mugabe, em 2017, depois de 37 anos no poder, o exército instalou um outro civil com quem tem ligações muito próximas.
“Isto reteve o seu acesso às receitas, enquanto evitava a bagagem política que teria acompanhado se se tivessem apegado ao poder por um tempo indeterminado,” escreveu Bailie para o ACCORD.
A escolha do exército de substituir Mugabe por Emmerson Mnangagwa por pouco evitou a prorrogação do mandato nas disputadas eleições de 2018.
Os líderes políticos também podem criar as suas ligações pessoais com forças militares, utilizando concessões e incentivos para ajudar a transformar os oficiais dos exércitos persistentes a fim de apoiar mais reformas democráticas. Como foi recentemente o caso da Etiópia, onde o Primeiro-Ministro, Abiy Ahmed, instituiu uma série de mudanças, incluindo o levantamento da lei marcial, a libertação de prisioneiros políticos e a suavização das relações com a vizinha Eritreia. Ahmed é um antigo coronel do exército. Da mesma forma, a oposição civil deve ser capaz de comunicar de forma eficaz com as forças de segurança.
“Os grupos da oposição no Sudão ajudaram a acabar com o governo de [Presidente Omar al-]Bashir, em parte, apelando directamente às forças de segurança, evitando a violência, continuando unidos e organizando reuniões em frente dos quartéis,” escreveu Allen e Noyes.
Finalmente, os treinamentos e as capacitações no estrangeiro são mais eficientes quando priorizamos a responsabilização, a integridade financeira e os direitos humanos, em detrimento de formação e fornecimentos de equipamento.
O caminho que vai da tirania à democracia não é fácil. A Tunísia ainda luta para consolidar na totalidade as suas reformas ganhas com trabalho árduo. O Sudão encontra-se num precipício precário há mais de dois anos, depois de remover um ditador; ainda assim, pode ser fácil cair num caos. Os exércitos africanos edificados no profissionalismo, treinos adequados e que protegem o público, não servindo a um regime, estão mais bem posicionados para apoiar qualquer transição bem-sucedida em direcção à democracia.