MUSTAFA ELSAGEZLI
Desde 2011, a Líbia tem passado por uma turbulência quase inimaginável com todos os aspectos da sociedade a serem afectados pela violência.
Durante esse tempo, o país tem funcionado com o que às vezes é chamado de “economia de guerra”, com muitas pessoas, principalmente jovens do sexo masculino, a utilizarem armas como o seu único meio de sobrevivência. Os primeiros esforços de reforma do sector da segurança mostram que o número de combatentes é impressionante. Um esforço de 2012 da Comissão Líbia para os Assuntos dos Combatentes recolheu dados sobre 162.000 antigos combatentes revolucionários e membros do grupo armado. Uma reportagem da BBC contabilizou 1.700 grupos de milícias. Os números reais podem ser ainda maiores, pois estima-se que haja 20 milhões de armas espalhadas por toda a Líbia.
À medida que o país tenta reconstruir-se, enfrenta um grande desafio. De que forma essas pessoas podem ser reintegradas na sociedade? Como lhes pode ser mostrada uma forma de levar uma vida produtiva sem voltar à violência? Como podem outros cidadãos se sentirem confiantes de que estes antigos combatentes não voltarão a ameaçar a segurança do país? E como podemos nós, como líbios, lançar as bases para uma paz duradoura?
O desenvolvimento que conduz à autonomia económica da juventude e à expansão do sector privado é a chave para construir a paz e estabilizar o país. Os principais desafios para os países frágeis e afectados por conflitos estão relacionados com a construção do Estado e da nação. Os principais desafios da construção do Estado são estabilizar e reformar a segurança e os sectores públicos, desenvolver a economia e mudar a cultura, deixando de ser propensa a conflitos para ser enraizada na paz. Uma solução para estes desafios pode ser encontrada através de pequenas e médias empresas (PMEs) e desenvolvimento do empreendedorismo.
PMEs
Então, o que é uma PME? A definição varia consoante os países, mas a maioria das PMEs são empresas de retalho com menos de 50 trabalhadores. Barbearias, cafés, lojas de esquina, lojas de informática, oficinas de manutenção, pequenas fábricas ou equipas de obras de construção são exemplos. Algumas médias empresas com até 250 trabalhadores também se enquadram nesta definição. As PMEs criam postos de trabalho para jovens e aumentam a quota-parte do sector privado na economia, com potencial para resolver muitos dos fracassos que o Estado líbio tem enfrentado historicamente.
Durante anos, a Líbia tem sido esmagadoramente dependente de empregos do governo, e o sector de petróleo e gás dominou a economia. Esta economia rentista incentiva uma mentalidade de dependência. A vida política e económica gira em torno de um jogo de soma zero de controlo dos recursos estatais. Isto tem de mudar. As PMEs e o empreendedorismo podem transformar a economia para sair de uma economia que depende das receitas do petróleo e do gás para uma economia diversificada que tire proveito dos activos da Líbia, tais como a sua localização geográfica estratégica. Isto tem uma importância acrescida à medida que o mundo procura alternativas às fontes de energia à base de carbono de que a Líbia depende para a maior parte da sua riqueza.
As PMEs e o espírito empresarial também podem ajudar a transformar a economia controlada pelo Estado da Líbia num mercado livre e dinâmico. Uma economia de mercado livre com um grande sector privado pode fortalecer as instituições estatais, diminuindo o fardo do Estado ao empregar um grande número de pessoas. Várias estimativas mostraram que cerca de 50 por cento da população líbia é composta por funcionários do sector público.
ESPERANÇA RENOVADA
O crescimento do empreendedorismo e das PMEs dará esperança aos jovens líbios, que entraram em desespero para poder ter um futuro melhor e ficaram decepcionados depois de terem tido grandes esperanças na revolução. A Líbia tem uma população jovem que pode ser uma fonte de riqueza e capital para o desenvolvimento ou, se negligenciada, uma fonte de instabilidade e um combustível para guerras. Abrir caminhos de esperança para os jovens, incluindo antigos combatentes e membros de grupos armados, proporcionando-lhes oportunidades de negócios, ajudará a trazer paz e estabilidade ao país.
A resolução da questão da disseminação de armas e milícias tem sido o maior obstáculo com que o governo líbio se deparou nos últimos oito anos. Em entrevistas realizadas pela organização em que sou gestor, o Programa Líbio de Reintegração e Desenvolvimento (LPRD), antigos combatentes e membros de grupos armados mostraram vontade de desarmar e participar na reconstrução da economia, caso recebam oportunidades de pequenos negócios. Ao examinar as experiências de outros países em programas de desarmamento, desmobilização e reintegração, fica claro que fornecer aos antigos combatentes o financiamento e as habilidades para abrir pequenos negócios é eficaz.
Alguns argumentam que o desenvolvimento não pode ser realizado até que a segurança total seja alcançada, mas exemplos históricos têm demonstrado que o inverso é verdadeiro. O desenvolvimento económico pode estimular e capacitar todos os pilares do Estado e, na realidade, criar segurança. Os membros do grupo armado e antigos combatentes são empresários por natureza, pois têm coragem e ambição. Esta característica de bravura e coragem, se canalizada para o empreendedorismo e para o desenvolvimento económico, pode transformar uma ameaça numa oportunidade. O entusiasmo em abrir seus próprios negócios e as grandes ideias empresariais que antigos combatentes expressaram em entrevistas do LPRD mostram que podemos transformá-los em agentes de estabilidade e desenvolvimento socioeconómico.
A nossa investigação mostrou também que a consecução do objectivo de desenvolvimento socioeconómico e de capacitação económica dos jovens através das PMEs tem muitos desafios a enfrentar. Por exemplo, num conflito como o da Líbia, os combatentes muitas vezes não estão dispostos a desistir das armas enquanto outros ainda estiverem armados. Temem que os seus opositores armados assumam o controlo dos bens do Estado. Além disso, a frustração aumenta depois que os combatentes largam as armas, mas não vêem oportunidades económicas. Estes desafios devem ser enfrentados.
TUMUH
Em árabe, a palavra tumuh significa ambição. Temos a crença de que muitos dos jovens que participaram no conflito líbio têm uma ambição imensa, mas é preciso que ela seja canalizada para algo produtivo.
Por essa razão, o LPRD chamou o seu programa de Tumuh, porque ele foi projectado para abrir as portas do empreendedorismo para antigos combatentes. O programa, lançado em 2013, visa dar formação em habilidades, acesso a financiamento, assessoria jurídica, planificação e marketing para ajudar as pessoas a estabelecer e administrar um negócio com sucesso. Tumuh foi congelado por cinco anos por motivos de segurança, mas reiniciou em Novembro de 2019.
O objectivo do Tumuh é dar empregos e oportunidades de carreira para 70.000 antigos combatentes. Acreditamos que permitir que estas pessoas criem os seus próprios negócios não só as ajudará, como também ajudará a economia global da Líbia.
O LPRD está a dividir este plano em quatro fases:
- Mapeamento económico e estudo de viabilidade.
- Formação e reabilitação de candidatos.
- Lançamento de projectos PME.
- Acompanhamento dos progressos.
Contratamos especialistas locais e internacionais para elaborar um mapa económico nacional e um estudo de viabilidade para determinar que projectos são mais adequados para cada região do país.
Após a fase inicial de mapeamento, a equipa procurará estabelecer um desenvolvimento sustentado. Inicialmente, 80 licenciados em gestão e áreas afins foram seleccionados da base de dados do LPRD para serem formados como consultores de negócios. Utilizando peritos regionais, os 80 candidatos realizaram uma formação intensa em tópicos fundamentais, tais como marketing, vendas, gestão de projectos e planeamento de negócios. Eles também passaram um tempo no exterior a receber formação adicional para terem uma compreensão mais ampla do assunto.
Além disso, os gestores do LPRD abriram quatro centros de negócios, com o objectivo de expandir para oito. Esses centros actuarão como um pólo de consultoria que recebe especialistas em negócios que podem fornecer mais apoio individual e aconselhamento sobre a gestão de negócios.
O LPRD lançou um programa parceiro chamado Bina, que significa “construir” em árabe. Este programa, criado com o apoio do Ministério da Economia e Indústria da Líbia, do Banco Islâmico de Desenvolvimento e de doadores privados, visa apoiar as pequenas empresas emergentes. Oferece serviços de formação, aconselhamento e incubação de pequenas empresas.
O CAMINHO A SEGUIR
A questão das milícias e da disseminação de armas tem sido o principal obstáculo à estabilização e ao desenvolvimento da Líbia. Se o governo líbio priorizar a criação de PMEs nas suas políticas, legislação e programas, pode garantir uma transição pacífica para a sua juventude, saindo da violência para a paz e desenvolvimento. Esta transição conduzirá à estabilidade e abrirá as portas a mais reformas institucionais e económicas. Uma maior estabilidade significará também o retorno do desenvolvimento de infra-estruturas, do investimento directo estrangeiro e do crescimento do sector privado.
As PMEs e o empreendedorismo proporcionarão emprego e autonomia económica a comunidades negligenciadas que, de outra forma, causariam instabilidade. Acreditamos que Tumuh, Bina e projectos similares têm um papel a cumprir. Ao mostrar aos antigos combatentes que um investimento no seu próprio futuro pode ser um investimento no futuro da Líbia, acreditamos que os combatentes que desempenharam um papel na desestabilização do país podem liderar o caminho para a paz e prosperidade.
Mustafa Elsagezli é fundador e director geral do Programa Líbio de Reintegração e Desenvolvimento. Foi vice-ministro do Interior no governo de transição da Líbia e director fundador da Comissão para os Assuntos dos Combatentes em 2011.