O Tenente-General Daniel Sidiki Traoré foi nomeado Comandante da Força Terrestre da MINUSCA em Janeiro de 2020, depois de servir como comandante-adjunto durante dois anos. Nascido no Burkina Faso, entrou para as Forças Armadas Nacionais do país em 1977 e desempenhou várias funções, incluindo comandante da 6ª Região Militar, comandante da 2ª Região Militar, director do Departamento de Operações nos quartéis-generais, director do Departamento de Serviços Secretos, director do Departamento de Recursos Humanos e conselheiro especial do Chefe do Estado-Maior da Defesa. Serviu em missões de manutenção da paz da ONU na República Democrática do Congo, Chade, Sudão e Mali. Ele conversou por telefone com a ADF a partir do quartel-general da missão na República Centro-Africana (RCA). A entrevista foi editada para se adequar a este formato.
ADF: A nível pessoal, por que dedicou tanto da sua carreira à manutenção da paz?
Traoré: Na minha opinião, a paz é a coisa mais importante na vida. Sem paz, a vida seria inútil. Principalmente no continente africano, onde temos muitos problemas em termos de segurança, penso que os que têm capacidade de ajudar e dar um contributo não se devem abster dessa responsabilidade. É por esse motivo que, durante mais de 20 anos, dediquei uma parte da minha carreira militar e da minha vida ao processo de manutenção da paz. E acredito que, com este intuito de trazer a paz, nós vamos consegui-la. E se conseguirmos ter paz em África, vamos conseguir o mesmo em todo o mundo.
ADF: A MINUSCA foi criada há seis anos, depois da crise de 2013, na RCA. Ainda há muitas áreas que não são controladas pelo governo. Como é possível cumprir missões de manutenção da paz quando ainda existem grupos rebeldes activos e a fazerem ataques?
Traoré: A assinatura do acordo de paz entre o governo da RCA e 14 grupos armados, no dia 6 de Fevereiro de 2019, trouxe alguma esperança ao processo de paz. Desde então, tem havido progressos no que respeito à restauração da autoridade do Estado. As forças de defesa e segurança foram destacadas para áreas onde tinham estado ausentes durante anos. A MINUSCA apoiou o destacamento do exército da RCA em Bangassou, Bria, Kaga-Bandoro, Ndélé e Birao.
Contudo, alguns grupos armados não cessaram de cometer violações. Tendo em conta este contexto, a MINUSCA tem uma abordagem fundamentada no diálogo, bons ofícios e numa postura robusta.
Esta abordagem inclui:
Destacamento de soldados de manutenção da paz da MINUSCA na zona da responsabilidade da missão, em especial em locais de conflito intenso e áreas controladas pelos grupos armados. Nós fazemo-lo com uma vontade e uma postura robustas para garantir a protecção de civis (PdC) e a liberdade de movimentos nas principais estradas de abastecimento e para dispormos de um corredor de segurança para fornecimento da ajuda humanitária.
Patrulhas robustas para mostrar que a MINUSCA está presente onde ela é necessária.
Participação de todos os actores num diálogo construtivo, em vez de adoptar uma abordagem de confronto.
Acompanhar a implementação de acordos de paz por signatários e encorajar outros actores a participarem no processo de paz.
Por último, confrontamos e combatemos os grupos armados que causam danos a civis e violam o acordo de paz. Por exemplo, durante os eventos de Dezembro de 2020 e de Janeiro de 2021, a MINUSCA foi a principal responsável por impedir um ataque coordenado por alguns grupos armados que formaram uma coligação sob a liderança do antigo Presidente da RCA, François Bozizé.
ADF: A MINUSCA ajudou a garantir segurança nas eleições nacionais. As eleições foram conduzidas com sucesso, mas os ataques rebeldes obrigaram ao encerramento de algumas assembleias de voto. Pode descrever as vitórias e os desafios do esforço de segurança da MINUSCA nas eleições?
Traoré: Isso é muito importante e foi um grande desafio. Em estreita coordenação com o governo da RCA e as Forças Armadas de Defesa e Segurança, foi concebido e aprovado um plano integrado de segurança para as eleições gerais de 27 de Dezembro de 2020. A implementação deste plano teve início com uma operação militar chamada “A la Londo” contra um grupo conhecido como 3R, em Junho de 2020, no oeste para criar um ambiente seguro e protegido, que permitisse aos eleitores se recensearem e aos candidatos fazerem a campanha livremente. Porque, antes das eleições, estes grupos armados tinham começado a ameaçar a população.
Antes das eleições, a MINUSCA estabeleceu, com todos os participantes eleitorais, uma célula de gestão de crises que se reúne todas as semanas e sempre que for necessário. A célula permitiu-nos identificar todas as tarefas organizacionais, os desafios colocados por insuficiências e tornar possível a criação de uma boa coordenação.
Estas soluções apresentavam um duplo desafio:
O primeiro foi o desafio da segurança, devido ao número dos postos de votação e às ameaças de grupos armados. A MINUSCA teve de garantir segurança antes, durante e depois das eleições, uma vez que os grupos armados tencionavam interromper o processo.
A segunda foi um desafio logístico devido às más condições das estradas e ao facto de as assembleias de voto estarem localizadas em áreas recônditas. Houve uma necessidade de entrega atempada, armazenamento, recolha e segurança do material eleitoral e das urnas. A MINUSCA garantiu escoltas, equipamento e apoio, principalmente meios militares aéreos, para fazer a entrega de todo o material eleitoral. Depois das eleições, da mesma maneira, recolhemos e enviámos todas as urnas para Bangui.
O plano foi implementado e as eleições de Dezembro tiveram lugar, mas a coligação do grupo armado interrompeu e impediu as eleições em algumas áreas na zona oeste. Os eleitores da RCA elegeram o seu presidente e os deputados.
ADF: Em Março, o Conselho de Segurança da ONU aprovou um aumento de cerca de 2.750 militares e 940 agentes da polícia para a missão. O que é que este pessoal adicional lhe permite fazer em termos de eficácia da missão? Como vão ser destacados?
Traoré: Passámos por períodos muito tensos e difíceis desde Dezembro de 2020. Agora a situação está um pouco melhor, mas continua tensa. A decisão do Conselho de Segurança da ONU foi correcta nesse aspecto e visava melhorar a capacidade da MINUSCA de executar as tarefas obrigatórias prioritárias, principalmente a protecção de civis e a facilitação do acesso humanitário, bem como prevenir e inverter uma posterior deterioração da situação de segurança.
O número de tropas adicionais irá permitir que as forças sejam mais proactivas e rápidas. Vai diminuir o tempo necessário para intervir através de tropas de reserva regionais rapidamente destacáveis. Durante a crise de Dezembro de 2020, tivemos de destacar todas as nossas forças de reserva, o que sobrecarregou as nossas unidades para lidarem com as ameaças.
Estas tropas adicionais irão permitir-nos:
Melhorar a segurança na Estrada de Abastecimento Principal, a MSR1, da fronteira dos Camarões a Bangui, que funciona como o cordão de segurança do país. É por aqui onde são transportados todos os abastecimentos e comida que entram neste país. É muito importante que ela esteja em segurança.
Designar forças de reacção rápida para todos os comandantes de sector, o que irá melhorar a sua capacidade de proteger os civis e apoiar a assistência humanitária. Isso irá permitir-lhes reagir rapidamente nas áreas onde ocorram ameaças.
Lidar de maneira oportuna com qualquer ameaça ou ataque dos grupos armados ou outros saqueadores.
O destacamento das unidades de reforço será efectuado em fases sucessivas que serão priorizadas pela sede da ONU e pela missão.
ADF: A protecção de civis é uma componente fundamental do mandato da MINUSCA. Qual é a sua estratégia para proteger os civis? Como tentou melhorar a estratégia durante o período em que liderou a missão?
Traoré: A protecção de civis é o mais importante do nosso mandato. É uma abordagem geral e integrada de todas as componentes da missão e dos militares, a força em particular.
A primeira coisa que faço é identificar e mapear todas as ameaças à PdC. Com base neste mapeamento, decido como destacar as forças da MINUSCA para poder lidar, conter e dissuadir estas ameaças. Podemos reduzir a violência através da coordenação com outras componentes da missão, através de mecanismos de aviso prévio e envolvimento da comunidade. Nos últimos meses, destaquei tropas para áreas recônditas e aumentei também o número de patrulhas robustas e com um grande raio de acção. A composição da nossa força é dinâmica e está adaptada à evolução da situação de segurança no terreno. Isso permite-nos prevenir e reagir com prontidão às ameaças contra a população.
A força tem uma abordagem estratégica de PdC que consiste no seguinte:
Comunicar com os grupos armados e com as Forças Armadas da RCA (FACA) para que compreendam os riscos da violação dos princípios de PdC.
Exigir que todos os sectores e unidades mantenham uma tabela de controlo de alertas antecipados de PdC, que é actualizada todos os dias.
Destacar as unidades, as forças de reacção rápida, no modo de intervenção para intervir rapidamente em caso de preocupações com a PdC.
Ter uma boa coordenação com os provedores de assistência humanitária para a prontidão do fornecimento de assistência.
Manter os recursos aéreos prontos e em espera para intervir sempre que for necessário.
Por último, nós realizamos, em todo o país, patrulhas frequentes e robustas na nossa zona de responsabilidade, principalmente nas zonas críticas que mapeámos.
ADF: Como é que as forças da MINUSCA são vistas pelos civis? Que medidas pretende tomar para estabelecer laços de confiança com os civis?
Traoré: A percepção dos civis está a evoluir. Varia consoante a situação de segurança. Por exemplo, as forças e a polícia da MINUSCA tiveram uma postura robusta contra os grupos armados durante os ataques, em Bangui, no dia 13 de Janeiro de 2021, e que já tinham ocorrido em Dezembro de 2020 quando os ataques começaram. Seguiram-se relatos muito positivos da imprensa e uma percepção positiva das comunidades.
No entanto, nas semanas que se seguiram, a percepção mudou com a disseminação de notícias falsas, que acusavam a MINUSCA de não ter participado nas operações ofensivas. E, como sabe, neste país os boatos são uma constante.
Para manter uma opinião favorável na população, comunicamos e interagimos com regularidade e de maneira directa ou através das nossas componentes civis. De facto, cada batalhão desempenha actividades de intercâmbio, apoio ou auxílio no teatro das operações. Pode ser um jogo de futebol entre uma equipa local e uma equipa da MINUSCA; a renovação de uma sala de aulas; a distribuição de material escolar; ou a reconstrução de pontes e estradas deterioradas. Providenciamos também consultas médicas gratuitas com tratamento gratuito e sessões de formação de competências básicas da vida em várias vocações para os residentes locais, entre outras actividades.
ADF: Que projectos tiveram maior impacto?
Traoré: Estamos a fazer muito nesta área, com o intuito de aumentar a confiança entre nós e a população, através do que apelidamos de projectos de impacto rápido e actividades de cooperação civil-militar em todo o país. Por exemplo, a MINUSCA construiu ou reparou pontes em Bangassou e em Bocaranga, em 2020, e em Bakouma, em 2021, e forneceu-as às autoridades locais. Como resposta à escassez de água e electricidade, em Bangui, fornecemos a partir de meados de Abril de 2020 assistência às empresas nacionais de electricidade e água para lidar com a crise. A cidade de Bangui estava, literalmente, às escuras. As forças da MINUSCA forneceram algum equipamento para fazer face à escassez de água e electricidade.
ADF: É do conhecimento público que os actores de segurança estrangeiros, principalmente os russos, estão a operar na RCA. Até que ponto isso complica a vossa missão?
Traoré: Em relação a este assunto, gostaria de ser claro, rigoroso e conciso. As FACA são os nossos únicos parceiros. No entanto, outros actores de segurança internacionais estão a trabalhar ao abrigo de acordos bilaterais com o governo nacional. Eles representam um actor adicional no terreno e nós, como membros da MINUSCA, devemos considerar a sua presença para evitar confusões e tiroteios durante as operações. Outro obstáculo é o facto de as nossas contrapartes serem também apoiadas pelos mesmos actores de segurança estrangeiros.
ADF: A MINUSCA tem sido criticada por observadores, incluindo o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, por colaborarem com mercenários russos do Grupo Wagner. Qual é a sua reacção a estas críticas? Que medidas vai tomar para corrigir esta situação?
Traoré: Não temos qualquer relação com forças bilaterais. A MINUSCA nunca efectuou operações militares conjuntas com forças de segurança estrangeiras que operem na RCA. Da mesma forma, a MINUSTA não interagiu com essas forças. A força da MINUSCA opera com base na Resolução do Conselho de Segurança n.º 2552 e nas operações de manutenção da paz das Nações Unidas e executa plenamente os princípios nele enunciados.
ADF: Que medidas devem ser tomadas num futuro próximo para que as FACA e o governo da RCA estejam prontos para assumir responsabilidades de segurança no país?
Traoré: As FACA têm vindo a conduzir operações ofensivas no terreno que lhes têm permitido voltar a destacar em vários locais, contribuindo para o restabelecimento da autoridade estatal. O próximo passo será consolidar estes ganhos, em coordenação com os esforços que têm sido feitos a nível nacional através do diálogo com actores para criar uma paz sustentável e duradoura.
Nos últimos anos, as FACA têm feito alguns progressos, mas os desafios continuam, que têm de ser resolvidos pela instituição e pelo governo da RCA. Por exemplo, temos de fazer o seguinte:
Concluir o processo de desarmamento, desmobilização, reintegração e reforma do sector de segurança.
Dar treino padrão às forças de segurança interna, à polícia militar e às tropas das FACA nas respectivas missões para mostrar profissionalismo e espírito de boa disciplina.
Fornecer equipamento básico e uniforme às tropas.
Por último, as forças de defesa e segurança devem ser destacadas em todo o país nas várias zonas, o que irá permitir a actuação de outros actores do Estado.
ADF: Está optimista que isto possa ser conseguido e que as coisas estão a ir no caminho certo?
Traoré: Eu resido neste país há cerca de quatro anos, penso que houve progressos. Ainda existem, sem dúvida, desafios, mas com base no que temos feito até agora, com o compromisso de todos os actores, penso que estamos no caminho certo. Fizemos algum progresso; agora temos de reforçar isso e manter-nos fortes para superar estes desafios. Penso que com o tempo podemos criar uma paz duradoura e sustentável para este país. q