EQUIPA DA ADF
Quando um desafio de segurança marítima na Somália parecia estar quase resolvido, outro começou a intensificar-se.
Depois de anos de redução em ataques de piratas ao largo da maior linha costeira do continente africano, o país está agora a lutar para libertar as suas águas de arrastões estrangeiros ilegais. Especialistas temem que a Somália esteja em vias de um ciclo de crime marítimo que ameaça o seu abastecimento de produtos alimentares, a sua estabilidade económica e os ecossistemas.
No ano passado, as autoridades descobriram uma enorme frota de embarcações de pesca iranianas, envolvidas na pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (INN) em águas somalis. A Global Fishing Watch, uma organização sem fins lucrativos que faz a monitoria de embarcações de pesca, e a Trygg Mat Tracking, uma organização de pesquisa sem fins lucrativos, especializada na pesca INN e em outros crimes marítimos, rastrearam os navios.
Dados daquelas organizações, adquiridos através da análise dos Sistemas de Identificação Automática das embarcações, demonstraram que 192 embarcações iranianas estiveram envolvidas na pesca INN na Somália, em 2019 e 2020. É que as embarcações estrangeiras lançaram redes de arrasto em águas reservadas para pescadores artesanais locais.
Mais de uma dúzia de países pescam ilegalmente em águas somalis. A China tem mais de 30 embarcações licenciadas para pescar atum aí, mas também se descobriu que as mesmas participaram em actividades de pesca INN. De acordo com a Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional (GIATOC, na sigla inglesa), a China é o pior infractor do mundo quando se trata da pesca INN.
Duncan Copeland, analista-chefe da Trygg Mat Tracking, disse ao The Guardian, do Reino Unido, que a dimensão da pesca INN na Somália é “surpreendente.”
“Estamos a observar um grande número de embarcações,” disse Copeland ao jornal. “Isso vai além do que qualquer plano de gestão pode enfrentar. É um esforço de pesca demasiado grande para a região. Vai esgotar as unidades populacionais de peixe.”
A linha costeira da Somália, com aproximadamente 3.400 quilómetros, que inclui o Golfo de Aden, o Canal de Guardafui e as águas do Oceano Índico Ocidental, é extremamente difícil de policiar.
Muitas embarcações estrangeiras na Somália envolvem-se nas mesmas tácticas ilegais usadas pelos arrastões estrangeiros em outras partes de África, como o usar redes de emalhar para apanhar peixe no fundo do oceano e lançar a captura acessória — peixe morto não desejado — de volta ao mar. Essas acções danificam os ecossistemas e ameaçam a sustentabilidade de espécies valiosas, incluindo a garoupa, o pargo, a sardinha, o tubarão e o atum.
Isso é uma preocupação porque as Nações Unidas comunicaram que aproximadamente 5,6 milhões de somalis enfrentam um grave problema de insegurança alimentar.
Ligações à pirataria
Durante anos, os especialistas em segurança marítima alertaram sobre uma ligação entre a pesca INN e a pirataria. Isto ocorreu na África Ocidental, onde os crescentes ataques de piratas no Golfo da Guiné coincidiram com um afluxo maciço de arrastões estrangeiros ilegais, na sua maioria chineses, que estão a roubar fontes vitais de alimentos e rendimentos à região.
Um relatório divulgado no ano passado pela Secure Fisheries — uma ramificação da One Earth Future, uma organização não governamental sem fins lucrativos sediada nos EUA — descobriu que o conflito entre pescadores somalis e frotas estrangeiras disparou entre 1998 e 2000.
Os piratas atacaram com tenacidade na década de 2000 e no início da década de 2010, lançando centenas de ataques contra navios comerciais, normalmente raptando os membros da tripulação para pedir dinheiro de resgate, reportou a Voz da América. Quando os navios estrangeiros começaram a patrulhar as águas somalis com maior rigor, as ameaças diminuíram. Em 2016, o Gabinete Marítimo Internacional registou apenas dois ataques de piratas perto da Somália, nenhum dos quais resultou em sequestro.
Mas, quando a pirataria diminuiu, os arrastões de pesca estrangeiros regressaram. Embora os ataques de piratas continuem a ser extremamente raros, observadores receiam que eles possam ressurgir. De acordo com a GIATOC, piratas da Somália citam a presença de arrastões estrangeiros como justificação para a continuação dos ataques.
A iniciativa também descobriu que as operações de pesca estrangeira são frequentemente facilitadas por agentes somalis — muitas vezes, em coordenação com funcionários governamentais ou quase-governamentais, que forneçam licenças de pesca, registos de bandeira, documentos de exportação falsificados e segurança armada a bordo, em troca de uma taxa.
Shafi ‘I Hussein Muse, chefe do departamento de pesca, na Academia Marítima e Pesqueira de Berbera, na Somalilândia, corroborou os resultados da GIATOC.
“Algumas estão a pescar sem possuir qualquer licença de pesca, enquanto outras conseguiram obter licenças emitidas ilegalmente por funcionários corruptos, a maioria dos quais do ministério das pescas, tanto ao nível estatal quanto federal,” disse Muse à revista Hakai, uma publicação online que explora a ciência, a sociedade e o ambiente, a partir de uma perspectiva costeira.
Para abordar questões relacionadas com a segurança marítima, a GIATOC recomendou que a Comissão de Governação Financeira da Somália estabeleça controlos e equilíbrios significativos na emissão de licenças de pesca, registos de bandeira e outra documentação, e imponha consequências legais para funcionários do governo que lucraram com os esquemas da pesca INN.
A iniciativa também recomendou que o governo melhore a cooperação marítima e partilhe informações com parceiros internacionais, como a Comissão do Atum do Oceano Índico, a Força Naval da União Europeia e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
Em meados de Julho, o Ministério das Pescas da Somália apresentou uma proposta de lei para normalizar a regulamentação das licenças de pesca, combater a corrupção e melhorar a protecção ambiental.
“Também estamos a fortalecer a coordenação intergovernamental no nosso país e com outras agências marítimas,” contou Mohamud Sheikh Abdullah, director-geral das pescas da Somália, ao jornal queniano, The Daily Nation. “A confusão causada deve-se à nova estrutura federal que, como se sabe, ainda não foi actualizada para determinar onde começam e terminam os poderes federais e estatais.”
Espera-se que a lei seja implementada depois da realização das eleições nacionais, em Outubro.