Equipa da ADF
Quando os pescadores da Serra Leoa embarcam nos seus pequenos barcos de madeira e vão para o mar aberto em busca do seu pão de cada dia, às vezes, conseguem avistar os seus inimigos.
No horizonte do oceano flutuam grandes barcos de pesca e arrastões — quase todos estrangeiros e a maior parte dos quais chineses — esperando para recolher o produto da sua pesca feita com recurso a uma série de métodos ilegais e destrutivos. Perto de 70 arrastões trabalham em águas da Serra Leoa vinte e quatro horas por dia, de acordo com uma reportagem da BBC.
Às vezes, os arrastões manchados de ferrugem deixam cair pesadas portas de metal que afundam e ajudam a puxar redes pelo solo oceânico, destruindo vida e habitat preciosos. As grandes redes com aberturas capturam a vida marinha de forma indiscriminada, deitando detritos no frágil ecossistema enquanto avançam.
Por vezes, os barcos ligam as redes entre si e avançam como “arrastões emparelhados”, de novo capturando peixe numa escala industrial. Esta prática é ilegal nas águas da Serra Leoa. Algumas tripulações mentem em relação à quantidade da sua pesca (ou nem sequer informam), içam bandeiras falsas ou pescam em zonas proibidas. Outras vezes, trazem o seu peixe para a costa para vender, prejudicando os milhares de pescadores artesanais que dependem da venda de peixe para o seu sustento.
Outras vezes ainda, transferem o seu produto da pesca para embarcações maiores, que partem para portos estrangeiros da China, Rússia e outras partes, deixando as águas africanas esgotadas e os seus pescadores empobrecidos.
Mas o que aconteceria se depois deste seu engano e manipulação, estes pescadores ilegais não fossem capazes de atracar em nenhum porto e descarregar a sua captura? O que aconteceria se depois de todo o seu trabalho e esquemas não existisse lugar algum para onde pudessem levar o peixe – e não houvesse formas de vendê-lo?
ACORDO SOBRE MEDIDAS DOS ESTADOS DO PORTO
Em Junho de 2016, uma nova ferramenta global na luta contra a pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (INN) entrou em vigor. O Acordo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) sobre Medidas dos Estados do Porto para Prevenir, Impedir e Eliminar a Pesca Ilegal, Não Declarada e Não Regulamentada introduziu uma forma simples de lutar contra a pesca INN – ao limitar o acesso aos portos.
O Acordo sobre Medidas dos Estados do Porto (PSMA, sigla em inglês), como é popularmente chamado, é o primeiro pacto internacional vinculativo que visa lidar com a pesca INN. O seu potencial de acabar com o flagelo global é promissor. Procura impedir que aqueles que praticam a pesca ilegal desembarquem o produto das suas capturas nos portos, impedindo que mariscos adquiridos de forma fraudulenta cheguem aos mercados nacionais e internacionais.
“O Acordo sobre Medidas dos Estados do Porto é provavelmente a forma mais eficaz de tentar contrapor a pesca ilegal, não declarada e não regulamentada, colocando o ónus sobre as embarcações de modo a, essencialmente, certificar-se de que qualquer pescado que desejarem desembarcar num certo país tenha sido capturado de forma legal”, disse o Dr. Ian Ralby, director-executivo da I.R. Consilium e especialista em assuntos marítimos.
O acordo representa um grande avanço na luta contra a pesca INN. Tira a ênfase da necessidade de perseguir, interceptar e julgar aqueles que desrespeitam os regulamentos nacionais e internacionais de pesca. O modelo é bastante complexo mesmo para as nações mais ricas por causa da imensidão do domínio marítimo. Sem uma força marítima global, disse Ralby a ADF, é impossível patrulhar os mares do mundo.
Com uma perspectiva centrada em portos, mesmo um país “que não possua um único meio naval” ou que tenha falta de consciência de domínio marítimo eficaz pode ter uma ferramenta potente para fazer cumprir uma lei capaz de lidar com a pesca ilegal, disse Ralby.
COMO FUNCIONA O ACORDO
O PSMA oferece mecanismos para vetar embarcações de pesca antes de poderem atracar em portos e descarregarem o seu produto. Também oferece aos barcos com um historial de conformidade e adesão às regras uma forma de serem “acelerados” ao entrarem em portos estrangeiros.
Em resumo, aqueles que seguem as regras são recompensados. Os que não seguem não são.
O Comité das Pescas do Centro-Oeste do Golfo da Guiné (FCWC) explicou que as autoridades levaram a cabo a implementação e a operação do acordo em coordenação com outras agências nacionais para analisar o risco, com vista a identificar embarcações de alto risco e decidir se se concede entrada no porto a um barco de pesca de bandeira estrangeira.
Em termos gerais, de acordo com o FCWC, uma embarcação que procura acesso a um porto nacional faria uma solicitação antecipada. A informação poderia depois ser verificada, cruzada com outras referências e analisada por autoridades de pescas, portos, navais e policiais. Se o estado do porto suspeitar que a embarcação tenha estado envolvida em pesca INN, pode recusar a entrada ou condicionar a entrada a uma inspecção.
Se não houver suspeita de pesca INN, as autoridades do porto podem conceder acesso da embarcação a todas as instalações, mas ainda assim poderá necessitar de inspecção. As embarcações com um histórico de conformidade podem ser recompensadas com controlos portuários mais eficientes sempre que quiserem entrar. Esta é a aceleração prevista no acordo.
Ralby disse ter ajudado as partes a pensarem sobre a cooperação interinstitucional necessária para identificar embarcações suspeitas e fazer com que o acordo funcione. O objectivo é de demarcar as indicações de comportamento ilícito através do acordo, que é diferente de procurar por uma embarcação envolvida em pesca INN em mar aberto.
“A realidade da questão é que o peixe deve desembarcar de modo a poder entrar na cadeia de fornecimentos, o que significa que para que a actividade ilícita de pesca INN seja rentável, eles têm de trazer o peixe para a terra e para o mercado”, explicou Ralby. “Assim, se forem colocados controlos policiais massivos para impedir que esse processo ocorra, tira-se a porção da recompensa da equação e aumenta o risco de que, de facto, eles serão apanhados”.
Todas as 54 nações de África, tirando apenas 16, possuem faixas costeiras, assim como as tem outras mais de 200 nações e territórios do mundo. Mas até agora, apenas 66 nações em todo o mundo fazem parte do acordo, e 23 destas nações estão em África. As várias nações encontram-se em estágios diferentes de aceitação, aprovação, ratificação e adesão, de acordo com a FAO.
Esta é uma resposta importante e louvável mas não é suficiente para fazer com que o acordo seja tão eficiente quanto possível. As lacunas nas faixas costeiras cobertas pelo acordo oferecem aos criminosos um porto seguro para desembarcarem os seus produtos. Por exemplo, a maior parte da África Ocidental é parte do acordo. Mas a Guiné-Bissau não o é. Portanto, uma embarcação pode desviar-se de uma nação, seguir pela costa e atracar numa outra para evitar fiscalização e controlo.
As lacunas nas faixas costeiras deixadas por nações que ainda não se juntaram ao acordo criarão grandes vulnerabilidades. Mas Ralby explicou que as nações que são parte do acordo também têm grandes vantagens e oportunidades através das inspecções e controlos portuários. Algumas nações africanas estão entre as que têm as mais altas dependências de proteína proveniente do peixe no mundo, por isso, ter todas as ferramentas à sua disposição para lutar contra a pesca INN será de vital importância. Existem grandes benefícios, disse ele, quer seja uma, 23 ou todas as 38 nações costeiras africanas a operar nos termos do acordo.
Para além disso, mesmo que todas as nações costeiras africanas adoptem o PSMA, não terá a eficácia necessária sem que ele seja implementado “de forma eficiente, efecaz, consistente e transparente”, afirmou Ralby. As nações africanas terão de harmonizar os esforços para que todos os países estejam a trabalhar a partir dos mesmos conjuntos de padrões e a compartilharem informação. “Nesta abordagem, qualquer diferença será explorada”, disse ele.
O potencial para a corrupção também terá de ser abordado. O PSMA apenas será tão bom quanto as pessoas responsáveis por fazê-lo cumprir. O mercado internacional das pescas possui um valor significativo; excedeu 240 biliões de dólares em 2017 e espera-se que ultrapasse 438 biliões de dólares em 2026, de acordo com o site Research and Markets. Ralby afirmou que o valor pode atrair algumas pessoas para a prática de actos de corrupção, nomeadamente, através de subornos para ignorar regulamentos ou para autorizar a pesca quando não deviam.
Os estados do porto também terão de garantir que as embarcações que cumprem com as normas e recebem acesso acelerado aos portos não abusarem deste privilégio ao enveredar pela pesca INN sem o conhecimento das autoridades. Ralby sugere que seja feita uma revisão constante e aleatória para assegurar que as embarcações com acesso rápido continuem a cumprir.
Ralby diz que, à medida que a COVID-19 se alastra em África e em todas as partes do mundo, combater a pesca INN tende a representar um desafio cada vez maior. A doença complicou a cadeia de fornecimento global, por isso, é provável que se queira abusar das oportunidades para fugir às regras. Da mesma forma, exigir o cumprimento das normas será mais difícil porque é provável que haja menos interesse em embarcações. Isto pode alterar a tendência do problema num futuro próximo.
Mesmo assim, as nações africanas estão a dar passos significativos no sentido de se familiarizarem com os elementos do acordo. Um pouco antes da COVID-19 começar a alastrar-se em África, a Serra Leoa levou a cabo um exercício do PSMA em Freetown, em Fevereiro de 2020.
Representantes das autoridades da polícia do sector de pescas, da saúde, da polícia naval, marítima, portuária e da justiça participaram do workshop de capacitação que durou uma semana. A FAO liderou o evento. A Serra Leoa ratificou o acordo em Setembro de 2018.
Os participantes usaram o horário de chegada de uma embarcação de bandeira estrangeira para descarregar a sua captura em Freetown como uma oportunidade de participar num estudo de caso e aprender sobre a cooperação entre agências e sobre a troca de informação, um elemento chave do acordo.
A Libéria, vizinho da Serra Leoa, organizou um evento semelhante por volta da mesma época em Monróvia destinado a representantes das autoridades do sector das pescas, marítimo, portos, saúde, alfandegas, imigração, guarda costeira, comércio, justiça e agricultura.
O workshop utilizou uma embarcação de bandeira estrangeira de transporte de carga com refrigerador, que se encontrava a descarregar peixe transferido de embarcações em Guiné-Bissau, como um estudo de caso para os procedimentos PSMA, tais como a troca de informação e a cooperação interinstitucional.
O acordo apenas será mais forte à medida que mais nações aderirem, restringindo lentamente o número de portos que os criminosos podem usar para descarregar e vender peixe obtido de forma ilícita. De acordo com Pew Charitable Trusts, “O ambiente internacional consistente nos anos que se passaram aumentou significativamente o número de signatários do acordo. Isso fez com que fosse extremamente difícil que capturas ilegítimas chegassem aos mercados nacionais e internacionais e reduziu o incentivo para operadores de pesca desonestos continuarem as suas actividades INN”.
Inspecções, Uma Parte Principal do PSMA
Equipa Da ADF
Nos termos do Acordo sobre Medidas dos Estados do Porto, as embarcações de pesca de bandeira estrangeira podem estar sujeitas a inspecções antes de poderem aceder aos portos para descarregarem os seus produtos. Inspectores formados terão de examinar as embarcações e os seus registos para assegurar que estejam em conformidade com os regulamentos e com a lei.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, as embarcações que procuram obter entrada em portos terão de dar informação num formulário de 23 pontos, incluindo: nome da embarcação, autorizações de pesca e de transbordo, total da captura a bordo, total da captura a ser descarregada.
Depois das inspecções, os inspectores preencherão um formulário de 42 pontos. Entre as coisas que devem fazer estão:
Confirmar se a documentação de identificação da embarcação e a informação sobre a propriedade são verdadeiras, completas e correctas.
Confirmar se a bandeira e as marcas correspondem à documentação.
Confirmar se as autorizações de pesca e outras relacionadas são verdadeiras, completas e correctas.
Rever outra documentação e outros registos, tais como, livros de registos, pescado, documentos de transbordo e de comércio, listas da tripulação, planos de estiva e desenhos bem como as descrições dos porões de peixe.
Examinar o equipamento de pesca para confirmar se o tamanho, acréscimos, dimensões e configurações estão de acordo com os regulamentos.
Determinar se o peixe foi capturado em conformidade com as regras aplicáveis.
Examinar a quantidade e a composição do peixe, podendo abrir os recipientes empacotados e mexer o pescado ou os recipientes para examinar os porões de peixe.
Avaliar se existem provas claras de que a embarcação esteve envolvida em pesca ilegal, não declarada e não regulamentada.
Fornecer ao capitão da embarcação uma cópia do relatório de inspecção. O capitão irá assinar e poderá adicionar comentários, objecções e entrar em contacto com as autoridades do Estado da bandeira se tiver dificuldade de compreender o relatório.
Organizar para que haja tradução de documentos relevantes se for possível e necessário.
Os inspectores devem ser devidamente formados para fazerem este trabalho. A formação, conforme estabelecido no acordo, abordará pelo menos 12 áreas. Estas áreas incluem ética; saúde e segurança; leis nacionais e internacionais de saúde pertinentes e outros regulamentos; como recolher, avaliar e conservar provas; como realizar inspecções, escrever relatórios e realizar entrevistas; analisar a documentação da embarcação; identificar e medir o peixe; identificar e medir embarcações e seus equipamentos; operações de equipamentos de embarcações; e acções subsequentes à inspecção.