EQUIPA DA ADF
Alguns consideram o abigeato como um dos mais antigos crimes da história da humanidade. Em África, o abigeato remonta há séculos e já chegou a ser considerado uma prática cultural, aprovada e organizada por anciãos tribais e por líderes tradicionais.
Actualmente, tornou-se um grande problema de segurança em todo o continente.
“Tentamos criminalizar esta actividade,” deputado queniano, Mark Lomunokol, disse à rede KTN News. “Em nenhum lugar ela é apoiada por lei, por isso, é uma prática que iremos combater dia e noite para garantir que seja erradicada para sempre.”
Nos últimos anos, crimes relacionados com o gado registaram um aumento em número e em violência, transformando-se em conflitos interétnicos e intercomunitários.
Deixou pessoas deslocadas, destituídas e mortas nos Camarões, Quénia, Madagáscar, Nigéria, Sudão do Sul, entre outros países.
É um problema multifacetado impulsionado e exacerbado pelas tradições culturais, a proliferação de armas, o crescente espectro do crime organizado, a falta de presença policial ou militar e uma crescente falta de recursos naturais.
Tradições culturais
O abigeato, particularmente na África Oriental, já foi uma forma aceitável de adquirir gado ou de repovoar as manadas dizimadas pela seca.
Jovens que demonstrassem bravura na protecção do gado da comunidade e do território ficavam conhecidos como guerreiros. As incursões também foram um método de aquisição de gado para dotes.
“Era uma estratégia para obtenção de meios de subsistência,” disse o professor Kennedy Mkutu Agade, num webinário do dia 23 de Junho, organizado pelo Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS). “Por causa das frequentes secas, os criadores de gado tinham de se mudar de uma área para a outra.
“Era basicamente um sistema de redistribuição de riquezas.”
Tráfico de armas
O uso de armas como AK-47 conduziu a tradicional prática do abigeato para uma nova era, transformando-se num crime organizado violento para ganho comercial e social.
Nos últimos tempos, as armas inundaram a África Oriental; muitas delas são contrabandeadas para as zonas de guerra na Etiópia, Sudão do Sul e para Somália, mas depois são vendidas para outras regiões.
“Agora vemos o surgimento de senhores de guerra que armam os jovens. Os jovens não têm dinheiro para ira à escola, mas têm uma AK-47,” disse Agade.
Crime organizado
Um ataque do dia 18 de Fevereiro levou o secretário do gabinete do Ministro do Interior de Quénia, Fred Matiang’i, a culpar uma rede criminosa mais ampla.
Os praticantes do abigeato abriram fogo contra um autocarro escolar, no Condado de Elgeyo Marakwet, matando o motorista e ferido 15 alunos e dois professores.
“Já não se trata de uma questão de abigeato, porque não havia gado no autocarro escolar,” disse à imprensa. “Está claro que esta é uma organização criminosa disfarçada de praticantes de abigeato. Iremos aplicar um novo nível de força e lutaremos para acabar com a delinquência em Kerio Valley.”
Nos últimos anos, o abigeato tornou-se uma forma de crime organizado num negócio de comércio de gado mais amplo.
Especialistas como Martin Ewi, coordenador técnico do Projecto ENACT, disse que o abigeato passou a ser “profissionalizado.”
Na Nigéria, o abigeato está a crescer como uma fonte de rendimento para bandidos e grupos extremistas violentos como o Boko Haram.
Recursos naturais
A seca sempre foi um problema em grandes partes de África, mas o desenvolvimento económico também causou a escassez de recursos.
“Eu chamo esta fase [do abigeato] de desevolução,” disse Agade. “As estradas estão a entrar. As elites agora estão à procura de minerais e de terras. Existe uma territorialização e conflitos relacionados com os recursos.”
Os quenianos dizem que a seca fez com que os ataques relacionados com gado piorassem, porque os criadores de gado são obrigados a passar a estar próximo ou nas comunidades vizinhas à procura de água e terras.
Mais de 1 milhão de cabeças de gado morreram num mês no Quénia devido à seca, de acordo com a Autoridade Nacional de Gestão da Seca. No seu relatório de avaliação do dia 16 de Maio, a autoridade alertou que as mortes continuariam a aumentar à medida que a seca piora.
Anarquia
As áreas mais afectadas pelo abigeato são as que se encontram subdesenvolvidas e com poucos recursos, com presença limitada do governo e com um pequeno ou nenhum aparelho de segurança.
“Historicamente, o abigeato foi marginalizado e, muitas vezes, considerado crime rural,” disse Agade.
No Vale do Rift, em Quénia, o Comissário Regional, Maalim Mahomed, espera trazer a paz e segurança para os cidadãos locais.
Essa foi a sua promessa de Março, depois de uma onda de violência. Ele disse que a patrulha da polícia iria aumentar e que seriam organizadas reuniões entre comunidades vizinhas para resolver conflitos.
“Tomamos uma decisão que os [Reservistas da Polícia Nacional] agora estariam na comunidade, nas regiões de Ol Ng’arua, onde a delinquência e o banditismo da Área de Conservação da Natureza de Laikipia têm sido alarmantes,” disse à imprensa, no dia 22 de Março.
Soluções
Em Outubro de 2021, os ministros e os chefes de polícia de 11 países da África Oriental assinaram o Protocolo de Mifugo actualizado, para fazer face ao abigeato e fortalecer as estratégias conjuntas. O documento visa padronizar a legislação entre os países membro e adoptar sistemas de identificação de gado, como microchips.
Em 2020, a União Africana lançou a sua Estratégia de Melhor Governação Integrada de Fronteiras, para implementar iniciativas de segurança semelhantes e colaboração nas fronteiras.
“O Protocolo de Mifugo e a estratégia da UA complementam-se,” disse Ewi num webinário. “A melhoria da cooperação transfronteiriça é de extrema importância para a região [da África Oriental]. O Protocolo de Mifugo reúne vários países para abordar o abigeato, que está ligado a outros crimes, tráfico e contrabando.”
De acordo com Agade, a organização e a colaboração são as melhores abordagens para lidar com a violência.
“Quando garantirmos segurança e desenvolvimento às populações, não haverá necessidade de arma,” disse Agade.
Em Maio, as autoridades quenianas promoveram um programa de formação profissional que matriculou mais de 500 jovens do grupo indígena Samburo, ensinando-lhes habilidades de carpintaria e reparação de motorizadas como uma forma de afastá-los do abigeato e do contrabando de armas.
Os programas de desarmamento são uma outra abordagem que já produziu resultados ímpares. Mas o Uganda recentemente comunicou algum sucesso.
Durante uma reunião do dia 13 de Junho, na sub-região de Karamoja, que faz fronteira com o Quénia, uma área onde o abigeato tem sido alarmante, o presidente Yoweri Museveni comprometeu-se a acabar com a violência com forças conjuntas.
Num período de mais de três semanas, forças de segurança conjuntas trabalharam com os líderes locais para recuperar 106 armas ilegais e mais de 600 cabeças de gado, com centenas de praticantes de abigeato sendo mortos ou presos.
Catherine Kelly, professora associada de Justiça e Estado de Direito, do ACSS, acredita que existe uma boa estrutura e um bom fundamento no Protocolo de Mifugo actualizado bem como na estratégia da UA, que podem ser replicados em outras regiões de África.
“Não se trata apenas de uma resposta de segurança, é uma resposta holística,” disse à ADF. “É lidar não apenas com as alfândegas e a protecção da fronteira ou com a imigração, mas envolvendo as comunidades — que se podem distribuir pela fronteira — e pensar no âmbito geral do desenvolvimento e governação para além das questões de segurança.
“Tudo isso pode contribuir para uma solução de governação de fronteiras, lidando com o abigeato ou com o crime organizado transnacional e outras ameaças.”