EQUIPA DA ADF
Dr. John Nkengasong, um virologista, é director do Centro Africano de Controlo e Prevenção de Doenças (África CDC) desde 2017 e ajudou a liderar a resposta do continente ao Ébola, COVID-19, malária e outros desafios de saúde desde então. Ele falou com a ADF a partir do seu escritório em Adis Abeba, Etiópia, em Dezembro de 2020. Os seus comentários foram editados para se adequarem a este formato.
ADF: Agora os países preparam-se para adquirir e distribuir as vacinas da COVID-19. Recentemente, o senhor foi co-autor de um artigo para a Nature apelando ao mundo para não “permitir que a história se repita”, onde os países africanos se encontram em último lugar quando se trata de aquisição de vacinas e tratamentos que salvam vidas. Como se pode garantir que isso não aconteça?
Nkengasong: A Gavi, a Aliança da Vacina, e a Coligação para as Inovações de Preparação para a Epidemia estão a ser de grande importância ao garantirem que a vacinação inicial seja feita quase que simultaneamente tanto quanto possível em todo o mundo. Não deve ocorrer de forma sequencial onde, primeiro, o mundo desenvolvido recebe as vacinas, depois a África e o mundo dos países em vias de desenvolvimento recebem as suas doses depois disso. Será de extrema importância destacar a solidariedade global e a unidade do planeta em que vivemos. De outro modo, a narrativa irá emergir em que o resto do mundo pode esperar, e algumas pessoas irão morrer, enquanto as pessoas que têm dinheiro e recursos têm o acesso.
Então, o que isso significa? Agora é da responsabilidade da COVAX [o esforço da Organização Mundial de Saúde para pressionar que haja acesso global à vacina] de modo a garantir que existam pontos de vacinação nas principais cidades capitais de África. Dessa forma, os nossos cidadãos têm fé em todo o conceito de solidariedade global e cooperação global para se livrarem do vírus.
Caso o processo se atrase até meados de 2021 e as pessoas vejam nas televisões que a vacinação está a acontecer na Europa, Estados Unidos, China, Rússia e ninguém tiver sido vacinado em África, então, será uma impressão muito desagradável.
ADF: Vocês têm uma meta de alcançar 60% de imunização dos 1,3 bilhões de pessoas do continente em dois a três anos. Para além de obter doses da vacina, qual será o maior desafio neste esforço?
Nkengasong: É realmente um cenário sem precedentes que enfrentamos. Recorde-se que a pandemia significa que isto afecta a todos nós, e isto nunca havia acontecido nos últimos 100 anos. Precisamos de ser ambiciosos ou seremos julgados de forma severa como os líderes do continente que estão a fazer a gestão desta crise. Haverá uma futura geração que irá ler a história desta pandemia e a pergunta-chave que irão fazer é: “Será que os líderes tinam um objectivo ambicioso declarado e será que estavam a pensar de forma inovadora?” É uma crise sem precedentes e temos de ter estratégias sem precedentes para permitir que alcancemos os 60%. Esta meta é informada pela ciência, informada pelo conhecimento de outras doenças infecciosas.
Por isso, penso que o continente e os parceiros precisam de fazer todo o possível para terem isto em consideração. O mundo nunca vacinou mais de 500 milhões de pessoas num só ano. Mas penso que é razoável e é a coisa certa a fazer. O ditado diz, “Sempre é o tempo certo para fazer a coisa certa.” Precisamos de certificar que mobilizamos o continente para nos livrarmos deste vírus através da vacinação de mais de 60% da população.
ADF: Com qualquer esforço de saúde pública, as campanhas de educação cívica são uma componente fundamental. No passado, assistimos a suspeições e mesmo hostilidades para com as vacinações. Como podem ajudar a sensibilizar e reafirmar as pessoas sobre a segurança da vacina?
Nkengasong: Olhamos para cerca de 15 países e vimos uma variedade de percepções ou aptidões para aceitar a vacina variando de 60% a 80%. A pergunta é: O que pode ser feito em relação aos 20% a 40% da população que está receosa? Precisamos de ganhar esta população. Estamos muito encorajados pelo nível de aceitação que estamos a ver. Nalgumas partes do mundo desenvolvido, a aceitação da vacina é tão baixa quanto 40%. Isto também destaca o facto de que temos muito trabalho a fazer para que o nosso povo acredite na ciência, acredite nas autoridades de saúde pública, acredite nas instituições e nas agências de saúde pública. Eles precisam de acreditar que a liderança os irá proteger e apenas permitir que vacinas seguras sejam administradas no continente. O África CDC trabalha apenas para isso. Deve ser a organização confiada, como a Organização Mundial de Saúde, para comunicar esta informação à população.
ADF: Será que o África CDC desempenha um papel na tentativa de impedir que os criminosos tragam vacinas falsas para o mercado?
Nkengasong: Esta é a razão pela qual nós insistimos na necessidade de uma abordagem de toda a África para adquirir e distribuir as vacinas. Isso significa que se um fabricante se aproximar de qualquer Estado-membro, eles devem garantir que o África CDC esteja na mesa das conversações. Também estamos a reunir um grupo de trabalho de agências reguladoras em todo o continente para que possamos falar numa só voz. A abordagem de toda a África obriga-nos a coordenar as nossas actividades o máximo possível. Se fizermos isso, podemos criar barreiras e mitigar o potencial de algumas empresas de entrarem e fazerem acordos bilaterais com os países e oferecer vacinas de baixa qualidade. Isso carrega um risco tremendo de reduzir a credibilidade das vacinas como um todo. A África deve expressar uma forte unidade de propósito no espírito de cooperação e coordenação através do África CDC, que é uma agência especializada e técnica da União Africana. Isso será extremamente importante.
ADF: O senhor regressou recentemente da República Democrática do Congo (RDC), que resistiu a surtos de doenças por muitos anos. Até que ponto considera que os países que usaram a sua experiência na luta contra surtos anteriores estão mais preparados para combater a COVID-19?
Nkengasong: Existem três aspectos diferentes para este ponto. Primeiro, existe uma liderança forte no continente, mobilizando-se em torno de uma causa a nível dos chefes de Estado. Recorde-se que os chefes de Estado reuniram ao longo dos anos para abordarem a questão do HIV/SIDA e da malária. Então, trazer de volta o nível de liderança tem sido muito importante. O segundo é a nível programático, com todo o conceito de utilização dos institutos de saúde pública –– muitos dos quais nasceram após a crise do Ébola na África Ocidental –– e isto tem sido extremamente importante na coordenação da resposta técnica à pandemia. Terceiro, a um nível mais granular, é o uso dos agentes comunitários de saúde no rastreamento de contactos. A África do Sul tem milhares de agentes comunitários de saúde a fazerem este trabalho. Uganda, Ruanda e Nigéria fizeram o mesmo. Nós, no África CDC, apoiamos esses países a [formarem e enviarem para o terreno] mais de 10.000 agentes comunitários de saúde em 23 países. Isso resultou de uma experiência anterior. Provém das dores a que estivemos sujeitos durante o Ébola, onde utilizamos o envolvimento da comunidade para apoiar o rastreamento de contactos, as campanhas de educação cívica e o isolamento. Então, isso realmente ajudou.
ADF: Uma inovação específica da UA e do África CDC foi a criação de plataformas e programas para partilhar recursos e tirar vantagem do poder de compra entre os países africanos. Refiro-me à Plataforma Africana de Suprimentos Médicos e à Parceria para Aceleração dos Testes da COVID-19 (PACT). De que modo viu as parcerias intercontinentais crescerem e aprofundarem-se como resultado da sua resposta à pandemia?
Nkengasong: Este é um novo território e isto nasceu de uma estratégia continental que criamos em Fevereiro de 2020. O primeiro caso de COVID-19 foi registado no Egipto, no dia 14 de Fevereiro, e no dia 22 de Fevereiro convocamos uma reunião em Adis Abeba, com todos os ministros de saúde. Foi a primeira vez que pudemos juntar mais de 40 ministros de saúde e concordar numa estratégia conjunta continental. É através dessa estratégia que as plataformas e os mecanismos beneficiaram de apoio e patrocínio. Nos bastidores, houve um trabalho tremendo para a aceitação da plataforma, trabalhando com ministros das finanças, apresentando-a aos chefes de Estado, apresentando-a aos ministros de negócios estrangeiros. Então, pode parecer que apenas grupos de engenheiros reuniram e a plataforma foi criada, mas houve muito trabalho para poder convencer a liderança política.
O mesmo aconteceu com a iniciativa PACT, assim como com o Fundo de Resposta da UA à COVID-19. A nossa esperança é de que, uma vez que este é um novo território, iremos continuar a fortalecê-las. Elas não são perfeitas, mas irão crescer e iremos utilizá-las numa resposta adaptável à COVID-19. Esperamos que, depois disto, possamos continuar a utilizar esses mecanismos para combater outras doenças endémicas como HIV, TB e malária.
ADF: Um sinal positivo na resposta à COVID-19 foi a forma como inspirou a inovação por parte de indivíduos, empresas e países, desde o uso de drones e robots até à criação de aplicativos para ajudar a fazer o rastreamento de contactos e combater a desinformação. O que acha das inovações feitas por inventores africanos e desenvolvedores de softwares?
Nkengasong: Uma das primeiras lições que aprendemos tem a ver com o poder das inovações feitas para acelerar aquilo que foi chamado de “quarta revolução industrial.” Olhemos para as plataformas de tecnologia, olhemos para as inovações delas resultantes. Antes da COVID-19, não havia um país em África que investia no desenvolvimento de diagnósticos básicos. Hoje, cinco países ocupam esse lugar: Marrocos, África do Sul, Quénia, Senegal e Nigéria. Trata-se da inovação que está a ocorrer nos últimos dois meses. Vejamos o equipamento de protecção individual: as empresas foram adaptadas para passarem a produzir máscaras e outro material. Vimos muito disso a acontecer. Eu continuo esperançoso de que por detrás de toda a crise existe um lado positivo. Conforme dizemos, “Não se perde nenhuma crise” quando se trata de avanço em inovações, e não queremos esperar até que a próxima crise surja antes de pensarmos na inovação. Isso criará espaço para avanços tecnológicos e também para a produção local de medicamentos e vacinas.
ADF: Mesmo numa altura em que o continente batalha contra a COVID-19, outros desafios continuam, incluindo a malária, o HIV/SIDA, a tuberculose, as doenças diarreicas e as doenças cardiovasculares. Preocupa-lhe o facto de que o esforço para derrotar a COVID-19 irá desviar a atenção do combate àquelas doenças, através do desvio de recursos ou porque as pessoas atrasam o tratamento?
Nkengasong: Estamos muito preocupados com isso. Sabemos que, quando a pandemia eclodiu, muitas das mortes não são da própria pandemia mas são devido ao facto de que a pandemia mudou os recursos ou a cadeia de fornecimento foi interrompida. É por esta razão que as mortes ocorrem em zonas que não estão necessariamente ligadas à infecção pela COVID. Estamos actualmente a trabalhar com os parceiros para fazer uma análise detalhada para ver o impacto. Ainda muito cedo, na estratégia conjunta continental, centralizamo-nos em três coisas: limitar a transmissão da COVID, limitar as mortes pela COVID e limitar o perigo. Neste caso, “perigo” foi definido como significando doenças que não sejam a COVID assim como perigo económico. Então, estamos cientes disso e continuamos a encorajar os nossos parceiros a não negligenciarem coisas como programas de imunização e programas para o HIV, malária e doenças não transmissíveis. Se combinarmos as mortes do continente a cada ano entre HIV, TB e malária, está acima de 1,2 milhões de pessoas. Então, isso seria uma catástrofe se permitirmos que a pandemia cause um impacto nesses programas.
ADF: Quando perspectiva o futuro, qual é que espera que venha a ser o próximo passo no desenvolvimento do África CDC? Como espera que as instituições usem as lições aprendidas no combate à COVID-19 para desenvolverem ainda mais as infra-estruturas de saúde continentais e a sua capacidade?
Nkengasong: Eu acredito que, não apenas o continente, mas também o mundo como um todo deve parar e analisar de forma crítica a nossa arquitectura de segurança de saúde pública. O África CDC deve olhar para os desafios que a pandemia nos trouxe e dizer, “Como podemos nos fortalecer ainda mais para que possamos realmente ser uma organização fortalecedora continental que pode tomar decisões de forma rápida que sejam vinculativas para todos os Estados-membros?” O conceito de segurança de saúde em si começa a nível nacional. O África CDC pode apoiar os Estados-membros a terem os seus próprios institutos nacionais de saúde pública que possam trabalhar numa rede e coordenar com o África CDC para que possamos garantir uma resposta rápida. Olhemos para a RDC. Quantas vezes estivemos na RDC para lutar contra o Ébola? O África CDC apenas tem 4 anos de existência, e estivemos lá desde que assumi estas funções. Se tiver uma instituição nacional de saúde pública forte, ela pode estar a lutar contra a pandemia a nível local e isso nos pouparia muito. Olhemos para o quanto gastamos na luta contra a COVID. Se utilizássemos apenas uma fracção desse valor, fortalecendo os nossos sistemas, estaríamos muito mais avançados na curva e teríamos poupado bilhões de dólares. Penso que é nestas linhas que se devia reflectir. q