Terreno Desconhecido
Será que os Mercenários Podem Inverter a Insanável Situação da Província de Cabo Delgado, em Moçambique?
POR CYRIL ZENDA
Um grupo rebelde implacável e obscuro infiltrou-se na província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Os militantes associados ao Estado Islâmico, conhecidos como Ansar al-Sunna, “defensores da tradição,” surgiram em Outubro de 2017 e fomentaram a violência, que matou mais de 2.500 pessoas e forçou o deslocamento de mais de 700.000 pessoas, até meados de Março de 2021.
Em Cabo Delgado, província situada na fronteira norte de Moçambique com a Tanzânia, vivem cerca de 2,3 milhões de pessoas, 60 por cento das quais muçulmanas. É também conhecida a nível local como “Cabo Esquecido.”
Desde 2019, o governo moçambicano contratou empresas militares privadas (EMPs) para ajudar a combater os rebeldes, com resultados modestos. Os grupos são controversos e destacam as ramificações financeiras e de direitos humanos da externalização da segurança nacional para interesses privados.
Além disso, analistas afirmam que a confiança de Moçambique em EMPs de elevado custo, na província nordeste com vastos recursos de gás natural, pode não ser sustentável a longo prazo.
“Os riscos são demasiado elevados,” afirmou Lionel Dyck, director do Dyck Advisory Group, uma EMP sul-africana que ajuda o governo a conter a insurreição em Cabo Delgado. “No entanto, as Forças de Defesa e Segurança de Moçambique não estão preparadas e têm recursos insuficientes, pelo que temos de agir depressa,” disse Dyck à página da internet Africa Unauthorised, em Julho de 2020.
Desde o final de 2017, o exército do país está a tentar reprimir o grupo armado que destabilizou a região onde a ExxonMobil, a Total e outras empresas internacionais de produção de energia conseguiram capitalizar 60 bilhões de dólares em jazigos de gás natural.
MOTIVOS DA INSURGÊNCIA
Assim que as empresas de produção de gás começaram a construir os alicerces, Ansar al-Sunna iniciou a sua insurreição destrutiva. Os residentes locais apelidam o grupo de “al-Shabaab,” mas não tem quaisquer ligações à filial da al-Qaeda na Somália.
Apesar de não haver consenso sobre os motivos da insurreição, os analistas concordam que a religião possa ter proporcionado um ponto de encontro de todos os descontentes com as desigualdades socioeconómicas e políticas generalizadas que existem desde que Moçambique se tornou independente de Portugal, em 1975. Estas condições atraíram a maioria dos jovens para movimentos radicais, como é o caso do Ansar al-Sunna, que promete que o seu modelo do Islão será uma solução para a corrupção e o elitismo.
“Nós ocupámos [as cidades] para mostrar que o actual governo é injusto,” afirmou um militante num vídeo, em 2020, de acordo com a BBC. “Humilha os pobres e dá o lucro aos patrões.”
Dr. Eric Morier-Genoud, cientista político nascido em Moçambique, licenciado pela Queen’s University, em Belfast, Irlanda do Norte, associa a insurreição a dinâmicas históricas e sociais específicas.
“O movimento surgiu num grupo religioso, social e étnico específico, conhecido como os Mwani,” explicou Morier-Genoud. “Eles consideram que têm sido marginalizados há décadas devido à migração na sua área, à falta de desenvolvimento económico e à influência política dos países vizinhos.”
Lorenzo Macagno, que pesquisou sobre o Islão na província de Nampula, em Moçambique, defende que a violência insurgente na província adjacente de Cabo Delgado pode ser uma expressão das tensões causadas pelos jihadistas, que caracterizaram o Islão em Mozambique durante décadas.
“Conheci, na província de Nampula, um Islão hospitaleiro e pacífico, mas sei que também tem sido marcado por tensões internas e que agora conhecem uma extrapolação ‘jihadista’ em Cabo Delgado,” afirmou Macagno, professor associado do Departamento de Antropologia da Universidade de Paraná, Brasil.
Para Macagno, a pobreza, a repressão do Estado e a presença de capital estrangeiro em projectos de gás natural em Cabo Delgado não são suficientes para explicar a insurreição armada na província. Estes factores estão presentes em várias partes de África e do mundo, mas não há “empreendimentos jihadistas.”
Os grupos armados “apresentam-se como messiânicos e com uma agenda de salvação de um Islão que combate muçulmanos considerados apóstatas e que colaboram com o Estado laico,” afirmou.
Em Maputo, o governo do Presidente Filipe Nyusi qualificou a rebelião armada de actos de banditismo e destacou forças militares com o intuito de aniquilar rapidamente os militantes. No entanto, a resposta foi largamente inadequada.
Os investigadores do Observatório do Meio Rural (OMR), uma organização não-governamental moçambicana, não ficaram surpreendidos com a falha do destacamento militar. Afirmam que alguns membros das Forças Armadas, que também sofrem de negligência por parte do governo, sofrem as mesmas injustiças que os militantes.
Dizem que, no início da rebelião, os cidadãos tinham mais receio das forças governamentais do que dos insurgentes.
“De facto, os militares no terreno queixam-se de serem mal pagos e de problemas logísticos,” explicaram os investigadores do OMR.
Os destacamentos militares também provocaram a ira das comunidades. Alguns residentes locais “queixam-se de roubo e extorsão de dinheiro pelos militares,” afirmam os investigadores. “Reportagens locais e vídeos do WhatsApp mostram o sentimento generalizado de que os militares não estão a proteger devidamente as populações, ao evitarem confrontos com os insurgentes.”
Os soldados e agentes da polícia moçambicanos estão entre os funcionários públicos mais mal pagos. Esta situação, associada a uma grave falta de recursos, afectou gravemente a moral e criou condições perfeitas para a corrupção.
Em meados de 2019, quando se tornou evidente que as Forças de Defesa e Segurança de Moçambique não têm capacidade para lidar com a insurreição, Nyusi pediu ajuda às EMPs.
Cerca de 200 mercenários do Grupo Wagner, uma EMP controlada por Yevgeny Prigozhin, um homem de negócios russo com estreitas ligações ao Kremlin, chegou em segredo a Cabo Delgado, em Setembro de 2019. O facto de o Grupo Wagner ter garantido um contrato lucrativo com várias EMPs com vasta experiência na região revela a falta de transparência desses contratos.
A falta de experiência na região por parte do Grupo Wagner teve um preço elevado. Em Novembro de 2019, o Grupo Wagner retirou-se precipitadamente de Cabo Delgado depois de ter sofrido baixas elevadas, incluindo algumas decapitações.
Encorajados pelas vitórias contra as forças russas mais bem equipadas, os insurgentes iniciaram ataques mais arrojados em 2020.
Este acontecimento obrigou o governo a contratar o Dyck Advisory Group, em Abril de 2020. Isso deu frutos de imediato, incluindo a morte de 129 insurgentes.
“Algumas das atrocidades cometidas são das mais violentas que presenciei, e eu estive presente em muitas guerras, em vários locais diferentes,” Dyck, um antigo coronel do exército do Zimbabwe, disse ao Africa Unauthorised, em Julho de 2020, quando apresentou relatórios detalhados de mutilação de corpos e canibalismo. “Apesar da barbaridade, este inimigo está organizado, motivado e bem equipado. Se não conseguirmos travar esta situação, vai espalhar-se rapidamente para o sul e será um desastre para toda a região.”
Um funcionário da empresa de Dyck afirmou, no dia 31 de Março de 2021, que Moçambique não pretendia continuar o contrato com a empresa. Este anúncio surgiu depois de um relatório da Amnistia Internacional acusar todas as partes em conflito de violação dos direitos humanos.
Alegadamente, Moçambique terá contratado o Paramount Group, uma empresa aeroespacial e de tecnologia sediada na África do Sul. Apesar do Paramount Group não fornecer pessoal, disponibiliza veículos blindados, aviões, veículos aéreos não tripulados e navios de guerra, bem como treino para pilotos, cães-polícia e operadores de veículos.
O CUSTO DAS EMPs
É difícil saber o real custo dos mercenários, mas analistas afirmam que as EMPs são sempre muito caras.
“Não há qualquer dúvida de que o recurso a EMPs é muito controverso num país como Moçambique; a falta de transparência significa que é difícil avaliar o lucro destes contratos, mas é evidente que as empresas privadas são dispendiosas, o rendimento de algumas EMPs é quatro vezes superior ao do salário dos militares dos EUA,” escreveu o perito em segurança Ben Simonson para a Global Risk Insights.
As EMPs que perderam o contrato com Moçambique, quando contratou o Grupo Wagner, declararam que, na altura, o Grupo estava a cobrar mensalmente 25.000 dólares por cada mercenário no terreno, além de equipamento e outras questões logísticas.
Se estes valores estiverem correctos, os pagamentos mensais a uma EMP podem facilmente ultrapassar a massa salarial da totalidade do exército moçambicano de 11.200 soldados, que recebem uma média de 70 dólares por mês.
Os elevados custos privados suscitaram dúvidas em relação à capacidade de Moçambique de aguentar as despesas a longo prazo, tendo em conta o tipo de insurgência prolongada dos jihadistas, como a que foi levada a cabo por Boko Haram, na África Ocidental, e pelo al-Shabaab, na Somália.
Calton Cadeado, professor da Universidade Joaquim Chissano, em Maputo, e perito em defesa e segurança, atribui a culpa a políticas anteriores.
“As Forças Armadas foram enfraquecidas por motivos políticos, económicos e geopolíticos,” afirmou Cadeado. “Em termos políticos, houve várias opiniões, em especial de doadores, que utilizaram argumentos cínicos, baseados na teoria liberal, para impor um fraco investimento nas Forças Armadas.”
Cadeado afirma que a falta de investimento nos militares foi um erro. “Actualmente, é obrigatório modernizar as Forças Armadas.”
Simonson concordou que as EMPs tenham surgido para colmatar uma grande lacuna de segurança, uma vez que as forças militares moçambicanas não têm capacidade para o fazer.
“Não há qualquer dúvida de que as deficiências operacionais nas forças de segurança de Moçambique tenham dado origem a uma situação inevitável: a forte dependência nas empresas privadas. Acima de tudo, qualquer coisa é melhor do que nada, e, neste caso, o recurso às EMPs impediu que uma situação muito mais grave se tornasse ainda pior,” afirmou Simonson. “Infelizmente, a verdade é que a guerra é um negócio de muito lucro, e onde quer que haja conflito, há empresas militares privadas que procuram lucrar com a situação.”
SOLUÇÕES NÃO MILITARES
Apesar de Nyusi e o seu governo proporem soluções militares para a rebelião, analistas afirmam que deve ser sempre considerada a utilização de meios não militares para pôr termo ao conflito.
“Têm de lidar de maneira construtiva com os problemas relacionados com a propriedade da terra, começar a resolver as tensões sectárias e evitar humilhar os muçulmanos nas respectivas operações de segurança se querem impedir que as guerrilhas islâmicas tirem partido do descontentamento local e conquistem mais terreno,” afirmou Morier-Genoud.
Cadeado disse que era importante que o governo resolvesse os problemas que fomentam o descontentamento nas populações locais. Acrescentou que o governo deve investir no desenvolvimento a nível local e estar mais atento à explosão juvenil nas áreas afectadas pela insurreição.
A guerra civil após a independência de Moçambique, entre 1977 e 1992, entre a Frente de Libertação de Moçambique Marxista-leninista dirigente, conhecida como FRELIMO, e as forças rebeldes da Resistência Nacional Moçambicana, conhecida como RENAMO, só terminou depois de negociações. Isso levanta sérias dúvidas sobre a possibilidade do fim do actual conflito através de meios puramente militares.
“A solução não pode ser apenas militar, porque é praticamente impossível derrotar um movimento de guerrilha num cenário de pobreza, desigualdade e tensões históricas profundas,” avisaram os investigadores do OMR. Acrescentaram que as forças de segurança privada não compreendem a dinâmica local ou os terrenos florestais, o que é complicado numa área onde os rebeldes têm algum apoio local.
A AJUDA EXTERNA COMEÇA A CHEGAR
A hostilidade de longa data do governo moçambicano com os estrangeiros não tem ajudado a conquistar a ajuda externa. O governo tem sido acusado de perseguir jornalistas, funcionários das agências humanitárias e formadores de opinião, alguns dos quais ajudaram a denunciar as atrocidades ocorridas em zonas de conflito.
Contudo, à medida que a insurreição persistia, as nações da região e de outras regiões começaram a considerar vários tipos de ajuda. No final de 2020, a Tanzânia ofereceu-se para executar operações militares conjuntas ao longo da fronteira comum, e Portugal ofereceu-se para treinar membros do exército moçambicano.
Na Primavera de 2021, uma dezena de boinas verdes do Exército dos EUA iniciou um programa de dois meses para treinar fuzileiros navais moçambicanos sobre operações militares básicas que possam ser úteis, como planeamento, logística e cuidados às vítimas de combate, noticiou o The New York Times. Os EUA estão também a considerar fornecer apoio em termos de serviços secretos.
Em Abril de 2021, as Forças de Defesa Nacional da África do Sul enviaram tropas para fornecer apoio logístico a cidadãos sul-africanos que pretendem regressar a casa, de acordo com o Eyewitness News, da África do Sul.
No início de Maio de 2021, a União Europeia anunciou que estava a considerar uma missão militar de treino em Moçambique, noticiou a Reuters.
Depois de meses de deliberações, a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), composta por 16 membros, aceitou, a 23 de Junho de 2021, destacar a sua força de intervenção regional para ajudar a combater o terrorismo em Moçambique. Os oficiais não indicaram o número de tropas, os calendários de destacamento nem os cargos.
“Este é apenas o primeiro passo para uma solução mais abrangente,” disse Liesl Louw-Vaudran, investigador sénior do Instituto de Estudos de Segurança, à Reuters. “É a primeira vez que a força de intervenção da SADC mobiliza uma operação de combate ao terrorismo que não é pela manutenção da paz. É uma situação muito complexa.”
Cyril Zenda é um jornalista residente em Harare, no Zimbabwe. Possui artigos publicados no Fair Planet, na TRT World Magazine, The New Internationalist, Toward Freedom e SciDev.Net.
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