EQUIPA da ADF
Em finais de 2019, quando uma batalha intensa decorria na Líbia para salvar os bairros do sul de Trípoli, os médicos que faziam tratamentos aos feridos começaram a aperceber-se de algo fora do comum. Encontraram buracos causados por balas, mas sem vestígios de saída.
Pelo contrário, o que encontravam eram projécteis de ponta côncava, com o tamanho de um dedo. Poucos sobreviviam. A munição era um cartão-de-visita mortal dos atiradores mercenários russos, que tinham entrado na luta do lado das milícias comandadas pelo Marechal Khalifa Haftar.
A sua motivação era o lucro e, de acordo com soldados que lutam do lado do Governo do Acordo Nacional (GAN) da Líbia, eles não respeitavam as leis da guerra nem se importavam com a vida humana.
“Eles importavam-se com o dinheiro, ganhar dinheiro,” Haitham Werfali, um comandante de artilharia do Exército do GAN, disse à BBC. “Matam as pessoas, causam terror e cometem crimes por dinheiro.”
Os abusos pioraram logo a seguir. De acordo com um soldado do GAN, entrevistado pela BBC, os mercenários russos executavam os soldados líbios quando estes fossem capturados. “Ele levantou as mãos, e eles atiraram nele na barriga, duas balas próximas uma da outra,” disse Mohammed al-Kahasi, recordando-se da morte de um dos quatro soldados que ele acredita que foram executados.
Um antigo mercenário russo que lutou na Líbia confirmou a táctica brutal, dizendo que os prisioneiros de guerra eram mantidos vivos apenas enquanto fossem úteis. “Se uma força de trabalho é necessária para cavar trincheiras, por exemplo, ou para fazer algum trabalho, então, o prisioneiro tem valor como escravo,” o antigo mercenário do Grupo Wagner disse à BBC. “Caso isso não fosse necessário, o resultado é óbvio. Ninguém quer uma boca extra para alimentar.”
Os alegados crimes de guerra cometidos por mercenários russos coloca em perigo uma paz frágil na Líbia. Quando os líderes do governo de unidade da Líbia procuravam reconstruir a nação, em 2021, pediram que os combatentes estrangeiros regressassem aos seus países.
“Exigimos que todos os mercenários saiam imediatamente das terras líbias,” anunciou a Ministra dos Negócios Estrangeiros interina, Najla al-Mangoush, no dia 17 de Março de 2021.
Mas, nos meses subsequentes, as forças russas continuaram a desempenhar um papel de saqueador no país. Imagens de satélite ilustram a construção de uma trincheira que se estende por cerca de 70 quilómetros a sul, a partir da costa de Sirte em direcção a uma base aérea controlada por Haftar, em al-Jufra. Especialistas que analisaram as imagens identificaram 30 posições defensivas escavadas ao longo da trincheira.
“As forças do Grupo Wagner não irão obedecer a qualquer acordo que os obrigue a sair da Líbia,” Muhammad Ammari, membro do Conselho Presidencial da Líbia, disse ao The Libya Observer. “O Grupo Wagner fornece ao governo russo o poder e os meios para influenciar a Líbia nas esferas política, militar e económica.”
Uma Força Desestabilizadora
A Líbia está sem governo desde 2011, quando os rebeldes derrubaram e mataram o ditador Muammar Gadhafi. Várias facções controlaram regiões do país até ao final de 2020, quando um cessar-fogo terminou os combates. Os líderes criaram o Governo de Unidade Nacional, com o Primeiro-Ministro, Abdul Hamid Dbeibah, como o seu dirigente. Estão previstas eleições para 24 de Dezembro de 2021.
Uma vez que a maioria das instituições do governo foram bem-sucedidas, Dbeibah disse que as forças armadas do país continuam divididas. Corrigir essa divisão está nas mãos de uma comissão militar conjunta composta por cinco oficiais superiores do antigo Governo do Acordo Nacional (GAN), de Dbeibah, reconhecido pela ONU, e por cinco oficiais superiores da facção rival, pelo antigo Exército Nacional da Líbia (LNA), do comandante militar Haftar, com base militar no leste do país.
Os investigadores da ONU afirmaram que Haftar tinha o apoio de pelo menos 1.200 mercenários, que representavam empresas militares privadas russas, como o Grupo Wagner. Haftar obteve também apoio dos Emiratos Árabes Unidos (EAU), que forneceram poder aéreo.
Na altura, a ONU avisou várias vezes o Conselho de Segurança que “o afluxo massivo de armas, equipamento e mercenários” era uma violação do embargo de armas da ONU.
Haftar formou um exército separatista e iniciou uma guerra em Abril de 2019, com armas cuja proveniência se acreditava ser dos EAU e da Rússia. O relatório não especulou sobre quanto os combatentes do Grupo Wagner recebiam. No entanto, o mesmo indica que os russos “forneceram equipamento avançado, como veículos aéreos não tripulados, e capacidades avançadas, como atiradores furtivos treinados, ao conflito, o que resultou em baixas significativas nas forças ligadas ao GAN.”
Este grupo também esteve activo na República Centro-Africana, no Madagáscar, em Moçambique, no Ruanda e no Sudão.
‘Ingerência’
A ofensiva de Haftar terminou em 2020, quando a Turquia entrou oficialmente, após a aprovação do parlamento turco, no início do ano.
“Uma das acções que a Turquia desenvolveu ao intervir oficialmente na Líbia foi melhorar o armamento,” disse Oded Berkowitz, da Max Security, ao jornal The Independent. “É como se tivessem avançando para uma nova geração na Líbia.”
Ulf Laessing, chefe do departamento de notícias da Reuters, no Egipto e no Sudão, avisou que os combatentes estrangeiros estavam a retirar o futuro da Líbia das mãos dos líbios.
“No terreno, os combatentes líbios têm capacidade limitada, sabem como disparar Kalashnikovs e tanques antigos,” afirmou numa conferência de imprensa.
Os russos forneceram ao LNA 14 caças e caças-bombardeiros. O The Independent noticiou que, no início de 2017, os EAU enviaram drones, aviões, helicópteros de ataque e veículos blindados para a Líbia para apoiar o LNA.
Os russos ignoraram manifestamente o cessar-fogo e o pedido de regresso a casa de todos os mercenários. O The Washington Post anunciou que os voos russos clandestinos para a Líbia continuaram muito depois de os combates cessarem.
“Isto é o mais aterrador para os líbios,” disse um diplomata ocidental superior ao jornal. Ele afirmou que, num momento em que não há combates e existem novas perspectivas de paz, a Rússia e outros países que se intrometeram na luta da Líbia “estão a infiltrar-se.”
Quando as forças do GAN e as forças turcas afastaram as forças de Haftar e as forças do Grupo Wagner para fora da capital, em 2020, os combatentes que se retiravam deixavam outro cartão-de-visita mortal. Os residentes que regressavam aos bairros de Ain Zara e Salahuddin, a sul de Trípoli, descobriram minas terrestres nas suas residências ou próximo delas. As minas antipessoais, de fabrico russo, descobertas nestes bairros, foram banidas nos termos dos tratados internacionais. Para além disso, os agentes de desminagem descobriram explosivos “armadilha” concebidos para detonar quando uma pessoa tropeça neles ou simplesmente caminha próximo deles. Estes dispositivos mortais que utilizam temporizadores electrónicos, caixas de circuitos e telefones celulares modificados, foram banidos, de acordo com a Human Rights Watch.
Provavelmente, o mais preocupante é o facto de os agentes de desminagem terem descoberto brinquedos armadilhados, como ursinhos e latas de refrescos, que, muitas vezes, são apanhados por crianças.
“De todos os conflitos que surgiram na Líbia desde 2011, este foi de longe o pior para nós,” Moad Elarabi, gestor de operações da Free Fields Foundation, disse ao The Post. “Deste conflito, encontramos muitas novas armas, todas trazidas de fora.”
Até Julho de 2020, 52 pessoas tinham morrido e 96 ficaram feridas por minas terrestres e armadilhas deixadas nos bairros líbios, reportou a ONU.
Motivados por Dinheiro
Especialistas afirmam que os russos não estão na Líbia em apoio a qualquer ideologia particular, nem estão interessados em deixar o país estável e pacífico. Estão num país devastado porque estão interessados nos despojos da guerra: as grandes riquezas de petróleo e gás da Líbia. Estão também a tentar ficar numa situação favorável para terem acesso às bases militares e estão a condicionar, para o seu próprio proveito, o futuro governo. A Líbia é apreciada pela sua localização estratégica no Mar Mediterrâneo.
Um antigo combatente do Grupo Wagner confirmou isso à BBC, dizendo que o grupo mercenário “É uma estrutura que visa promover os interesses do Estado além das fronteiras do nosso país.”
Jelena Aparac, presidente do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre a Utilização de Mercenários, disse que a presença destes mercenários coloca em perigo o futuro da Líbia, incluindo as eleições gerais de Dezembro de 2021.
“Os líbios devem ser capazes de levar a cabo o processo de votação num ambiente seguro, e a presença destes actores impede isso,” escreveu Aparac, no relatório de Julho de 2021.
O Primeiro-Ministro Dbeibah disse ao parlamento que o processo de paz depende da retirada dos combatentes estrangeiros.
“Os mercenários são uma facada nas costas, têm de sair,” afirmou, conforme noticiado pela Agence France-Presse. “A nossa soberania é violada pela presença de mercenários.”