MAJ. GENERAL PRINCE C. JOHNSON III
À medida que o mundo enfrenta um inimigo invisível, o coronavírus que causa a COVID-19, pode ser útil revisitar a experiência da Libéria durante a eclosão do vírus do Ébola, entre 2014 e 2016. Embora tenhamos cometido erros e sofrido alguns contratempos, também aprendemos um pouco sobre o papel adequado dos militares na luta contra uma epidemia. Em última instância, acredito que os esforços feitos pelas Forças Armadas da Libéria (AFL) e dos seus parceiros internacionais ajudaram a reduzir a propagação do vírus e salvaram vidas. Estou confiante de que as lições que aprendemos nos deixarão melhor posicionados para enfrentar futuros surtos. Sendo assim, gostaria de compartilhar algumas destas lições com aliados em todo o continente e no mundo inteiro.
O Ébola surgiu numa zona de florestas densas da República da Guiné, em finais de 2013. No mês de Agosto seguinte, já se tinha alastrado para pelo menos três países vizinhos e as mortes já tinham ultrapassado 900, tendo 232 destas mortes acontecido na Libéria. A crise ultrapassou as capacidades da polícia da Libéria e outras forças de segurança regionais. No dia 7 de Agosto de 2014, a então Presidente Ellen Johnson Sirleaf declarou um estado de emergência de 90 dias. Nos termos da secção 2.3 da Lei de Defesa Nacional da Libéria, isso significava que era responsabilidade das AFL dar “apoio de comando, controlo, logístico, médico, de transporte e humanitário às autoridades civis” de modo a combater o desastre.
Mas as perguntas persistem: O que isso significava exactamente e será que estamos preparados? Por exemlo, as AFL tinham sido reconstruídas a partir do zero depois de 15 anos de guerra civil. Sob a supervisão dos Estados Unidos da América e duas empresas de segurança, cerca de 2.000 soldados das AFL foram recrutados, vetados, treinados e equipados. A Comunidade Económica de Estados da África Ocidental deu assistência e uma nova AFL nasceu em 2006. No ano de 2014, ainda estávamos a familiarizar-nos. Compartilhamos responsabilidades na área da segurança com as Nações Unidas e as únicas missões das AFL tinham sido de destacar forças para a fronteira da Costa do Marfim, em 2012, e contribuir com tropas para a Missão das Nações Unidas no Mali, com início em 2013.
Para além disso, todo o corpo médico era composto por uma unidade de tamanho de um pelotão. A luta contra o Ébola era diferente de qualquer coisa que já tínhamos visto. A nossa tarefa era de garantir segurança para os técnicos de saúde e para as instituições de modo que estas pudessem realizar o seu trabalho de salvar vidas. Também pediram que restringíssemos o movimento de pessoas em cinco condados do nordeste da Libéria (Lofa, Gbarpolu, Montserrado, Bomi e Grand Cape Mount), com uma população total de cerca de 2 milhões.
OPERAÇÃO WHITE SHIELD
A missão que tomou forma ficou conhecida como operação White Shield com atribuições que incluíam:
- Fazer cumprir a quarentena e o recolher obrigatório.
- Alocar pessoal para os pontos de controlo próximos da fronteira e em estradas principais e medir a temperatura de civis.
- Garantir escoltas de segurança para equipas de funerais em regiões hostis.
- Transportar itens fundamentais de logística para lugares de difícil acesso.
De todas essas atribuições, se calhar, a mais difícil foi a de garantir escoltas de segurança para equipas de funerais. Isso foi um desafio porque algumas pessoas não queriam aceitar o facto de que, para impedir o alastramento da doença, os seus entes queridos tinham de ser enterrados em zonas distantes das suas residências.
Esta questão da cultura tinha passado a ser o centro das atenções. As organizações humanitárias e organizações não-governamentais internacionais não conseguiram convencer os membros da comunidade que esta era a melhor forma de controlar a propagação. Na Libéria, não estávamos acostumados à prática de cremar corpos e nós, os soldados das AFL, tínhamos de explicar isso às pessoas e dizê-las que tinham de mudar as práticas culturais para poder controlar o vírus. As pessoas estavam frustradas porque os corpos dos seus entes queridos lhes eram tirados à força. Em algumas religiões, as pessoas realizavam rituais de purificação dos mortos, mas estas oportunidades não lhes eram dadas. Encontramos resistência séria.
Aprendemos que ao tentar controlar um surto, a cultura é tão importante quanto às tácticas, uma vez que a doença se propaga como resultado do comportamento humano.
OPERAÇÃO UNITED ASSISTANCE/UNITED SHIELD
Em Setembro de 2014, o nosso presidente apelou para a ajuda da comunidade internacional. O primeiro exército a juntar-se as AFL foi o Exército Americano, através da 101ª Divisão Aérea, que destacou a Operação United Assistance. Agora tínhamos duas operações militares a operar num único país. Rapidamente pudemos ver a importância da boa liderança.
Quando a 101ª chegou, a equipa de avanço era encabeçada pelo Maj. Gen. Darryl Williams, do Exército Americano. Ele veio com a aeronave e com mantimentos para construir as unidades de tratamento de Ébola (ETU) de que tanto precisávamos. Mas quando entrou no país, na sua primeira paragem, foi ter com o comandante da unidade das AFL e perguntar “O que vocês têm e de que vocês precisam?” Ele não disse: “Nós utilizaremos os nossos instrumentos” ou “Nós faremos o plano”. Ele contou connosco para ter recomendações. Este é o modelo para a liderança. A nação anfitriã desempenha correctamente um papel importante ao lidar com uma crise humanitária e determinar como impedir a propagação de uma doença mortal. O Gen. Williams reconheceu isso desde o começo.
Combinamos os nossos recursos e criamos o nosso próprio modelo. E isso se reflectiu no novo nome do esforço conjunto. Levamos o termo “United” da missão dos EUA e “Shield” da missão da Libéria para criar a “Operação United Shield”.
O Gen. Williams tinha um mandato específico de construir 17 ETUs, visto que na altura apenas existia uma ou duas no país, no Condado de Montserrado. Os outros 14 Condados da Libéria não tinham ETUs, por isso, as pessoas, incapazes de viajar, eram vítimas da doença e morriam sem receber tratamento especializado.
Quando discutimos este assunto com o Gen. Williams, decidimos reduzir o número e construir 10 ETUs e reduzir a capacidade de cada uma delas das 100 camas planificadas para 50 camas. Este foi o melhor plano para colocar os cidadãos da Libéria em posição de dar apoio e fazer a gestão das ETUs quando estas fossem concluídas. Conseguimos construir três ETUs num curto espaço de tempo, o que começou a reduzir a questão de as vítimas não terem um lugar para onde ir. Até Outubro de 2014, tínhamos mais camas disponíveis do que novos casos registados.
Também colaboramos com os EUA para dar treinos de simulação ao nosso pessoal médico e alguns homens da infantaria a fim de saberem qual é a melhor abordagem a utilizar quando se depararem com uma vítima. O treino incluía como identificar os sintomas do Ébola e como utilizar correctamente o equipamento de protecção individual (EPI). Os EUA entraram em parceria com a Libéria para desenvolver um programa de formação de formadores para que os estudantes que participassem do curso pudessem ensinar aos outros.
Estabelecemos uma estrutura para sustentar ainda mais as tropas alocadas e trabalhadores do sector de saúde, garantindo a existência de um fluxo contínuo de pessoal e equipamento para as regiões mais severamente atingidas. Este plano de apoio logístico dependia da capacidade de transporte aéreo dos EUA e do transporte terrestre liberiano.
Em algumas semanas, houve mais centros de testagem, o que reduziu o tempo necessário para confirmar um caso, de dois ou três dias para apenas algumas horas. Os pacientes eram testados em centros móveis e transferidos imediatamente para as ETUs de modo a reduzir o tempo que eventualmente podiam transmitir a doença a outras pessoas. Na primeira semana de 2015, houve uma redução de 60% de novos casos comparados aos piores períodos de Agosto anterior.
LIÇÕES APRENDIDAS
Parcerias Regionais: Em 2014, foi-nos lembrado rapidamente de que vivemos numa aldeia global. É necessário ver o que acontece com o seu vizinho para proteger a si mesmo. Nós o fizemos e estamos aqui hoje por causa disso. As parcerias podem mitigar muitos desafios na nossa região. As relações bilaterais entre líderes políticos, militares e civis de países vizinhos fazem com que a partilha de informação e a coordenação de uma resposta sejam mais fáceis. As nações da Libéria, Guiné-Conacri e Serra Leoa aprenderam isso e acredito que as parcerias regionais são mais fortes hoje do que nunca.
Trabalho em Equipa: A questão da confiança dentro de um país é difícil, não se pode esperar edificar a confiança durante um conflito ou uma crise. É necessário começar a edificar a confiança entre vocês antecipadamente. Os líderes civis do sector público e privado, preocupados com a resposta, medicina, ajuda humanitária, testagem e produção de EPI de emergência, devem ter uma relação baseada na confiança antes do surgimento de um surto.
Educação: A educação pública demostrou ser de vital importância para a situação de segurança na Libéria. À medida que o público entendia mais sobre como o vírus se propagava e por que certas coisas, incluindo quarentenas, eram necessárias, ficou mais fácil protegê-lo.
Formação: Por causa da crise, as AFL foram responsáveis por manter a ordem pública em alguns locais, algo que é tipicamente uma responsabilidade da polícia. É importante que os soldados sejam treinados e preparados para lidar com questões como o controlo de multidões, em que a paciência, a contenção e evitar o uso de força são componentes fundamentais.
Envolvimento Local: Quando os EUA chegaram, o Gen. Williams tinha uma mensagem clara: “Eu não vou assumir o controlo. Vocês é que são os responsáveis por isto”. Ouvir isso foi importante para nós. Fazer com que os liberianos assumissem o controlo do problema e o comando no combate da propagação fez com que o sucesso fosse possível de alcançar.
FUTUROS DESAFIOS
Este vírus afectou mais de 28.000 pessoas na nossa região. Deste número, mais de 11.000 morreram. Na Libéria, tivemos cerca de 5.000 mortes. Tendo vivido isto, eu sei o que é necessário para responder. Durante o meu comando, tive de tomar decisões difíceis, tais como dizer a um oficial júnior que ele não tinha permissão de ir visitar a mãe enquanto ela morria por causa da doença. Ordenei que ele permanecesse em quarentena. Estas decisões são dolorosas, mas a disciplina é essencial para impedir a propagação do vírus. Qualquer complacência na quarentena pode levar ao surgimento de uma nova onda de casos. Quanto ao futuro, eu não tenho medo, mas estou preocupado com a COVID-19 e a ameaça de futuras pandemias. Eu já comecei a planificar. Como comandantes, devemos estar constantemente a fazer a monitoria e a preparar porque não sabemos onde uma pandemia irá surgir a seguir. A nossa habilidade de lidar com futuros desafios depende da nossa liderança hoje.
O Maj. Gen. Johnson serviu nas Forças Armadas da Libéria por mais de 11 anos e, desde 2018, é chefe do estado-maior. Estudou em várias escolas militares incluindo a Escola de Comandos e Generais do Exército dos EUA, em Fort Leavenworth, Kansas. É Mestre em Estudos de Paz pelo Instituto Kofi Annan para Transformação de Conflitos, Universidade da Libéria.