O sol batia forte no convés branco e imaculado do navio transportador de veículos Galaxy Leader enquanto este navegava pelo Mar Vermelho, a cerca de 80 quilómetros a oeste do porto de Hodeidah, no Iémen, no dia 19 de Novembro de 2023.
A viagem certamente deixava os 25 tripulantes internacionais em alerta. Apenas algumas semanas antes, os rebeldes Houthis haviam iniciado o seu ataque ilegal ao transporte marítimo global. Os piores receios da tripulação do Galaxy Leader concretizaram-se quando um helicóptero Mi-171Sh sobrevoou o navio de 189 metros e depositou vários homens armados e mascarados no convés. Eles correram sem oposição para a ponte e ordenaram os tripulantes para se deitarem no chão. Vários pequenos barcos Houthis flanquearam então o navio de carga de propriedade britânica e operado por japoneses e forçaram-no a entrar em Hodeidah, controlada pelos Houthis.
Os 25 reféns búlgaros, mexicanos, filipinos, romenos e ucranianos viveram na incerteza até que os Houthis os libertaram para Omã, após dois meses de intensas negociações diplomáticas.
A saga do Galaxy Leader é apenas um dos casos mais conhecidos de navios comerciais vítimas de ataques implacáveis dos rebeldes Houthis apoiados pelo Irão. Desde o final de 2023, os Houthis dispararam mísseis e lançaram drones armados contra navios portacontentores, graneleiros e petroleiros e navios-tanque de produtos químicos.
Alguns ataques danificaram os seus alvos; outros falharam. Os rebeldes afundaram dois graneleiros em 2024: o Rubymar, no dia 18 de Fevereiro, e o Tutor, após um ataque no dia 12 de Junho. Ao todo, os Houthis lançaram mais de 100 ataques e mataram quatro marinheiros entre Novembro de 2023 e Janeiro de 2025.

“Os ataques abalaram o transporte marítimo desde o Mar Vermelho ao Golfo de Áden e ao Oceano Índico Ocidental, por onde passa 25% do tráfego marítimo global,” Francois Vreÿ e Mark Blaine escreveram em “Red Sea and Western Indian Ocean Attacks Expose Africa’s Maritime Vulnerability (Ataques no Mar Vermelho e no Oceano Índico Ocidental Expõem a Vulnerabilidade Marítima de África)” para o Centro de Estudos Estratégicos de África.
“As repercussões foram imediatamente visíveis. As companhias marítimas globais desviaram as rotas do Mar Vermelho, alterando os fluxos de transporte marítimo entre os enormes mercados globais da Ásia e da Europa. Os prémios de seguro para o transporte marítimo aumentaram, elevando os custos dos produtos para os consumidores em África e em todo o mundo.
Os desvios ao redor da África do Sul podem adicionar até duas semanas e 6.000 milhas náuticas extras à viagem de um navio.”
Os observadores também notam níveis alarmantes de cooperação entre os Houthis e os terroristas do al-Shabaab, baseados na Somália, que há anos são uma ameaça para os navios ao largo da costa africana.
UM FLAGELO REGIONAL E GLOBAL
O Mar Vermelho já é uma rota marítima facilmente perturbada, com pontos de estrangulamento em cada extremidade. O mar estreita-se drasticamente a norte, à medida que os navios passam pelo Canal de Suez. A sul, o tráfego marítimo tem de atravessar o estreito de Bab el-Mandeb antes de entrar no Golfo de Áden e no Oceano Índico. Qualquer ameaça a esta rota marítima já precária pode ter efeitos catastróficos em todo o mundo.
O estreito é por onde passa 15% do comércio marítimo global. Os embarques de petróleo bruto e produtos relacionados caíram mais de 50% nos primeiros oito meses de 2024, passando de 8,7 milhões de barris por dia em 2023 para 4 milhões de barris por dia, de acordo com a Administração de Informação Energética dos EUA.
Quando os ataques dos Houthis aos navios começaram com o Galaxy Leader em Novembro de 2023, a perturbação foi imediata. Uma solução foi contornar o estreito de Bab el-Mandeb, optando por uma rota espectacularmente tortuosa que levava os navios ao redor do Cabo da Boa Esperança, no extremo sul de África. O aumento do tempo e da distância aumenta os custos de combustível e seguro dos navios, além de atrasar a entrega de mercadorias essenciais aos portos de todo o mundo.

Os ataques também prejudicam directamente os países africanos. Por exemplo, o Egipto depende normalmente de quase 10 bilhões de dólares em receitas anuais provenientes das portagens do Canal de Suez. Quando os navios evitam o Mar Vermelho a caminho da Europa ou da África do Norte, essas portagens desaparecem. “O impacto económico global do Canal de Suez para o Egipto é de cerca de 56 bilhões de dólares antes dos Houthis,” o Dr. Ian Ralby, PCA da I.R. Consilium, uma consultoria global de recursos marítimos e segurança, disse à ADF. “Isso representa uma queda de cerca de dois terços. O impacto económico é enorme.”
Os efeitos negativos potenciais seriam generalizados.
“Se a economia egípcia entrasse em colapso total, isso causaria todo o tipo de repercussões em todas as direcções, afectando o Médio Oriente, a África e a Europa,” explicou Ralby.
A incapacidade dos navios de navegar com segurança no Mar Vermelho também tem ramificações negativas para o Sudão. A guerra civil em curso no país intensifica a insegurança alimentar, pelo que, se os navios não conseguirem chegar a Port Sudan, os civis estarão mais susceptíveis de enfrentar a fome e ficar privados de suprimentos médicos, disse. Atrasos no transporte de bens essenciais também podem prejudicar a Etiópia e a Somália, onde os conflitos persistem há anos.
QUEM SÃO OS HOUTHIS?
Embora os Houthis pareçam ser relativamente novos nas notícias mundiais, as suas raízes remontam à década de 1990, quando surgiram sob o nome de Ansar Allah, que significa “Partidários de Deus.” O seu nome comum é tirado do seu falecido fundador, Hussein al-Houthi. O seu irmão, Abdul Malik al-Houthi, lidera agora o movimento. Eles representam os Zaidis, uma seita da minoria muçulmana xiita do Iémen, e declaram-se parte do “eixo da resistência” do Irão.
Na década de 2000, os rebeldes Houthis lutavam contra o então presidente do Iémen, Ali Abdullah Saleh, por mais autonomia na sua terra natal, no norte do país. Em 2011, Saleh entregou o poder a Abdrabbuh Mansour Hadi e, pouco depois, os Houthis tomaram a capital do Iémen, Sanaa. À medida que o grupo continuava a conquistar território, Hadi fugiu do país e a Arábia Saudita temia que os Houthis transformassem o Iémen num satélite do Irão, segundo a BBC. Apesar das intervenções árabes na guerra, mais de 4 milhões de pessoas fugiram e mais de 160.000 foram mortas.
Os Houthis são geralmente considerados um grupo apoiado pelo Irão que se opõe à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos. Embora exista há décadas, o grupo só ganhou verdadeira notoriedade mundial quando começou a atacar navios comerciais no Mar Vermelho. Apesar das narrativas falsas que os Houthis usam para justificar os ataques a navios, os especialistas concordam que a verdadeira razão é galvanizar o apoio interno num país que está essencialmente em caos.

“Politicamente, os Houthis precisam de uma bandeira para silenciar o descontentamento interno crescente,” Gregory Johnsen, investigador do Instituto dos Estados Árabes do Golfo, em Washington, D.C., que estudou e viveu no Iémen durante vários anos, disse numa publicação no X. “Economicamente, os Houthis querem expandir a guerra local no Iémen, porque, eventualmente, precisam de tomar Marib ou Shabwa (onde se encontram os campos de petróleo e gás do Iémen) para ter uma base económica que lhes permita sobreviver a longo prazo no Iémen.”
Os Houthis são uma milícia que ganhou o controlo de um país que não consegue governar, pelo que a ausência de uma guerra interna os torna “vulneráveis aos rivais internos,” afirmou Johnsen.
TERRORISTAS COOPERAM ALÉM-MAR
A ameaça dos Houthis vai além das rotas marítimas entre o Golfo de Áden e o Canal de Suez. O grupo também é conhecido por ter encontrado uma causa comum com o grupo terrorista somali al-Shabaab. Um relatório das Nações Unidas de Fevereiro de 2025 observou que os dois grupos tinham formado uma relação “transaccional ou oportunista.” Pessoas de ambos os grupos se tinham encontrado pelo menos duas vezes na Somália: em Julho e Setembro de 2024. O al-Shabaab solicitou armas avançadas e treinamento. Em troca, os Houthis pediram um aumento nos resgates por pirataria contra navios de carga no Golfo de Áden e na costa da Somália.
“Durante esse período, o al-Shabaab teria recebido algumas armas pequenas e leves, além de conhecimento técnico dos Houthis,” lê-se no relatório da ONU. Em pelo menos 13 ocasiões entre Outubro de 2023 e Abril de 2025, várias autoridades apreenderam ou destruíram armas em trânsito entre o Iémen e a Somália, de acordo com o Africa Center.
Ralby disse que parte dessa cooperação existe numa área que há décadas vê dinheiro, ideologia, pessoas, armas e drogas circularem entre a África Oriental e a Península Arábica. Essas redes remontam à época em que Osama bin Laden estava escondido no Sudão e quando o al-Shabaab financiava o terrorismo através da venda de carvão vegetal para o Médio Oriente. “Os Houthis são o produto de diferentes factores, mas existem desde a década de 1990,” disse Ralby. “Eles não são novos. Eles são novos para muitas pessoas, o que significa que vêm construindo conexões há muito tempo.”
Uma forte conscientização do domínio marítimo é fundamental para estabelecer a ordem no mar ao largo da costa africana, afirmaram Vreÿ e Blaine no seu artigo do Africa Center. África já dispõe de ferramentas para estabelecer essa consciência. Em 2022, dois centros iniciaram as suas operações. O Centro Regional de Fusão de Informações Marítimas (RMIFC) do Madagáscar monitoriza e partilha informações sobre embarcações suspeitas na região. O Centro Regional de Coordenação Operacional (RCOC) das Seychelles utiliza os dados do RMIFC para coordenar as respostas de segurança no Oceano Índico Ocidental.
Existem cinco centros sub-regionais de coordenação de salvamento marítimo e 26 subcentros que cobrem toda a costa continental para coordenar as operações de busca e salvamento. As coligações navais ocidentais e a Marinha Indiana respondem a crises dos Houthis, mas as marinhas africanas podem fazer mais, argumentam Vreÿ e Blaine. “Nem mesmo o Egipto, que tem uma marinha muito competente e pode sofrer perdas económicas significativas com a crise, enviou um único navio.”
Apesar disso, Ralby disse que os países africanos têm prestado um apoio crucial aos esforços para combater a ameaça dos Houthis ao transporte marítimo. Por exemplo, a pequena nação insular das Seychelles foi um dos primeiros 10 países — e o único país africano — a participar na Operação Prosperity Guardian, uma missão multinacional liderada pelos EUA que envolve a presença naval e a partilha de informações em resposta à ameaça.
As informações, a inteligência e o apoio operacional do RCOC das Seychelles e do RMIFC do Madagáscar ajudaram a Marinha Indiana e as operações navais multinacionais a manter a linha contra a pirataria, que muitos temiam que aumentasse com a continuação da ameaça dos Houthis, disse.
Como os ataques no Mar Vermelho fizeram com que os navios se desviassem, os países costeiros africanos também se saíram bem no fornecimento e na gestão de recursos como combustível, enquanto o tráfego ao redor do Cabo da Boa Esperança aumentou 135%, disse Ralby. “E então, sim, houve alguns incidentes que eram naturais quando se aumenta o volume de tráfego marítimo numa área com tendência a condições climáticas adversas e imprevisíveis. Mas, no geral, a gestão africana da situação tem sido muito boa.”

