EQUIPA DA ADF | FOTOS DE AFP/GETTY IMAGES
Ao amanhecer do dia 4 de Junho de 2005, algumas dezenas de soldados mauritanos começaram a preparar-se para as suas tarefas num posto remoto perto das fronteiras da Argélia e do Mali.
A zona, conhecida como El Hank, situa-se numa das bolsas mais áridas do Sahara e é conhecida pelas idas e vindas de bandidos e traficantes. É um exemplo perfeito de um dos muitos espaços não governados de África: longe da capital da Mauritânia, Nouakchott, e longe dos grandes centros populacionais dos países vizinhos.
Mais de 150 extremistas alinhados ao Grupo Salafista para a Pregação e o Combate invadiram o posto avançado de El Hank, matando pelo menos 15 soldados e ferindo outros 17 antes de fugirem, segundo a Radio France Internationale. Nove terroristas morreram nos combates. Os restantes roubaram seis veículos todo-o-terreno e armas pesadas.
O ataque, anos antes de o Sahel se tornar sinónimo de violência extremista, faz parte de uma série de 11 incidentes ocorridos entre 2005 e 2011. Na Primavera de 2005, as autoridades mauritanas desmantelaram uma célula extremista. O atentado de El Hank ocorreu alguns meses mais tarde.
Houve nove outros incidentes entre 2007 e 2011, informou o Instituto de Estudos de Segurança (ISS) em Dezembro de 2019.
Então, o que mudou desde 2011? Como é que a Mauritânia escapou durante tanto tempo ao destino de tantos dos seus vizinhos regionais?
Em primeiro lugar, a Mauritânia iniciou uma campanha para actualizar e proporcionar selectivamente equipamento militar, melhorar as infra-estruturas e aumentar a formação e o salário dos soldados. O seu orçamento militar nacional quadruplicou para 160 milhões de dólares entre 2008 e 2018, de acordo com um relatório do Centro de Estudos Estratégicos de África de 2020, elaborado por Anouar Boukhars, professor de contra-terrorismo e combate ao extremismo violento.
Depois, o governo reforçou o seu empenho em regiões distantes, criando pequenas comunidades para concentrar os residentes rurais dispersos. Esta iniciativa criou “posições defensáveis” perto da fronteira com o Mali, melhorando ao mesmo tempo as condições de vida e preservando a cultura nómada, escreveu Boukhars.
A Mauritânia também optou por encetar diálogos com elementos extremistas, uma acção que justificou como “defensiva e necessária.”
“Alguns observadores afirmam que um dos ingredientes do sucesso da Mauritânia em matéria de segurança pode ser a abertura de canais de comunicação e de contacto com grupos armados e traficantes,” escreveu Boukhars. “Outros argumentam que isso é míope e prejudica os esforços regionais para combater os grupos extremistas violentos transnacionais.”
As condições e o contexto diferem ao se abrir diálogos para promover a paz. O que funciona num lugar, como a Mauritânia, pode não ser bem-sucedido noutro lugar. Os potenciais compromissos têm frequentemente de ser ponderados em função do bem maior de uma nação e do seu povo.
O PODER DO DIÁLOGO
No meio de um período de anos de ataques extremistas, as autoridades mauritanas decidiram abordar as causas da radicalização religiosa, de acordo com um relatório de Abril de 2022 elaborado para o ISS pelo investigador sénior Hassane Koné e Ornella Moderan, chefe do Programa Sahel do gabinete do instituto na África Ocidental.
O processo começou com as autoridades a falarem com 70 prisioneiros para saber por que razão se tinham radicalizado e para os reintegrar na sociedade civil. Em Janeiro de 2010, a Mauritânia encomendou uma série de debates a dignitários religiosos que ajudaram os participantes a chegar a acordo sobre “o ideal não violento da jihad.” Como resultado, dois terços dos prisioneiros concordaram em renunciar ao extremismo e desarmar-se. Em troca, obtiveram indultos ou reduções de pena e ajuda financeira para a reintegração.
O diálogo procurou também impedir que a violenta ideologia islâmica salafista continuasse a propagar-se. A abordagem da Mauritânia destacou a “tradição de tolerância” do Islão, como Koné escreveu num relatório do ISS de 2019.
Alguns dos clérigos islâmicos envolvidos nos diálogos tinham sido eles próprios presos, de acordo com um documento de 2019 de Frederic Wehrey para o Fundo Carnegie para a Paz Internacional. Foi dito aos prisioneiros que podiam apelar à Sharia na Mauritânia, desde que o fizessem pacificamente, e que os convidados não muçulmanos na Mauritânia deviam ser considerados “pessoas protegidas,” de acordo com as escrituras islâmicas.
O governo também fez um recenseamento das madraças (escolas corânicas) para que pudessem ser controladas e depois recrutou centenas desses estudantes e ofereceu-lhes formação profissional e trabalho no sector público para evitar expô-los à propaganda extremista, escreveu Koné.
Koné e Moderan são rápidos a acrescentar, no entanto, que a experiência da Mauritânia não funcionará automaticamente para os seus vizinhos do Sahel, a leste.
Países como o Burquina Faso, o Mali e, em menor escala, o Níger são afectados por uma gama maior e mais diversificada de insurgentes e extremistas. “Para que funcione nesses países, o diálogo terá de se estender aos líderes, combatentes activos e indivíduos associados a grupos extremistas violentos — tanto homens como mulheres,” escreveram Koné e Moderan.
A ideologia também não é o único factor de participação dos extremistas.
“Muitos aderem para se protegerem a si próprios, as suas famílias ou os seus meios de subsistência ou para retaliarem contra os abusos cometidos pelas forças armadas nacionais,” escreveram Koné e Moderan. “Estes motivos reflectem, muitas vezes, frustrações sobre a injustiça social, a falta de oportunidades e o fraco acesso a serviços básicos como a água, a educação e a saúde. Estes problemas são agravados por graves défices nos serviços de segurança do Estado e nos sistemas de justiça.”
Por estas razões, a ideologia terá de fazer parte de uma estratégia mais vasta que aborde outros factores de extremismo, tais como razões económicas, de segurança, sociais e políticas, escreveram. Além disso, os combatentes de base podem ter razões diferentes das dos decisores e dos líderes para permanecer em grupos extremistas.
OS PERIGOS DOS COMPROMISSOS
A ideia de discutir as diferenças e negociar parece positiva à primeira vista, mas as potenciais armadilhas são numerosas, especialmente quando se lida com organizações extremistas violentas. Ao considerar o diálogo, colocam-se muitas questões vitais. O cientista político Alex Thurston enumera várias no seu artigo de Agosto de 2022 para o The New Humanitarian, “Peace talks with Sahelian jihadists? It’s worth a shot” (Conversações de paz com jihadistas do Sahel? Vale a pena tentar):
Será que se pode confiar nos extremistas para se envolverem por razões que não sejam meros ganhos tácticos?
Estariam dispostos a renunciar a laços com organizações terroristas globais, como o grupo Estado Islâmico e a al-Qaeda?
A pressão internacional condicionaria o potencial êxito do diálogo?
E, finalmente, o que é que as populações locais que enfrentam o perigo iminente querem realmente?
A ideia também está repleta de outros problemas. Os governos, as organizações não-governamentais e outros actores sublinham frequentemente a importância do contributo dos civis na construção da paz, escreveu Thurston. Mas os civis que vivem em enclaves assolados pela ameaça constante de violência podem estar dispostos a aceitar condições que são desagradáveis para os actores nacionais e internacionais.
“E se alguns ‘residentes locais’ estiverem dispostos a comprometer os valores liberais, como o secularismo, a igualdade de género ou o acesso universal à educação, para salvar vidas?” Thurston escreveu. “Será que as vozes locais só devem ser elevadas quando servem objectivos liberais de construção da paz?”
Por vezes, nos últimos anos, os líderes do Sahel consideraram a possibilidade de dialogar com os extremistas. Os antigos primeiros-ministros Christopher Dabiré e Moctar Ouane, do Burquina Faso e do Mali, respectivamente, consideraram a hipótese, escreveram Koné e Moderan.
Em Fevereiro de 2022, o Presidente do Níger, Mohamed Bazoum, anunciou que tinha libertado vários terroristas na esperança de iniciar conversações com os líderes extremistas que operam na região de Tillabéri, que faz fronteira com Benin, Burquina Faso e Mali, segundo a revista Jeune Afrique.
Thurston, num relatório de Outubro de 2018 para os Documentos da África Ocidental, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, avisou que fazer acordos com extremistas num país pode empurrá-los para países vizinhos. Tais acordos alcançados na Argélia e na Mauritânia pioraram as condições no Mali, argumentou.
O envolvimento do Estado também é crucial, escreveu Thurston, porque a sociedade civil — embora seja um participante importante em qualquer esforço deste género — terá dificuldade em dar “concessões ou aliciamentos significativos” sem o apoio do governo.