EQUIPA DA ADF
Quando irrompeu a guerra na região de Tigré, norte da Etiópia, em 2020, o Primeiro-Ministro, Abiy Ahmed, rapidamente ordenou que se interrompessem as ligações de internet e de telefone.
A ordem de Abiy lançou a região de Tigré para um apagão de informação, fazendo com que fosse quase impossível, para o resto do país e do mundo, saber o que estava a acontecer lá enquanto os confrontos e as violações de direitos humanos aumentavam.
A ordem de Abiy contrariou o progresso democrático que decorria no país. Também serviu de catalisador para mais protestos e confrontos.
“É como se tivessem feito voltar 30 anos o relógio,” Eyassu Gebreanenia, um residente da cidade tigrenha de Mekelle, disse à Reuters. “As pessoas estão a sofrer — mas pode ser que vocês não saibam disso porque estamos desligados do mundo. É muito deprimente.”
Desde que Abiy assumiu o poder, em 2018, a Etiópia já experimentou vários desligamentos de internet, incluindo oito somente em 2019. Estes desligamentos, muitas vezes, são justificados citando a segurança nacional ou a necessidade de combate ao terrorismo — motivos que os grupos de defesa de direitos humanos contestam.
Abiy não é o único que utiliza desligamentos da internet contra os seus cidadãos. Desde que a Guiné se tornou no primeiro país africano a impor um apagão de internet, em 2007, apagões totais ou parciais ou a redução deliberada da velocidade do acesso, conhecido como estrangulamento, tornaram-se comuns. Em muitos casos, os líderes utilizam essas tácticas para exercer controlo, particularmente diante de protestos, instabilidade civil ou para a supressão de oponentes políticos.
De acordo com o defensor da liberdade de internet, SurfShark, 80% da população do continente sentiu o impacto dos desligamentos da internet ou das redes sociais nos últimos anos. Das 90 interrupções que a SurfShark registou em toda a África, 66 estavam relacionadas com protestos ou aquilo que o grupo designou de agitação política.
Os defensores da internet inventaram um termo para designar estas tácticas online: repressão digital.
EFEITOS IMPREVISÍVEIS
Os apagões da internet espelham uma técnica de décadas atrás de silenciar a discordância através do desligamento de estações de radiodifusão e encerramento de canais de media impressos. Mas os desligamentos modernos possuem um impacto ainda maior do que os dos passados anos.
“Os desligamentos das redes causam uma série de efeitos em cascata, muitas vezes, imprevisíveis sobre os direitos humanos e o desenvolvimento económico,” escreveram os investigadores Moses Karanja e Nicholas Opiyo. Eles são co-autores, juntamente com Jan Rydzak, de um artigo sobre desligamento da internet e protestos, recentemente publicado no jornal acadêmico International Journal of Communication.
Interrompendo o comércio online, os desligamentos da internet podem causar bilhões de dólares em danos para as economias nacionais. O analista online, NetBlocks, estima que o bloqueamento do Twitter, em 2021, pelo Presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, lesou o país em 1,6 bilhões de dólares em perdas económicas e obstruiu o acesso à informação de saúde vital relacionada com a pandemia da COVID-19.
A perda de negócios e as interrupções da vida diária podem ter efeitos secundários de expandir os movimentos de protestos em vez de silenciá-los.
Durante um dos três apagões de internet do Burquina Faso, em 2021, o estudante universitário Ali Dayorgo disse à Voz América que os desligamentos impediram-no de trabalhar e fizeram com que se simpatizasse com os protestos que decorriam contra o então governo.
“Eu sinto a ira dos jovens,” disse Dayorgo.
Num golpe contra uma forma de repressão digital, o Tribunal Supremo do Zimbabwe reverteu o apagão de internet do governo, no início de 2019, que tinha intenção de suprimir os protestos relacionados com o aumento dos preços de combustível.
O tribunal decidiu que o governo não tinha autoridade para instituir o apagão, que os oponentes argumentam que tinha sido imposto para fazer a censura das notícias sobre a resposta dura do governo contra os protestos.
ESTRATÉGIAS MAIS SÁBIAS
Quando os líderes entendem os efeitos negativos dos desligamentos generalizados da internet, eles tomam medidas mais subtis para exercer controlo e suprimir a discordância.
Cada vez mais, as leis de combate ao terrorismo tornaram-se o método preferido dos líderes autoritários para fazer a monitoria do uso da internet dos seus cidadãos, rastrear os seus movimentos e, em alguns casos, agir contra os seus opositores políticos — actos que os defensores do uso da internet denunciam como sendo uma violação da privacidade e dos direitos humanos.
“Vários governos africanos abraçaram o autoritarismo digital caracterizado por medidas agressivas e sofisticadas que restringem as liberdades da internet,” investigador Paul Kimumwe escreveu numa reportagem da Colaboração em Política Internacional de TIC para a África Oriental e Austral (CIPESA, em inglês). Kimumwe escreveu sobre a repressão digital no Uganda.
A adopção rápida da tecnologia digital por África demonstrou ser uma espada de dois gumes, de acordo com Kimumwe. Mesmo numa altura em que a digitalização se expande, a capacidade de as pessoas aprenderem, ganharem dinheiro e se organizarem também oferece aos governos mais ferramentas para controlar os seus cidadãos, muitas vezes, através de automatizações e a todo o momento.
“Embora a vigilância do Estado não seja nova, ela expandiu-se drasticamente com o aumento da digitalização,” escreveu Kimumwe no relatório da CIPESA.
Lesoto, Moçambique, Tanzânia, Uganda e Zâmbia promulgaram leis com vista a confrontar a criminalidade e o terrorismo online, que também facilitam que o governo rastreie e faça repressão de actividades legítimas, de acordo com Kimumwe.
O Lesoto, por exemplo, exige que os fornecedores de serviços da internet canalizem o tráfico de internet através da Autoridade de Comunicação do Lesoto, onde este pode fazer a monitoria em tempo real, uma acção que perpetua a invasão da privacidade dos cidadãos pelo governo, escreveu Kimumwe.
No Uganda e na Zâmbia, funcionários de empresas que não se conformam com as leis das comunicações enfrentam grandes multas e cumprimento de pena de prisão. Tais penalizações elevadas podem obrigar os fornecedores de serviços a conformarem-se mesmo quando acreditarem que tais solicitações são legalmente duvidosas, de acordo com Kimumwe.
Com a rápida propagação da tecnologia móvel, os governos estão a tornar-se cada vez mais especialistas nas formas através das quais lidam com os desligamentos da internet.
Em vez de impor bloqueios gerais, os governos agora têm como alvo dos seus esforços de censura certos tipos de tecnologia. Eles podem, com recurso a throttling, reduzindo a velocidade do fluxo de informação de e para smartphones dos protestantes enquanto deixam os desktops nos escritórios das empresas intactos.
“O estrangulamento pode ser atribuído ao desejo de evitar escândalos sociais e reacções políticas por interromper as ligações enquanto se limita o que pode ser alcançado nas plataformas,” escreveram Karanja, Opiyo e Rydzak.
UM SINAL DE FRAQUEZA
Os analistas afirmam que a natureza inconstante da repressão digital não esconde um facto simples: os desligamentos e a censura motivada por razões políticas são um sinal de fraqueza do governo.
Em termos mais simples, governos fracos reprimem actividade online de que não gostam, de acordo com o autor Stephen Feldstein, que abordou a questão da censura digital no mundo no seu livro de 2021 intitulado “O Surgimento da Repressão Digital.”
Um indício importante da repressão digital é o estilo de governo, de acordo com Feldstein.
“Quanto mais autoritário um regime é, mais provável é que dependa destas técnicas,” disse Feldstein durante um debate sobre a repressão digital organizado pelo Carnegie Endowment for International Peace.
Paradoxalmente, os governos que apertam o cerco contra as vidas electrónicas dos seus cidadãos prejudicam a sua própria autoridade, obrigando que as pessoas encontrem formas de contornar os desligamentos.
Este foi o caso do apagão do Twitter na Nigéria. Milhares de utilizadores do Twitter contornaram o apagão, utilizando redes privadas virtuais ou VPNs para acederem à internet através de outros canais.
Os desligamentos extensivos das redes sociais nos Camarões (93 dias) e no Chade (16 meses) não foram capazes de impedir que os cidadãos contornassem os apagões e os revelassem ao mundo e exigissem uma mudança.
Os desligamentos da internet podem obrigar as pessoas a fortalecerem as suas redes offline para obter informação e, em caso de protestos, desenvolverem resistência. Ao impedir que as pessoas tenham um espaço online para transmitirem as suas opiniões, os governos autoritários podem, na verdade, obrigar que estas energias saiam para as ruas, onde se podem tornar violentas.
O desligamento das redes sociais da Etiópia, que tinha como alvo as regiões de Amhara e Oromia, em 2017, “fracassou completamente, não tendo sido capaz de impedir os padrões de protestos que o causaram,” observaram os investigadores. Em vez disso, ao obrigar os protestantes a estarem offline, os desligamentos vieram com um aumento nos confrontos étnicos.
Em vez de seguir uma abordagem adversa ao uso da internet pelos cidadãos, afirmam os especialistas da área de comunicações, os governos africanos podem colaborar em leis que protegem a liberdade de expressão e o acesso à informação, enquanto bloqueiam os grupos terroristas e as ameaças à estabilidade.
O ganho a curto prazo do estrangulamento ou do desligamento da internet é muito menor em relação ao prejuízo económico e à agitação social que estas acções causam, afirmam os investigadores.
“Desligar as redes de comunicações não é uma garantia de sucesso para reprimir os protestos,” escreveram Karanja, Opiyo e Rydzak.