Em quase dois anos de combates, a guerra civil do Sudão tem sido marcada por uma violência e brutalidade aparentemente incessantes. Mas um novo e perturbador relatório das Nações Unidas lançou luz sobre a extensão da violência sexual contra crianças.
Sabe-se que a violência sexual perpetrada por membros das Forças de Apoio Rápido (RSF) paramilitares e das Forças Armadas do Sudão (SAF) opositoras é galopante, uma vez que as Nações Unidas informaram que o número de sobreviventes de violência baseada no género que procuraram serviços aumentou 288% em 2024.
Num relatório de Março, a agência da ONU para as crianças analisou dados que mostravam 221 relatos de violação contra crianças em 2024 em nove Estados, incluindo 16 casos envolvendo crianças com menos de 5 anos. Os sobreviventes mais jovens relatados foram quatro bebés de 1 ano de idade.
“Crianças com apenas 1 ano de idade a serem violadas por homens armados devem chocar qualquer pessoa e obrigar a uma acção imediata,” a Directora-Executiva do UNICEF, Catherine Russell, disse numa reunião do Conselho de Segurança da ONU no dia 13 de Março.
O conflito matou dezenas de milhares de pessoas, obrigou mais de 12 milhões de pessoas a fugir das suas casas e criou a maior crise humanitária do mundo. A ONU disse que 16 milhões de crianças precisarão de assistência humanitária este ano. Em 2024, o número de mulheres e raparigas — e, cada vez mais, de homens e rapazes — em risco de violação e agressão sexual aumentou 80% em relação a 2023. Russell citou mais de 900 “violações graves” contra crianças relatadas entre Junho e Dezembro de 2024, com vítimas mortas ou mutiladas em 80% dos casos, principalmente nos Estados de Cartum, Al Jazirah e Darfur.
Segundo a ONU, estes números são apenas superficiais, dado que os sobreviventes e as suas famílias, muitas vezes, não denunciam a violência sexual devido ao estigma, à falta de serviços e ao receio de represálias dos grupos armados. O UNICEF relata que as raparigas, muitas vezes, acabam em locais de deslocação informais com poucos recursos, onde o risco de violência sexual é elevado. Das crianças sobreviventes de violação reportadas em 2024, 66% eram raparigas. Os rapazes denunciam mais raramente a violência sexual e enfrentam uma estigmatização igualmente profunda, o que dificulta a procura de ajuda e o acesso aos serviços.
“Esta é uma violação abominável do direito internacional e pode constituir um crime de guerra,” disse Russell. “Tem de acabar. A violência sexual generalizada no Sudão incutiu terror nas pessoas, sobretudo nas crianças. Estas cicatrizes da guerra são incomensuráveis e duradouras.”
Quando a porta-voz do UNICEF, Tess Ingram, esteve no Sudão a falar com sobreviventes de violência sexual, ficou impressionada com a coragem das vítimas, que suportam o pesado fardo do estigma social e o receio de represálias.
“Entrevistei dezenas de pessoas durante duas semanas, ouvindo as suas histórias sobre as suas experiências,” disse ela ao Serviço Público de Radiodifusão. “Na maioria dos casos, são crianças. São mulheres jovens que estavam a tentar sobreviver a um conflito terrível e violento, apenas para serem violadas e, em muitos casos, agredidas fisicamente e ameaçadas.
“Os seus entes queridos foram mortos à sua frente. A sobrevivente mais nova que entrevistei tinha 5 anos de idade. Isso não devia acontecer a ninguém, muito menos a crianças numa posição tão vulnerável.”
Falou com uma defensora dos direitos humanos, com o pseudónimo Omnia, que foi raptada e mantida durante 19 dias por um grupo armado.
“Havia violações diárias,” Omnia disse ao UNICEF. “Todos os dias havia violações. Todos os dias havia um crime. Sujeitavam-nos a insultos, humilhações, medo, terror e fome. Durante esses 19 dias, vivi num inferno. Cheguei a um ponto em que queria acabar com a minha vida.”
A directora-executiva de uma organização sudanesa liderada por mulheres que presta serviços a sobreviventes de violência baseada no género tentou resumir o impacto da guerra nas mulheres e nas crianças:
“Precisamos de reconhecer o problema no Sudão,” disse ao UNICEF. “Sim, é a guerra. Sim, é o conflito. Sim, é a deslocação, mas, mais importante, é uma crise de protecção e, no fundo, é uma crise de violência baseada no género. Temos de reconhecer isso.”