EQUIPA DA ADF
A recente decisão do presidente do Quénia, William Ruto, de revelar partes fundamentais de um grande empréstimo chinês, revela os termos desiguais que os países africanos, muitas vezes, enfrentam quando solicitam empréstimos da China. Em alguns casos, tais empréstimos podem colocar as suas próprias economias em risco, numa altura em que elas enfrentam elevados níveis de dívida.
Ruto deu a conhecer o valor do empréstimo inicial de 2 bilhões de dólares do Quénia, concedido pelo Banco de Exportação e Importação da China, que financiou a construção da Linha Férrea de Bitola Padrão (SGR) entre o Porto de Mombaça e Nairobi, realizada por uma empresa chinesa.
Toda a linha férrea, incluindo a ligação com o vizinho Uganda, custa 4,7 bilhões de dólares. A construção para além de Nairobi foi paralisada depois de o Quénia ter apresentado dificuldades para manter os seus pagamentos em dia.
O contrato foi assinado em 2014 pelo então presidente, Uhuru Kenyatta. Kenyatta comprometeu-se em divulgar os dados do empréstimo em 2019, mas mais tarde as cláusulas de confidencialidade do contrato tornaram isso impossível.
Em 2020, em resposta a um processo submetido pelos defensores da sociedade civil, uma decisão de um Tribunal de Recurso determinou que todo o empreendimento de 3,6 bilhões de dólares — o maior projecto de infra-estruturas do Quénia até então — era ilegal, porque as autoridades não tiveram em consideração as propostas concorrentes.
A acção de Ruto é um passo significativo em direcção à transparência, de acordo com Cobus van Staden, editor-chefe da China Global South Project.
Nas últimas duas décadas, a China emprestou aproximadamente 150 bilhões de dólares a países africanos, primariamente na forma de empréstimos comerciais envoltos em secretismo. O Quénia classifica-se entre os principais mutuários africanos da China.
“Metade dos empréstimos chineses na África Subsaariana não se encontram registados nos registos de dívidas soberanas,” escreveu a investigadora Kathleen Brown, numa análise do sistema da dívida da China.
Os empréstimos são geralmente feitos para ou a favor de empresas estatais, como a Kenya Railways Corp., com o tesouro nacional sendo o último fiador.
A abertura da SGR foi celebrada com fogos-de-artifício em 2017, mas não conseguiu pagar a si própria desde essa altura.
O estudo financiado pelos chineses que sustentaram a SGR afirmou que a linha férrea iria trazer lucros, movimentando 22 milhões de toneladas de carga por ano, ou 20 comboios diariamente — mais do que o dobro da sua capacidade operacional, de acordo com um estudo do Instituto Queniano de Investigação e Análise de Políticas Públicas.
O Quénia ordenou que toda a carga proveniente de Mombasa fosse enviada através da SGR, num esforço para fazer com que a linha férrea seja lucrativa. Esta acção teve repercussões negativas, levando a impugnações judiciais, desemprego e protestos entre empresas de transportes. Ruto retirou a obrigatoriedade quando ele assumiu a presidência.
A decisão de Ruto de divulgar o contrato da SGR foi incomum, mas não precisava de ser daquela forma, de acordo com Brown. Houve também divulgação de um pequeno número de empréstimos aos credores internacionais, apesar da exigência de sigilo por parte da China.
Manter os empréstimos chineses fora dos seus livros de registo ajuda os países africanos a parecerem financeiramente favoráveis quando se trata de solicitar empréstimos de instituições internacionais, como o Banco Mundial, que impõe restrições sobre os países de baixa e média renda, à medida que o seu fardo de empréstimos aumenta, acrescentou Brown.
“Embora os governos possam beneficiar de esconder dívidas a curto prazo,” escreveu Brown, “esconder as dívidas pode ser desastroso a longo prazo, à medida que os fardos escondidos se tornam instáveis.”
Os empréstimos secretos podem levar àquilo que o analista do Banco Mundial, Sebastian Horn, chama de “incumprimentos escondidos,” quando os países tiverem dificuldades em manter os pagamentos em dia, obrigando-os a renegociar com os credores chineses, que geralmente se recusam a dar o alívio, reduzindo o valor do empréstimo. Pelo contrário, os empréstimos, muitas vezes, são prorrogados, passando a durar mais tempo, colocando os países mais endividados a longo prazo.
Ao revelar os termos da dívida da SGR do Quénia, Ruto trouxe uma luz sobre as condições que o seu país e outros enfrentam quando fazem acordos com a China. Entre outras coisas, o contrato de empréstimo, que é marcado “Confidencial” na sua primeira página, demonstra que:
- O Quénia pagou uma taxa de juros de 2%, que é mais elevada em relação à maior parte dos empréstimos de governo para governo.
- O Quénia teve de pagar ao credor chinês uma taxa de gestão de 15 milhões de dólares pelo empréstimo, para além de uma “taxa de compromisso” multimilionária anual, paga sobre a porção do empréstimo não utilizada.
- Qualquer disputa sobre o empréstimo tinha de ser resolvida através de arbitragem na China.
- O Quénia tinha de ir para a China primeiro para adquirir qualquer coisa com o dinheiro obtido do empréstimo da SGR antes de poder adquirir de outros fornecedores.
“Apesar de ser negociado como um projecto de governo para governo, onde se espera que haja uma relação simbiótica, todos os riscos foram assumidos pelos contribuintes do Quénia,” o economista queniano, Tony Watima, disse ao jornal The New York Times. “Quer o próprio projecto reembolse o valor do empréstimo ou tenha um incumprimento, os financiadores têm garantia do seu retorno.”