No Olho Do Furacão

Mergulhado no Terror e em Convulsões Políticas, Burkina Faso Luta pela Estabilidade

EQUIPA DA ADF

Quando o sol se punha no último dia do Ramadão, um muezzin chamou os muçulmanos fiéis para oração. Eles prostraram-se de forma solene nas esteiras de oração num pátio, antes de participarem do iftar, uma refeição posta numa mesa comum e passada depois do pôr-do-sol durante o Ramadão. 

É uma tradição que remonta há séculos, mas o ambiente era incomum: a casa do arcebispo católico de Ouagadougou, em Burkina Faso. Ele tinha convidado muçulmanos locais para celebrar o dia santo em sua casa.

“Juntos devemos demolir as paredes e construir pontes,” Cardeal Philippe Nakellentuba Ouédraogo disse depois da refeição. “Demolir as paredes de ódio, desentendimento, intolerância para construir pontes. Eles vieram aqui esta noite para construir uma ponte de irmandade e tolerância para um mundo reconciliado.”

Em muitos países, um cenário como este seria impensável, mas os burquinabês orgulham-se daquilo que chamam de “mistura multicultural.” Não é raro cristãos e muçulmanos viverem lado a lado, estudarem nas mesmas escolas e até casarem-se entre si. Nos dias santos, membros de uma fé dirigem-se para a casa vizinha para oferecer uma refeição de carneiro aos vizinhos de uma outra fé.

Um soldado burquinabê patrulha um acampamento, em Dori, que alberga pessoas deslocadas internamente oriundas da região norte do país. AFP/GETTY IMAGES

Um ditado comum refere o seguinte: “Somos humanos e burquinabês antes de sermos cristãos ou muçulmanos.”

Mas essa harmonia foi quebrada nos últimos anos. Começando em 2015, grupos extremistas que atravessavam vindos do Mali, assumiram o controlo de faixas de terra nas regiões fronteiriças do norte e do nordeste do país, colocando bombas e conduzindo motorizadas para atacar civis. Cerca de 1,3 milhões de pessoas foram obrigadas a fugir das suas residências, um número igual a 6% da população.

Uma trégua na violência desde meados de 2020 até meados de 2021 trouxe esperança, mas o adiamento demonstrou ser de curta duração. De Maio a Agosto de 2021, 335 civis morreram devido aos conflitos armados naquele país, um aumento de 300% desde os anteriores quatro meses. 

O ponto mais baixo da crise foi em Junho de 2021 quando assaltantes que se faziam transportar em motorizadas invadiram as aldeias de Solhan e Tadaryat, matando 174 pessoas em dois dias. A crueldade dos ataques em que os terroristas incendiaram palhotas com pessoas dentro e dispararam contra homens presos em poços de minas deixou chocado o país que já estava atormentado.

“Burkina Faso como país está no centro das atenções dos jihadistas,” disse Mohamed Maiga, director-geral da firma de consultoria de segurança sediada no Mali, Aliber Conseil. Em Agosto de 2021, os ministros encarregues pela defesa e segurança daquele país anunciaram uma nova “visão holística” para a estratégia nacional de combate ao terrorismo. Uma abordagem puramente militar, disseram, não seria suficiente para acabar com a crise. Era altura de cavar fundo e alcançar a raiz do problema. 

Manifestantes seguram um cartaz com inscrição “Solhan Ontem, Quem Será Amanhã?” durante uma marcha para protestar a falta de acção contra a violência extremista no Burkina Faso. AFP/GETTY IMAGES

 “A resposta militar é importante e necessária, mas não suficiente,” disse o Ministro da Segurança, Maxime Koné. “Iremos estimular a nossa diplomacia. Iremos rastrear aqueles que apoiam os terroristas. Aqueles que nos ameaçam estão dentro das nossas fronteiras.”

Tais planos foram arruinados em Janeiro de 2022, quando um grupo de oficiais militares prendeu o presidente e tomou o poder, num golpe de Estado. As implicações deste golpe para a segurança eram ainda desconhecidas até ao início de 2022.

Criação da Resiliência Nacional

A vasta maioria das vítimas de ataques terroristas no Burkina Faso são civis. Desde o começo da crise de segurança em Burkina Faso até meados de 2021, houve 580 ataques perpetrados por grupos extremistas e 359 foram direccionados a civis. 

A violência causou aquilo que está a ser chamado de crise silenciosa de refugiados, com centenas de milhares de pessoas vivendo em abrigos precários e fugindo para atravessar a fronteira para a Costa do Marfim, Gana e Mali. Mais de metade dos que foram obrigados a fugir são crianças. 

Nas regiões assoladas pela guerra, a vida está permanentemente interrompida. Durante a maior parte do recente ano lectivo, 2.244 escolas de Burkina Faso estiveram encerradas devido aos ataques terroristas. A falta de estrutura deixa as crianças vulneráveis para recrutamento pelos extremistas. Muitos jovens recrutas declaram ser motivados por recompensas como dinheiro, telemóveis ou motorizadas. 

“Eles estão à espera para poderem voltar à escola,” Abdouraouf Gnon-Konde, director nacional do gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, disse à Deutsche Welle. “A escola é fundamental para criar um futuro para estas crianças.”

Antes do golpe, o país estava a embarcar num plano de cinco anos para combater a ameaça terrorista e proteger os mais vulneráveis. Isso incluía protecção de escolas; oferta de serviços adicionais para pessoas deslocadas; programas de desradicalização para extremistas dispostos a entregar as armas; e campanhas para pessoas que se encontram nas prisões e em risco de tornarem-se radicalizadas. 

O país também se comprometeu em melhorar o sistema judicial que, muitas vezes, se encontra sobrecarregado, para trazer justiça aos suspeitos terroristas. 

“Nos próximos cinco anos, devemos construir uma resiliência nacional forte contra a ameaça terrorista, através da criação de fundamentos para apoiar a capacidade de governação e de segurança nacional, de modo a proteger a população e as propriedades,” disse Koné.

Um homem lê o jornal em Burkina Faso depois do ataque terrorista em Solhan que tirou a vida de mais de 160 pessoas. AFP/GETTY IMAGES

Sucesso de Curta Duração

Nos últimos anos, as Forças Armadas do Burkina Faso (FABF) lançaram grandes esforços contra os terroristas. Em 2019, milhares de soldados que participavam da Operação Doofu, patrulharam as regiões de Nord, Centre-Nord e Sahel daquele país, para acabar com os enclaves terroristas. Em 2020, uma operação conjunta com a Costa do Marfim teve como alvo a região fronteiriça. Mais recentemente, a Operação Taanli, em 2021, reuniu forças burquinabês e nigerianas, resultando em grandes capturas de armas e morte ou captura de 100 terroristas. Mas, várias vezes, dizem os observadores, o sucesso foi de curta duração. 

“Todas estas operações permitiram que os residentes locais regressassem a um estado de relativa calma,” escreveu Moussa Banhoro, chefe do serviço de resolução de conflitos intercomunais e de alerta antecipado do Burkina Faso. “Contudo, o exército não foi capaz de consolidar os seus ganhos. Porque, depois deles, estas zonas foram alvo de ataques muito mais mortais do que antes das operações.” 

As FABF afirmaram que desejam mudar isso com uma estratégia que irá manter as suas forças próximas das populações mais vulneráveis e treiná-las em novas tácticas de combate às insurgências, concebidas para colocá-las em vantagem. 

“Precisamos de refinar e acelerar a transformação das Forças Armadas nacionais, reorganizando-as estrutural e territorialmente para fazer com que sejam mais responsivas e operacionais,” disse o antigo Brigadeiro-General Gilbert Ouédraogo quando assumiu o comando das Forças Armadas, em Outubro de 2021. “Estamos convencidos de que esta organização é uma das condições imperativas para o sucesso da luta contra o terrorismo.”

O plano iria incluir a construção de bases para guardas em lugares rurais que anteriormente estiveram sem protecção. Haveria uma enfase renovada de formação em matérias de leis humanitárias internacionais; neutralização de dispositivos explosivos improvisados; e guerra não convencional e de operações especiais.

O exército também pretendia investir no equipamento de comunicação e inteligência, tecnologia de reconhecimento e vigilância para apoiar as suas tropas. 

“Estivemos numa postura de tempo de paz por muito tempo que utilizamos as regiões militares como reservas de forças,” disse o General Aimé Barthelemy Simporé, ministro delegado burquinabê para a defesa, em Outubro de 2021. “Brevemente, iremos iniciar a reorganização para estarmos o mais próximo possível da nossa missão operacional. Iremos criar um sistema de treino que seja o mais abrangente possível. Iremos treinar muito mais.” 

Manifestantes queimam pneus em Ougadougou, Burkina Faso, após um golpe de Estado que depôs o presidente, em Janeiro de 2022. AFP/GETTY IMAGES

A Incerteza Instala-se

As FABF enfrentam acusações de abuso contra civis e mortes extrajudiciais. Depois do massacre de Solhan, membros de um grupo de defesa voluntário da cidade afirmaram que chamaram a unidade do exército estacionada próximo dali antes e durante o ataque, mas não receberam nenhuma ajuda. 

Abdoulaye Diallo, um ajudante de motorista de machimbombo que sobreviveu ao ataque, falou em nome de muitos na região. “Eu não confio nas forças de defesa e segurança; não fazem o seu trabalho,” disse à Al-Jazeera. “O país está a ser invadido por jihadistas… [e] a crise continua porque o governo não é capaz de lutar.”

Os soldados queixaram-se de uma grave falta de equipamento para combater o terrorismo. Após um ataque em Inata, onde 20 soldados foram mortos, em Novembro de 2021, a unidade informou não ter recebido mantimentos durante duas semanas e recorreu à caça de alimentos. Os líderes do golpe de Estado utilizaram esses relatos como pretexto para tomar o poder. 

Koné disse que a “trindade” do governo, forças de defesa e população deve estar em harmonia.

 “Será uma questão de mobilizar todo o país,” disse Koné. “Porque esta luta está além do nosso posicionamento político, além das nossas divisões políticas e religiosas. Este não é apenas um problema do governo, mas é um problema de todo o país.”

Nesta convulsão política, muitos cidadãos burquinabês assumiram a abordagem de ‘esperar para ver’, na esperança de um retorno à estabilidade.

O presidente do Município de Dablo, onde os agricultores não conseguem cultivar por três anos consecutivos devido a ataques terroristas constantes, disse que as pessoas anseiam por segurança. “Enquanto a segurança não for encontrada, as pessoas não podem levar a cabo as suas actividades normais nem fazer livremente os seus negócios”, disse o Dr. Ousmane Zango. “Por isso, pensamos que eles se devem organizar rapidamente para que a população possa recuperar a paz de espírito”.  


Grupos Voluntários de Defesa Podem Ajudar ou Prejudicar

Vigilantes Sancionados pelo Governo Lutam Quando a Violência Aumenta

EQUIPA DA ADF

Enquanto a ameaça de militantes islamitas continuava a propagar-se a partir do Mali para o Burkina Faso, as autoridades governamentais daquele país recorreram às forças vigilantes civis armadas para ajudar a restaurar a segurança.

Em Janeiro de 2020, o parlamento do Burquina Faso aprovou financiamento e formação para os Voluntários para a Defesa da Pátria (VDP).

“Esta lei foi votada por unanimidade pelo parlamento,” disse o então Ministro da Defesa, Moumina Cheriff Sy, de acordo com uma reportagem da Reuters. “Isso demonstra que para além das nossas diferenças de opiniões … podemos estar unidos quando se trata de defender a terra natal.”

A abordagem coloca os civis sob o controlo militar como auxiliares, na esperança de que eles irão deixar as forças nacionais livres para realizarem outras operações, de acordo com o artigo do The Defense Post. Os voluntários do grupo VDP devem ter 18 anos de idade e ser recrutados em consulta com as populações locais. Eles são treinados durante 14 dias em matérias de armas, disciplina e direitos humanos e posteriormente recebem armas de pequeno porte e equipamento de comunicação. Também passam por uma “investigação moral.”

Entre as suas funções, destaca-se o fornecimento de vigilância, informação e protecção para as populações locais durante um ataque enquanto esperam pela chegada das forças de segurança, disse Sy ao serviço noticioso burquinabê, Le Faso.

Crianças escrevem num quadro na sua sala de aula, em Dori, no leste de Burkina Faso, numa escola montada para alunos que fogem da violência extremista. AFP/GETTY IMAGES

“Não é uma questão de criar carne para canhão,” disse Sy à Al Jazeera. “Queremos evitar que estes voluntários se tornem milícias.”

Alguns membros do grupo VDP já foram mortos por milícias, incluindo durante um ataque de Abril de 2021, na cidade de Tanwalbougou, na província de Gourma, região leste do país. Homens com armamento pesado emboscaram uma patrulha e mataram três guardas e quatro voluntários, reportou a Agência Anadolu.

Dr. Daniel Eizenga, assistente de pesquisa no Centro de Estudos Estratégicos de África, disse que Burquina Faso está a tentar ser criativo e atencioso quanto à garantia de segurança em zonas distantes.

“O que eles estão realmente a tentar fazer é integrar as milícias locais que já tinham garantido alguma protecção nas suas comunidades e em tempos já estiveram em conflitos com organizações extremistas violentas,” disse Eizenga à ADF. “Eles basicamente estão a tentar formalizar aquela força milícia e a fazer isso de uma forma que irá integrá-los na grande estrutura da força de segurança de Burkina Faso.” 

Existem, contudo, críticas legítimas. Alguns preocupam-se com o facto de que armar civis coloca o risco de inflamar tendências violentas na região ou capacitar civis para procurarem vingança e retaliação em vez de protecção e paz.

Existem algumas provas de que essas preocupações são válidas em Burkina Faso. Um estudo de Março de 2021, conduzido por Clingendael, o Instituto Holandês de Relações Internacionais, indica que o recrutamento do VDP discrimina pastores e nómadas, o que tende a excluir muitos entre as comunidades étnicas Fulani. O relatório observa incidentes de ataques e outros abusos contra civis Fulani.

Se Burkina Faso for bem-sucedido com os VDP ou não, isso irá depender da força de supervisão e das medidas de responsabilização, disse Eizenga. Os grupos de insurgentes como os que atacam as regiões remotas do Burkina Faso — que Eizenga chama de “insurgência de saqueadores” — podem persistir por longos períodos. Eles tendem a ter pouco apoio local, mas enquanto continuarem e poderem obter os recursos locais, “são vistos como se estivessem a ganhar,” disse.

Eizenga disse que integrar forças locais em regiões remotas, que são de difícil acesso para as forças governamentais, oferece “uma potencial solução a longo prazo se for bem feito e desde que tenha quantidade correcta de supervisão.”

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