De Agressores A Oficiais E Cavalheiros

Como As Forças Armadas Do Gana Abandonaram Os Golpes E Abraçaram O Profissionalismo

POR DR. HUMPHREY ASAMOAH AGYEKUM

FOTOGRAFIAS DE AFP/GETTY IMAGES

EM ÁFRICA, as intervenções militares na política são uma ameaça constante. Há poucos anos, as forças militares organizaram golpes na Guiné, Guiné-Bissau, duas vezes em Burkina Faso e duas vezes no Mali. Mesmo assim, por aproximadamente quatro décadas, o Gana permaneceu uma ilha de relativa estabilidade na África Ocidental. Os membros das Forças Armadas do Gana (GAF) foram elogiados pelo seu alto nível de profissionalismo e pela sua natureza apolítica. Isto levanta a seguinte pergunta: como é que as GAF conseguem evitar o seu envolvimento em golpes?

A resposta é multifacetada. Para compreender o recentemente encontrado profissionalismo do exército ganês, temos de nos concentrar na forma como foi criado e olhar para a história destrutiva do passado do qual emergiu. As informações deste artigo baseiam-se em entrevistas sobre factos contados na primeira pessoa pelos actuais e antigos soldados das GAF.

Quebra da Ordem Militar

Nos primeiros anos após a independência, o Gana era um dos países mais propensos a golpes no mundo. Nesse período, os soldados orquestraram e executaram cinco golpes bem-sucedidos e muitas outras tentativas malsucedidas. Tais eventos não apenas derrubaram governos eleitos de forma democrática, mas também causaram instabilidade social e violações de direitos humanos. Quase todos os níveis das GAF sucumbiram à tentação de golpe. Os golpes de Estado de 1966, 1972 e 1978 foram orquestrados por oficiais militares de alta patente, como coronéis, brigadeiros-generais e oficiais de patentes superiores. Em contraste, os oficiais juniores e de outras patentes orquestraram os golpes de 1979 e 1981, causando uma quebra da hierarquia e das estruturas de comando nas GAF.

Soldados sentam-se próximo da Comissão Eleitoral, em Acra, Gana, no dia 8 de Dezembro de 2020, enquanto os ganeses esperam pelos resultados das eleições presidenciais e legislativas.

No dia 4 de Fevereiro de 1982, o timoneiro e dois oficiais navais da Base Naval de Sekondi foram assassinados. Um comodoro aposentado, que, na altura, era um oficial júnior e por pouco ele mesmo ia ser assassinado, mas escapou, recorda o caos a assumir o controlo. “As mortes repercutiram-se por todo o exército,” disse. “Todos temiam pelas suas vidas, especialmente os oficiais, porque sabíamos que o regime não faria nada por nós, porque confiava muito nos outros escalões para o seu poder.”

Esta foi uma fase baixa da história das GAF. O medo, associado às mortes, causou a quebra temporária de ordem nos quartéis, uma vez que os oficiais e outros superiores desafiavam não fazer cumprir a disciplina. Ao mesmo tempo, os oficiais juniores e de outros escalões não eram capazes de manter os padrões profissionais e de disciplina do exército.

Valores do Soldado

Depois dos assassinatos de Sekondi, ficou claro que era necessário haver mudança. Para as GAF se tornarem uma organização profissional, tinha de reintroduzir e fazer cumprir a disciplina e a hierarquia. Esta foi uma operação complexa que envolvia a emissão de directivas de liderança e prática de hierarquia, mas também levou à criação daquilo que passou a ser conhecido como a filosofia da “face humana”.

Em 1983, a junta do Conselho Provisório de Defesa Nacional (PNDC, sigla inglesa) nomeou o General Arnold Quainoo para fazer a supervisão da recuperação das GAF. Apelidado de “Soldado Búfalo” pelo seu estilo disciplinar rigoroso, o general tinha a confiança dos seus subordinados. Ele imediatamente exigiu um comportamento profissional por parte dos seus soldados. Encorajou os oficiais a demonstrarem liderança ao comandar os seus homens e proibiu que os oficiais utilizassem os soldados para tarefas não militares, como lavar e limpar os uniformes dos seus superiores. Estas intervenções marcaram o início do restabelecimento da ordem.

“O exército é centrado na disciplina; é o alicerce e o fundamento de toda a força armada. Sem disciplina, não há exército,” disse um general reformado. Colocado de forma diferente, para que a hierarquia e as estruturas internas do exército funcionem adequadamente, a disciplina tinha de ser restaurada. Isso foi feito eliminando os grupos no interior do exército que se percebesse que eram uma fonte de indisciplina, como a Companhia dos Líderes Juniores, os Guardas Fronteiras e os atletas das Superestrelas ’74, que tinham sido recrutados para competir em eventos desportivos a favor do exército. As Forças Armadas também introduziram um fórum para expressar as mágoas, conhecido como “a recepção mensal,” uma reforma do sistema judicial militar e um apelo reforçado a um modelo de valores do soldado.

Durante este período, cada vez que uma liderança militar visitasse uma base, o oficial comandante organizava uma reunião com os oficiais e homens que posteriormente representavam a hierarquia militar e a autoridade. Quainoo, cercado por oficiais, demonstrava de forma dramática a sua autoridade, e estava claro que esperava ver isso implementado em vários batalhões e regimentos.

Nos seus discursos, enfatizava que “um soldado sempre trabalha debaixo da autoridade de um oficial e respeita os seus superiores e as patentes,” recordou-se um general reformado que serviu durante esse período.

A liderança militar também enfatiza que os soldados devem viver na base de regras e regulamentos. Estes eram os valores incutidos neles durante os seus treinos no Centro de Treinamento de Recrutas e nas academias militares. A liderança enfatizava que os soldados que não respeitassem estes valores deixavam de ser soldados e tornavam-se rebeldes. “Não permitirei que um exército que está sob o meu comando se transforme num conjunto de rebeldes,” disse Quainoo, de acordo com pessoas que serviram naquela altura.

Estas demonstrações mostravam aos soldados o que a liderança militar esperava deles em termos de disciplina, respeito pelas autoridades e profissionalismo. Estas tornaram-se pedras angulares fundamentais para a transformação das GAF.

Filosofia da Face Humana

Depois das intervenções iniciais da liderança militar ao longo de vários anos, foi necessário dar outros passos. Muitos oficiais seniores bem qualificados que não concordavam com o envolvimento do exército na política demitiram-se do serviço voluntariamente ou foram obrigados a sair no início da década de 1980, deixando uma lacuna de autoridade e conhecimento. “Basicamente não éramos um exército funcional, muito menos profissional,” disse um Major-General reformado que serviu durante aquele período. O PNDC, nos seus esforços para estabilizar o exército, nomeou o General Winston Mensah-Wood, em 1990. Ele é reconhecido como o criador da filosófica da face humana, que foi decisiva para a melhoria do profissionalismo das GAF. A filosofia da face humana é considerada o antídoto para o modus operandi de “Obedecer e depois reclamar,” que prevaleceu por muitos anos nos quartéis.

A filosofia da face humana segue uma abordagem centrada no humanismo na gestão militar. Comparada à abordagem rigorosa anterior, a filosofia da face humana reconhece que o castigo nem sempre é a resposta correcta. A filosofia começa por reconhecer que o soldado é um ser humano que deve ser abordado com empatia e apoio. “O exército é uma instituição humana, com pessoas a trabalhar nele. Temos de tratar os soldados de forma a podermos obter o melhor do nosso povo,” disse um oficial de relações públicas militares ganês.

A implementação da filosofia da face humana requeria que o exército ganês ajustasse as suas práticas militares. No Gana pós-independência, até ao início da década de 1990, a maioria das patentes inferiores como soldados rasos, cabos, subtenentes e sargentos eram compostas por soldados que eram semianalfabetos ou analfabetos. Uma vez que estes soldados não sabiam ler nem escrever, tinha de se organizar paradas para que as instruções semanais fossem lidas. “Os soldados eram bons em fazer os seus trabalhos, como manobras, vigiar na guarita, treinar e coisas semelhantes, mas as maiores implicações daquilo que significa para um soldado servir a sua sociedade estavam perdidas para a maior parte deles,” observou um antigo subtenente. “Recorde-se que, a maior parte deles foram recrutados no período colonial. Eles tinham um tipo diferente de treino e, por isso, eram muito obedientes e não eram nada críticos.” Algumas vezes, eram apelidados de soldados “Buga-Buga”, um termo que é derivado da palavra Hausa para “aplicar a força.” Estes soldados da geração anterior eram conhecidos por serem brutos, rígidos e grosseiros. Uma mudança de filosofia exigia um processo mais rigoroso para recrutar pessoal de alta qualidade e elevar o padrão da formação militar.

Formação

A formação profissional militar começou como uma forma de atrair pessoal de alta qualidade para as GAF, mas ela evoluiu para uma forma de melhorar os padrões profissionais da instituição. Desde o começo da década de 1980, a procura por certificados do ensino superior tornou-se a norma nos quartéis. A justificação para esta política foi um relatório publicado pela liderança do exército, que dizia: “A sofisticação cada vez melhor das armas e de equipamento modernos, as suas aplicações e o uso irão definitivamente exigir que haja tropas com grau superior. As oportunidades deviam, por conseguinte, ser dadas às tropas para ampliarem os seus conhecimentos.”

Soldados participam do funeral de Kofi Annan, um diplomata ganês e antigo secretário-geral das Nações Unidas.

Doravante, as GAF começaram a recrutar apenas pessoas com ensino secundário para as suas fileiras, enquanto dispensavam gradualmente aqueles que tinham sido recrutados no fim do colonialismo.

A implicação desta política é que ela contribuiu para profissionalizar o exército ganês. “O nível de instrução individual dos soldados subiu drasticamente. A forma de pensar dos soldados mudou. Para ser capaz de fazer algo por aqui, actualmente, é necessário ser formado,” disse um Tenente. “Os nossos soldados passaram de analfabetos a semianalfabetos e depois a alfabetizados.”

Instituições de ensino como a Universidade do Gana, o Instituto de Gestão e Administração Pública do Gana, o Colégio de Pessoal e do Comando das Forças Armadas do Gana e o Centro de Formação Internacional de Manutenção da Paz Kofi Annan foram decisivos nesta transformação.

Esta ênfase no ensino também contribuiu para mudar a perspectiva dos soldados ganeses sobre as suas tarefas e sobre os golpes. No passado, os soldados envolviam-se abertamente na política e, às vezes, planificavam golpes nos quartéis. 

Hoje, actividades como estas foram eliminadas devido às práticas de recrutamento e treino. Além disso, os comandantes são mais flexíveis na sua abordagem para com os seus subordinados. Diferentemente do passado quando os soldados eram severamente penalizados por infracções ligeiras dos códigos de conduta, a filosofia da face humana apela a que as circunstâncias pessoais do soldado sejam tidas em conta. Dependendo das circunstâncias, os comandantes preferem reprimir a aplicar castigos severos.

Resumindo, houve uma mudança de rigidez para uma abordagem mais flexível, enquanto o ensino contribuiu para a melhoria da compreensão pelos soldados dos seus papéis e responsabilidades para com a sociedade.

Manutenção de Paz

O Gana tem uma história de manutenção da paz digna de orgulho e tem contribuído para as missões da ONU desde a década de 1960. É tipicamente um dos principais 10 países que mais contribui com tropas a nível mundial, com 2.000 a 3.000 soldados de manutenção da paz enviados pelo mundo a todo momento. Isso contribui para o profissionalismo do exército ganês de várias formas. Primeiro, os oficiais fornecem formação avançada e valiosa antes do destacamento bem como equipamento moderno. A formação anterior ao destacamento é fornecida pela comunidade internacional, como a União Europeia e os Estados Unidos, que dão formação e equipamento avaliados em milhares de dólares. Para além disso, o Gana abraçou a manutenção da paz como uma forma de dar formação contínua aos soldados nas suas carreiras. 

“A manutenção da paz é benéfica para nós,” disse um capitão de grupo. “Quando saímos, recebemos ‘treinos no terreno.’ As Nações Unidas treinam-nos no teatro. Isso melhora o nosso profissionalismo à medida que recebemos novos conhecimentos, que, quando regressamos, podemos pôr em prática.”

A manutenção da paz também expõe os pacificadores ganeses a novas ideias sobre ser soldado, como “combater insurgentes, mas também normas internacionais sobre os direitos humanos,” disse um Tenente-Coronel. A manutenção da paz mudou os pontos de vista dos soldados ganeses em relação aos golpes e à guerra, devido à exposição aos efeitos que os conflitos tiveram nas sociedades para onde eles são destacados. Nas palavras do veterano de múltiplas missões: “A guerra é difícil. É algo que não se deseja para o seu próprio país.” A arena da manutenção da paz é, desta forma, um fórum para ganhar conhecimentos militares vitais, entendimento e experiência social. Isso contribuiu para moldar o profissionalismo do exército ganês, expondo os soldados à forma como os outros exércitos são geridos.

Replicar o Modelo do Gana

O exército ganês passou por uma turbulência no seu período pós-independência devido ao seu envolvimento em golpes e na política. Estas actividades diminuíram a sua disciplina e puseram em causa o profissionalismo militar. Para ressuscitar a instituição, o exército iniciou um conjunto de medidas importantes, como a ênfase nos valores do soldado, a criação da filosofia da face humana e os destacamentos para a manutenção da paz. Algo fundamental em todas estas medidas foi a acção de atrair pessoal formado para o exército. Não existe um guião para a transformação de um exército para deixar de ser um que viola os direitos dos cidadãos e participa em golpes para ser uma força de combate profissional. Mas a experiência do Gana demonstra que um exército deve investir no recrutamento, ensino e desenvolvimento dos seus soldados. Isso permitiu a criação de uma cultura que procura servir o seu país em vez de abusar dele.  


SOBRE O AUTOR: Humphrey Asamoah Agyekum, Ph.D., é um pesquisador de pós-doutoramento do Departamento de Ciências Políticas, da Universidade de Copenhaga, Dinamarca, onde trabalha em segurança marítima e gere o projecto “Analisando a (In)segurança Marítima no Golfo da Guiné.” Ele é o autor de “From Bullies to Officers and Gentlemen: How Notions of Professionalism and Civility Transformed the Ghana Armed Forces (De Agressores a Oficiais e Cavalheiros: Como as Noções de Profissionalismo e Civismo Transformaram as Forças Armadas do Gana).”

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