EQUIPA DA ADF
Obairro de Mitchells Plain localiza-se nos arredores da Cidade do Cabo, na África do Sul, numa secção chamada Cape Flats.
Faz parte da cidade conhecida pelas suas notáveis gangues de rua, que violentamente se confrontam umas contra as outras e aterrorizam os residentes. As gangues apresentam nomes chamativos e destacados como Hustlers, Rude Boys, Ghetto Kids e Spoilt Brats. A linguagem do graffiti marca as paredes, casas abandonadas e residências.
O negócio de drogas, armas e conchas de abalone feito pelas gangues provocou guerras mortais pelo controlo de território. Em 2018, a Cidade do Cabo registou mais de 2.800 homicídios, uma taxa de cerca de 66 mortes por cada 100.000 pessoas, reportou o New York Times, em 2019.
A violência das gangues era tão má que, em Julho de 2019, o Presidente Cyril Ramaphosa convocou militares do Batalhão de Infantaria 9 SA, baseado na Cidade do Cabo, para ajudar a polícia a acabar com o derramamento de sangue no bairro de Cape Flats, comunicou a defenceWeb. Depois de dois meses, Ramaphosa enviou um segundo destacamento de 1.322 soldados, como parte da Operação Lockdown, cujas operações continuaram até Março de 2020, enquanto a pandemia da COVID-19 se alastrava em África.
A presença militar procurava trazer tranquilidade aos municípios da Cidade do Cabo, noticiou o jornal Times, enquanto ajudava escolas e outros serviços públicos a retomarem as suas operações de forma segura.
Enquanto a pandemia alastrava o novo coronavírus em toda a África do Sul, a vida começou a mudar nos municípios — e, com ela, os comportamentos dos seus membros de gangues.
COVID-19 muda o crime
Existem muitos tipos de crime organizado em África: tráfico de drogas e seres humanos, contrabando de armas, extorsões e golpes de todos os tamanhos. Muitas dessas instituições ilícitas foram asfixiadas devido às alterações e restrições resultantes dos confinamentos obrigatórios e padrões de viagens associados com a COVID-19. Mas as autoridades já estão a ver os criminosos a adaptarem-se ao novo normal.
«O bloqueio dos movimentos públicos e o encerramento das fronteiras tiveram um impacto imediato sobre as actividades dos criminosos, que reduziram ou pararam,» de acordo com o relatório de Março de 2020, intitulado «Crime e Contagio: O impacto de uma pandemia sobre o crime organizado», publicado pela Iniciativa Global Contra o Crime Organizado Transnacional. «Mas, da mesma forma, os relatórios já estão a emergir sobre grupos criminosos que exploraram a confusão e a incerteza para tirar vantagens da nova demanda por bens e serviços ilícitos. O oportunismo criminoso irá emergir ainda mais com o desenrolar da crise.”
O documento da Iniciativa Global argumenta que a pandemia provavelmente venha a afectar o crime organizado de quatro formas principais:
O distanciamento social, as restrições de viagens e outros constrangimentos limitaram a habilidade de criminosos de envolverem-se em certos actos. Pode-se esperar que se ajustem a estes constrangimentos.
A pandemia redireccionou a atenção dos agentes da lei e dos políticos, o que pode permitir que os criminosos aumentem ou redireccionem as suas actividades.
Com a crescente necessidade de equipamento de protecção individual (EPI) e outros itens médicos, as organizações criminosas que já estão a trabalhar no sector da saúde têm novas oportunidades de explorar as suas posições.
O crime cibernético está a emergir como um domínio para o crescimento do crime a longo prazo visto que as outras vias de ilegalidades ficaram limitadas ou encerradas.
Visto que os criminosos mudaram as suas tácticas, os agentes da lei e as forças de segurança tinham que se adaptar. Abaixo encontram-se alguns exemplos de como cada uma destas quatro categorias se manifestam no continente.
Criminosos ajustam-se às mudanças
No município de Manenberg, na Cidade de Cabo — uma cidade conhecida pela proliferação do crime organizado — 10 gangues grandes e cerca de 40 pequenas operam no enclave violento, de acordo com o sítio da internet da Iniciativa Global.
Duas semanas depois do confinamento obrigatório nacional, as gangues fizeram as pazes temporariamente umas com as outras e começaram a distribuir cestas de produtos alimentares aos residentes. Mas as entrevistas da Iniciativa Global com os residentes de Manenberg e outros demonstraram que os membros das gangues, por vezes, misturavam drogas e armas nas cestas de produtos alimentares. Quando não se usava a comida como disfarce para o contrabando, ela passou a ser um tipo de moeda que os membros das gangues utilizavam para apoiar e criar endividamentos para posterior recrutamento.
«Os mesmos membros de gangues que agora apoiam as ONG’s [organizações não governamentais] e entidades religiosas durante o confinamento obrigatório, através da distribuição de cabazes de produtos alimentares, são os mesmos membros de gangues que perseguem essas ONG’s e líderes religiosos em busca de cartas de referência e para testemunharem a seu favor quando eles [os membros de gangues] infringem a lei,» um oficial sénior da polícia da Cidade do Cabo disse à Iniciativa Global.
Os residentes afirmam que temem que os membros das gangues tenham um registo de quem eles estão a ajudar e um dia possam tirar vantagens do seu investimento. «Hoje, irão dar-me cabazes de produtos alimentares à frente do meu filho, mas alguns meses depois irão lembrar-lhe desses produtos alimentares e obrigá-lo a entregar-lhes os ‘bens’,» disse um residente de Manenberg, em Abril de 2020. «Esta situação vai virar-se contra nós.»
O foco dos agentes da lei
Vanda Felbab-Brown, membro sénior da Brookings Institution e especialista em ameaças à segurança, escreveu que a pandemia e as restrições a ela relacionadas provavelmente virão a mudar a forma como os recursos das autoridades policiais são empregues.
É provável que isso venha a manifestar-se na transferência de agentes da lei das zonas rurais para ambientes mais urbanos, onde haja uma maior densidade populacional. Esta mudança pode deixar as comunidades rurais «vulneráveis a crimes de oportunidade e crimes de desespero,» comentou.
Em África, isso provocou um aumento na caça furtiva para efeitos de subsistência pessoal e para tráfico internacional.
Especialistas em conservação e fiscais de parques disseram à BBC, numa reportagem de Maio de 2020, que o encerramento da indústria de turismo de safari deixou milhares de desempregados e muitos estão a recorrer à caça furtiva de animais como o antílope para o consumo.
«Desde o início da pandemia da COVID-19, a ameaça subiu em termos de pessoas que desejam praticar a caça furtiva,» disse John Tanui, da Lewa Wildlife Conservancy, um parque de 250 quilómetros quadrados, no Quénia, onde 100 escoteiros e fiscais fazem a patrulha. «Quando estes homens ficam sem emprego ou precisam de uma fonte de rendimento, podem desejar experimentar outras coisas como talvez a caça furtiva do rinoceronte, caça furtiva do elefante e vender esses troféus para o seu sustento.»
Charlie Mayhew, director-executivo da Tusk, uma organização que apoia a conservação em África, concorda. «Esta é definitivamente a maior ameaça que já vimos no mundo da conservação. Já estamos a começar a ver redundâncias significativas, perdas de emprego, em todo o sector se turismo e conservação em África,» Mayhew disse à BBC. «Então, a grande preocupação para nós realmente é que isto possa motivar um aumento da caça furtiva para carne de animais selvagens e armadilha — caçar apenas para pôr comida na mesa.»
Algumas pessoas que estão sem emprego podem recorrer à venda de partes de animais selvagens no mercado ilegal. A Global Conservation Force afirma que, muitas vezes, as unidades de combate à caça furtiva são financiadas por dinheiro angariado através de receitas das instâncias turísticas dos safaris. Com o turismo interrompido, os fiscais, muitas vezes, não têm dinheiro para fazerem a patrulha nas reservas de caça. Isso permite a livre actuação dos caçadores furtivos que traficam chifres de rinoceronte e marfim.
Outros fluxos de tráfico estão a mudar por causa da pandemia. Ian Ralby, PCA da I.R. Consilium e especialista do sector marítimo, disse à ADF que o ouro proveniente da República Democrática do Congo é movimentado em camiões em vez de aeronaves por causa das reduções do número de voos. «O espaço marítimo está a absorver alguns dos bens que os criminosos anteriormente transportariam por via aérea,» acrescentou, dizendo que as autoridades devem exercer maior controlo sobre o transporte marítimo.
Necessidades médicas apresentam oportunidades
Enquanto a COVID-19 se propagava a nível global, também aumentava a necessidade de EPI médico, que inclui máscaras faciais, protectores faciais, batas, desinfectantes e medicamentos. Ralby contou à ADF que viu a contrafacção de EPI a emergir como uma tendência criminosa, com redes a serem criadas para produzir e distribuir os itens a preços exorbitantes.
De facto, os criminosos não perdem tempo. Pouco depois de a COVID-19 ter começado a alastrar-se pelo mundo, a Interpol anunciou os resultados da Operação Pangea XIII, que decorreu de 3 a 10 de Março de 2020. A repressão resultou em 121 apreensões a nível mundial, enquanto a polícia, as alfândegas e os reguladores da saúde de 90 países, incluindo países africanos, apreenderam máscaras faciais contrafeitas, desinfectantes defeituosos e medicamentos não autorizados contra viroses, entre outras coisas.
Nessa semana, as autoridades fizeram a inspecção de mais de 326.000 pacotes e apreenderam mais de 48.000, disse a Interpol. A Pangea descobriu 2.000 links da internet que fazem a publicidade de itens relacionados com a COVID-19. As autoridades apreenderam mais de 34.000 máscaras defeituosas, itens tais como «corona spray,» entre outros produtos e medicamentos. Os inspectores também apreenderam doses não autorizadas de cloroquina, um medicamento antipalúdico, antes aventado como sendo um tratamento para a COVID-19.
«Mais uma vez, a Operação Pangea demonstra que os criminosos não têm limites quando se trata de fazer lucro,» disse Jürgen Stock, secretário-geral da Interpol. «O comércio ilícito de materiais médicos contrafeitos durante uma crise de saúde pública demonstra o seu total desrespeito pelo bem-estar das pessoas e das suas vidas.»
A Interpol comunicou que a operação encerrou mais de 2.500 sítios da internet, contas de redes sociais, locais de venda online e publicidades para produtos farmacêuticos ilícitos e que se espera encerrar mais. A operação desmantelou 37 grupos de crime organizado.
Pandemia expande o âmbito do cibercrime
Um dos subprodutos da COVID-19 é a proliferação de confinamentos obrigatórios a níveis local e nacional e os apelos ao distanciamento social. Como resultado, muitas empresas encerraram ou alteraram significativamente os seus modos de comércio.
Poucas pessoas congregam em locais públicos, as oportunidades para crime a nível das ruas tendem a diminuir em muitos lugares, escreveu Felbab-Brown para a Brokings Institution. Isso pode reduzir os crimes como assaltos porque ninguém está nas ruas, e os roubos podem diminuir porque as pessoas passam mais tempo em casa.
Contudo, com mais pessoas a abrigarem-se em casa, a oportunidade para crimes com recurso à internet aumenta. As pessoas que não podem sair de casa são mais propensas a fazer compras e a realizar outras actividades online. Em África, muitas pessoas já realizaram transacções bancárias e transferências de dinheiro com recurso a telemóveis.
O Centro Sul-Africano de Informação sobre Riscos Bancários (SABRIC), uma instituição sem fins lucrativos formada por grandes bancos para ajudar a combater o crime organizado, indicou, em Março de 2020, que os criminosos estão a explorar a pandemia, de acordo com uma reportagem da ITWeb, um sítio da internet de negócios de tecnologia da África do Sul.
Os criminosos utilizam e-mails com vírus e mensagens de texto fraudulentas para oferecer EPI, vacinas e outros produtos médicos direccionando as pessoas para sítios da internet destinados a ataques de roubo de identidade. Os e-mails, muitas vezes, aparentam ser legítimos através do uso de logotipos de empresas com grande reputação. Alguns links de phishing procuram roubar informação bancária.
«Embora alguns e-mails falsos possam ser difíceis de identificar, apelamos aos clientes do banco a pensarem duas vezes antes de clicarem em qualquer link, mesmo se o e-mail parecer legítimo,» PCA interina da SABRIC, Susan Potgieter, disse à ITWeb. «Qualquer e-mail suspeito não deve ser aberto e, de preferência, deve ser apagado.»
Oportunidades para colaborar
Ralby disse à ADF que as autoridades marítimas estão a observar mudanças na forma como os criminosos operam no mar. Os preços do petróleo, já com a tendência de baixar nos últimos anos, foram reduzindo ainda mais devido à queda na demanda à medida que os países encerravam e limitavam as viagens em todo o mundo. Por causa disso, o roubo de petróleo — uma vez generalizado no Golfo da Guiné — deu lugar ao estilo Somali de pirataria na África Ocidental que envolve sequestros para posterior pedido de resgate.
Encontrar formas para que os oficiais marítimos continuem a cooperar, especialmente através da potenciação de tecnologia de baixo custo, será fundamental para se poder avançar, afirmou Ralby. Num passado recente, as autoridades africanas gastaram centenas de milhares de dólares para realizar grandes reuniões regionais para falar sobre como podem cooperar melhor. Tais esforços envolvem despesas com hotéis, passagens aéreas e acomodação. De facto, oficiais de diversas áreas da política e da segurança fazem o mesmo.
Agora os mesmos oficiais podem aceder ao Zoom ou outra plataforma de encontros online e ter uma reunião a qualquer altura sem qualquer despesa adicional. Aquelas reuniões podem abranger oceanos e continentes, desta forma, ligando regiões com interesses comuns na luta contra o tráfico e outros crimes a nível global.
Ralby disse que em 2020 oficiais do Golfo da Guiné realizaram uma série de webinars centrados na segurança marítima durante a pandemia da COVID-19.
«E o mais importante é que não são entidades externas que estão a organizar estas reuniões,» frisou. «São os Estados africanos, ONG’s africanas, governos africanos que se reúnem para dizer, ‘Olha, temos um interesse comum nisto.’ É algo entusiasmante.»