Cães ‘Treinados’ Enfrentam Caçadores Furtivos
Cães Altamente Treinados Estão a Rastrear o Contrabando, Proteger a Fauna Bravia e Salvar Vidas
EQUIPA DA ADF
À medida que os caçadores furtivos fazem o uso de altas tecnologias com helicópteros, sedativos para animais e espingardas de alta-potência, os homens e mulheres que protegem a vida selvagem em risco de extinção usam métodos antigos — os cães.
As autoridades da área de conservação do Zimbabwe e da África do Sul dizem que os caçadores furtivos agora utilizam helicópteros para sobrevoar os parque e identificar rinocerontes e, enquanto sobrevoam, disparam dardos com drogas contra os animais para os sedar.
Uma vez alvejados, os animais ficam enfraquecidos, e os ladrões aterram e cortam brutalmente os seus chifres com recurso a moto-serras. Aqui matam sem misericórdia; os animais são deixados a sangrar até à morte. Depois, os abutres aglomeram-se para os tirar da sua miséria — o que, por sua vez, alerta as autoridades.
A amplitude do problema é devastadora. Por exemplo, o Parque Nacional Kruger, na África do Sul, gasta 13,5 milhões de dólares anualmente em esforços no combate contra a caça furtiva. Possui a força de combate contra a caça furtiva mais treinada e dedicada de África. O serviço de notícias sobre conservação MongaBay reporta que o parque foi dividido em 22 secções, cada uma com o seu próprio fiscal e uma equipa de fiscais no terreno. Os fiscais têm apoio de helicópteros e das Forças de Defesa Nacional da África do Sul. Mas ainda assim, com todo este dinheiro gasto e com todos estes esforços, centenas de rinocerontes são caçados clandestinamente todos os anos no Kruger. Assim, as caças furtivas baixaram recentemente, em parte, porque restam cada vez menos rinocerontes para caçar, tendo o número dos mesmos sofrido um declínio no Kruger desde 2011.
Enquanto os oficiais responsáveis pela fauna bravia procuram novas formas de proteger rinocerontes, elefantes e outros animais dos caçadores furtivos, eles cada vez mais confiam no uso de cães altamente treinados — “cães com graus de mestrado,” como alguns os chamavam.
Os cães vêm de outras partes do mundo para se juntarem à missão. A Irlanda enviou um velho Pastor-holandês de 14 anos chamado Scout para uma reserva da África do Sul. O jornal The Independent, do Reino Unido, reportou que esses cães, devidamente treinados, são avaliados em mais de 30.000 dólares e podem ser utilizados para “proteger os rinocerontes, os fiscais do parque e os demais trabalhadores da reserva.” Embora o cão da Irlanda tenha sido altamente treinado, ele começou a fazer um curso de treino intensivo na África do Sul para estar preparado para o seu novo ambiente.
Depois temos o Drum, que tinha 10 meses de idade em 2019 quando chegou ao Ol Peteja Conservancy, no Quénia. A instituição de caridade Animals Saving Animals treinou o Spaniel, vindo do Reino Unido. O cão, disse o Conservancy, provou ter “habilidades excepcionais” para detectar munições e armas. Na essência, o seu trabalho envolve a busca em veículos.
“Eu escolhi-o a dedo numa ninhada quando ele tinha 8 semanas de idade,” disse o adestrador Daryll Pleasants ao Conservancy. “Ainda enquanto cachorrinho, andava sempre a saltitar por aí, e isso é perfeito para o trabalho; é um papel muito activo.”
A Animals Saving Animals foi fundada em 2016 e agora adestra cães para serem usados em todo o mundo. Pleasants acredita que os seus cães ajudaram a reduzir a caça furtiva em algumas regiões em até 72%.
CÃES PROVENIENTES DE TODO O MUNDO
Cães de várias raças, incluindo Pastor-belga Malinois, Weimaraners, Springer Spaniels Ingleses, Pastores-alemães e Perdigueiros alemães de pêlo curto, foram enviados para África para perseguirem caçadores furtivos, farejar contrabando em aeroportos e dar assistência em pontos de paragem de veículos.
Sob boas condições, um cão pode detectar a presença de um caçador furtivo até um quilómetro de distância. Isto faz com que os oficiais do combate contra a caça furtiva estejam melhor equipados para rastrear à noite e cobrirem mais espaço.
A African Wildlife Foundation iniciou o seu programa, Caninos para a Conservação (Canines for Conservation), em 2014. Desde então, os cães participaram em 400 apreensões de material ilegal proveniente da caça furtiva, tais como marfim, chifres de rinoceronte e escamas de pangolim. A maior parte dos produtos eram levados para a China e outras partes do sudoeste asiático para serem utilizados em falsos produtos medicinais chineses. Os trabalhadores do sector da fauna bravia que nunca tinham trabalhado com cães, a não ser talvez com cães de guarda, passaram a respeitar os animais.
“Manipular cães passou a ser um trabalho procurado entre os funcionários das autoridades do sector da fauna bravia na Tanzânia, Quénia, Uganda, Moçambique e, mais recentemente, Camarões,” escreveu Albert Schenk, da Wildlife Conservation Society, na sua página do Tweeter. Os manipuladores de cães geralmente aprendem a trabalhar com eles durante um período de 8 a 10 semanas. O Director da Caninos para a Conservação, Will Powell, disse à BBC que o programa é uma parceria público-privada com governos que os ajudam a desenvolver unidades caninas nas suas organizações de conservação da fauna bravia.
“Isso inclui estratégia, procedimentos de operação padrão e protocolos veterinários,” acrescentou. “Com a ajuda deles, seleccionamos fiscais e treinamo-los como manipuladores de cães localizadores.” Powell escolhe os seus cães na Europa, em países que já têm uma cultura de trabalhar com cães. A sua carreira como adestrador de cães começou quando os ensinava a detectar minas terrestres.
A primeira turma da Caninos para a Conservação graduou em Julho 2015, juntamente com manipuladores dos Serviços do Sector da Fauna Bravia do Quénia e da Divisão da Fauna Bravia da Tanzânia. Os cães foram enviados para trabalhar em aeroportos primários e portos marítimos dos dois países. Desde Janeiro a Agosto de 2016, equipas de cães sediadas no Aeroporto Jomo Kenyatta, no Quénia, descobriram mais de 26 esconderijos de marfim e escamas de pangolim.
CÃES AGRESSIVOS PARA A PERSEGUIÇÃO
Os cães de Powell são rastreadores, não são cães para atacar. Mas os adestradores de outras organizações, às vezes, seguem uma abordagem diferente. No Zimbabwe, os cães treinados por Pleasants são equipados com armadura para autodefesa.
Em 2018, dois cães com armadura, Polaris e Rogue, rastrearam caçadores furtivos e cobriram território suficiente em uma hora na escuridão para encontrar os homens.
“Os caçadores entraram em pânico, deixaram cair o seu equipamento, incluindo munições de calibre pesado e renderam-se,” reportou o The Independent, do Reino Unido. “Antes de anoitecer, a equipa da caça furtiva interceptou e apreendeu uma gangue e recuperou armamento perigoso.”
“À noite, quando os nossos olhos se tornam inúteis, é quando o nariz do cão realmente nos ajuda,” disse um adestrador de cães ao site de notícias Insider. “A ideia é de ter a equipa suficientemente perto do caçador para que depois se consiga fazer a apreensão.”
MALINOIS VERSÁTIL
A raça belga Malinois, que é semelhante aos Pastores-alemães, provou ser útil no rastreamento de caçadores furtivos por causa da sua inteligência, força, agilidade e, em alguns casos, a força da mordida. A raça já foi utilizada em operações militares em todo o mundo e como cão de guarda. Alguns adestradores dizem que um cão e o seu manipulador podem cobrir uma área 60 vezes maior do que a área coberta por um fiscal sem cão.
Conraad de Rosner, fundador e director da K9 Conservation, é conhecido pelo seu trabalho com Weimaraners e Malinois. Ele disse, à Africa Geographic, que utiliza Weimaraners para rastrear animais, detectar restos de animais e capturar animais em armadilhas e localizar animais feridos. Os seus Malanois costumavam rastrear suspeitos humanos, detectar armas de fogo e munições e utilizar a força, se for necessário.
“Embora ambas as raças sejam classificadas como ‘cães de patrulha’, as suas funções de alguma forma são diferentes, mas, muitas vezes, as suas habilidades complementam-se e eles ajudam-se um ao outro no terreno,“comentou. “Por essa razão e dependendo da situação, dois fiscais, cada um com uma raça de cão diferente, são, às vezes, enviados para trabalhar juntos. Todos os nossos cães estão treinados para fazer o trabalho de protecção e são capazes de apreender um suspeito caso haja necessidade. Estes cães são treinados especialmente para morder ou para apreender um suspeito apenas ao serem comandados e para deter um suspeito com uso de força mínima.”
Todos os adestradores dizem que é essencial não deixar os cães sobreaquecerem. Os cães, principalmente da Europa, têm de ser protegidos do calor que nunca conheceram antes. Alguns vestem coletes à prova de balas Kevlar, cujo preço inicial é de 500 dólares. De Rosner disse que existem empresas que agora estão a testar coletes à prova de bala leves para cães, com uma massa gelatinosa que pode ajudar a regular a temperatura do cão em ambientes quentes ou frios.
Uma outra grande ameaça para os cães é a doença do sono, transmitida pela picada da mosca tsé-tsé. Pode matar os cães se não for detectada precocemente. Os manipuladores vão até aos extremos para proteger os cães das moscas, especialmente à noite. Os cães quase sempre necessitam de manutenção. Devem ter casas especiais para os proteger e alimentam-se de ração de alta qualidade. Mesmo assim, são económicos.
“Embora os cães não sejam uma solução mágica na luta contra a caça furtiva, eles são um grande multiplicador da força de segurança,” disse Pleasants, da Animals Saving Animals, à BBC Earth. “Um cão é capaz de garantir a segurança da mesma extensão de área que fariam sete fiscais.”
‘Estes são Cães Fortes’
Já houve cerca de 400 apreensões de produtos ilegais provenientes da caça furtiva desde que o programa Caninos para a Conservação começou. Fundada pela African Wildlife Foundation, a organização começou a operar em 2011. O Director da Caninos para a Conservação, Will Powell, que vive na Tanzânia, falou com a ADF sobre os cães da sua organização.
ADF: Que tipo de cães utiliza para detectar caçadores furtivos e produtos de contrabando.
Powell: Temos 50 cães localizadores. Existem três tipos. Existem cães localizadores, que são utilizados em postos de controlo de aeroportos e nas fronteiras. Os cães rastreadores são utilizados no mato. E existem cães para ataque, que nós não utilizamos.
A nossa abordagem para rastrear os caçadores furtivos não é de deixar os cães agitados, e depois apanharem o inimigo e mordê-lo. Estes cães, muitas vezes, ficam sobreaquecidos. Os nossos adestradores são treinados para serem muito mais relaxados. Eles podem manter os cães a rastrear durante o dia todo. Durante o rastreamento, os cães têm algum tempo para descansar e beber água. Se encontrar alguma sombra, mas ainda não for o tempo de descanso, tem de forçá-los a descansar na mesma.
Se tiver um caçador de rinoceronte no norte do Quénia ou na África do Sul, é uma corrida — é uma corrida desenfreada para que o caçador saia dali a correr. Algumas vezes, é muito tarde para apanhar o caçador, mas fica a mensagem de que o risco de ser apanhado é muito mais alto por causa dos cães. No (Parque Nacional de) Serengeti, tivemos cães durante oito anos. Nos últimos seis anos, nenhum elefante foi morto. Se alguém caçar alguma coisa será perseguido até a casa e apanhado.
ADF: Que raças de cães vocês utilizam?
Powell: Utilizamos vários tipos de cães — Malinois e alguns Pastores-alemães, Perdigueiros-alemães de pêlo curto, cães-farejadores-de-Hanôver.
Temos um cão que seguiu os rastos de um caçador furtivo mesmo depois de terem passado 6 dias e meio. É quase impossível quando os rastos são tão antigos assim. Quando a equipa encontrou o caçador furtivo, ele pensou que tivesse sido feitiçaria. Ele tinha matado um elefante e escondido o dente no quintal de um vizinho, debaixo de um pouco de estrume. Mesmo assim, o cão identificou o cheiro e recuperou o marfim. Era um Pastor-alemão — eles têm um processo de pensamento. É possível conversar com um Pastor-alemão.
ADF: Uma reportagem anotou que embora estes cães não sejam treinados para farejar tartarugas roubadas por caçadores furtivos, um cão consegue encontrá-las mesmo assim.
Powell: Quando sentem o cheiro de odores biológicos grandes, eles mudam de comportamento. Um cão sentiu o cheiro de alguma coisa, por isso, o manipulador verificou a pasta [que um viajante carregava]. Eles farejam coisas para as quais não tenham sido treinados para encontrar — tartarugas, corais, madeira.
Temos um problema com o comércio de carne de caça no Parque Nacional de Serengeti. Bois-cavalos e Zebras são mortos todos os dias.
ADF: Onde adquire os seus cães?
Powell: Escolhemos os nossos cães na Europa. Os cães vieram da Holanda, República Checa, França, Bélgica, Hungria e Polónia. Quando os escolhemos, brinquei dizendo que eles já são licenciados antes mesmo de nós os treinarmos.
A selecção apropriada dos cães é parte da estratégia. Começamos com um Kong, que é um brinquedo normal para cães. É um instrumento muito bom para ensinar os cães como rastrear. Eles têm de gostar do Kong. Eu escondo o brinquedo em lugares diferentes. Fazemos testes do ambiente, observando como se comportam em lugares diferentes.
Depois de os adquirirmos, os treinamos por dois ou três meses antes de terem manipuladores. Depois disso, recebem treinos de oito a 10 semanas. Os nossos cães são sociais, mas independentes. Eles vivem em canis.
Não é uma regra estabelecida de que um cão em particular será manipulado por um certo manipulador. Temos cães aqui que podem ser manipulados por qualquer manipulador. Escolhemos os cães que são à prova de manipuladores. E ensinamos os manipuladores a amar os cães.
Ensinamos os manipuladores o amor, o cuidado e a afeição. Tentamos ter cães que não são tão necessitados, mas também cães que não são tão agressivos.
Os cães rastreadores do Serengeti são mantidos em canis à prova de mosca tsé-tsé. Colocamos alvos para a mosca tsé-tsé; as moscas são atraídas para o azul-escuro. Os nossos alvos são impregnados com insecticida.
As picadas da mosca tsé-tsé causam a doença do sono. As maiores ameaças para os nossos cães são as moscas tsé-tsé e o calor. Os nossos cães são mais facilmente afectados pelas moscas tsé-tsé do que por humanos. Quanto ao que diz respeito a moscas tsé-tsé, os cães são os canários nas minas. Estes cães são fortes; têm estado no terreno a vida inteira.
Os nossos manipuladores levam os cães para caminhadas, cuidam dos cães e fazem avaliações do seu estado de saúde. Tivemos dois cães que reformaram depois de sete anos no terreno, e eles nunca foram picados por moscas tsé-tsé.
Os manipuladores de Masaai, na Tanzânia, param e deixam os seus cães descansarem sempre que encontram uma sombra, mesmo antes de ser necessário haver um descanso. É melhor refrescar as baterias antes de ficarem totalmente gastas.
Um dia tivemos um cão que rastreou um caçador furtivo durante oito horas ao longo de um rio. Depois trouxemos um segundo cão. Este último teve um trilho de dois minutos antes de cruzarmos com o caçador furtivo.
Um dos nossos cães, Jerry, tem 14 anos de idade. Trabalhou como localizador durante oito anos. Reformou para viver numa boa casa e boa família em Arusha. A vida para estes cães pode ser muito boa na reforma. Passar tempo numa praia com areia branca na Tanzânia não é nada mau.
Existem alguns riscos para os manipuladores. Não queremos que sejam identificados. As suas faces são escondidas e viajam em veículos com vidros fumados. Se forem muito bem-sucedidos, estão em risco.
As pessoas questionam a eficácia das equipas que não fazem descobertas regularmente. Mas não deve ser assim. Desde que os nossos cães estiveram no aeroporto de Moçambique [em Maputo], a palavra que se houve nas ruas é de que não se pode transportar nada ilegal através do aeroporto porque será apanhado pelos cães. Nada disso! É um efeito profilático — não apreendemos nada porque os cães convenceram a todos que serão apanhados.
ADF: Fale um pouco sobre como são as coisas no terreno.
Powell: Quando você é um caçador furtivo no terreno, pode ser perseguido por cães durante todo o trajecto até à sua casa. Nós recolhemos a areia da pegada. Se perdemos o rasto, utilizamos o senso comum e vamos para a próxima paragem ou aldeia, até a uma distância de 20 quilómetros. Lá, nós apresentamos a areia ao cão de novo. Na segunda ou terceira aldeia, o cão apanha o rasto. Nós vamos ter com o caçador furtivo e dizemos “amigo, vem connosco.” Eles pensam que é feitiçaria.
Nós fazemos filas onde alinhamos os suspeitos. Os cães irão identificá-los. Os furtivos começam a contar toda a sua história.
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