EQUIPA DA ADF
O jornalista centro-africano, Ephrem Yalike-Ngonzo, recorda a primeira vez que foi abordado por um russo chamado Micha, que lhe ofereceu 200.000 francos CFA (cerca de 320 dólares) por mês para divulgar desinformação e propaganda para o Kremlin.
O ano era 2019 e o dinheiro era mais do dobro do seu salário como chefe de redacção de um site de notícias local pró-governo chamado Le Potentiel Centrafricain.
“Nos órgãos de comunicação centro-africanos, poucas pessoas ganham mais de 150.000 francos CFA (cerca de 240 dólares),” Yalike disse à Radio France Internationale.
Yalike expôs a vasta operação de desinformação da Rússia na República Centro-Africana (RCA) como parte de uma investigação de dois anos levada a cabo pela Forbidden Stories, um grupo de jornalistas de investigação que se associou a 10 parceiros de comunicação social, incluindo o jornal francês Le Monde e a RFI.
“É importante para mim partilhar esta história para que se faça justiça,” disse à The Associated Press num artigo de 21 de Novembro. “Para denunciar o desrespeito pelos direitos humanos e expor o sistema de desinformação que pode ser replicado noutros países.”
A Forbidden Stories identificou “Micha” como Mikhail Mikhailovitch Prudnikov, um agente russo com ligações estreitas aos infames mercenários do Grupo Wagner. Durante três anos, Yalike escreveu artigos que elogiavam os mercenários russos e o governo militar da RCA.
Deixou de trabalhar no Le Potentiel no início de 2020, quando Prudnikov o contratou para dirigir as relações do Grupo Wagner com os órgãos de comunicação locais por 500.000 francos CFA (mais de 800 dólares) por mês. Recebeu 30 smartphones, que distribuiu por jovens que foram escolhidos como influenciadores em plataformas das redes sociais para partilhar, comentar e “gostar” das notícias falsas do Grupo Wagner.
Yalike e Prudnikov encontravam-se regularmente no campo militar de Roux, o quartel-general do Grupo Wagner na capital, Bangui, para coordenar uma vasta e sistemática máquina de desinformação.
Prudnikov pagava-lhe em diferentes locais: na base, num hotel da cidade ou na Rádio Lengo Songo, uma estação de rádio criada e financiada pelo Grupo Wagner. Yalike disse que Prudnikov também lhe dava dinheiro para distribuir a outros escritores locais cujos trabalhos ele coordenava. Pagou a editores para colocarem as notícias falsas e pagou a directores de estações de rádio para apresentarem “especialistas” que também eram pagos para partilharem as suas opiniões pró-russas.
Yalike organizou manifestações para dar a impressão de que o povo centro-africano se opunha à França, às Nações Unidas e ao Ocidente. Na base do Grupo Wagner, viu os russos utilizarem uma máquina de impressão para fazer cartazes e dísticos para as manifestações que financiavam.
“Estas manifestações nunca emanaram da vontade do povo,” disse à RFI. “São sempre orquestradas. Dei o dinheiro a um dos líderes para que ele o pudesse redistribuir. Normalmente, são 2.000 francos por jovem. Durante estas manifestações, devo também convidar os meios de comunicação social locais a virem cobrir e transmitir a situação. A cada órgão de comunicação social dou 10.000 francos.”
Entre as suas responsabilidades, Yalike também trabalhou para reprimir as críticas ao governo. Com o tempo, desiludiu-se com o trabalho e mudou de ideias.
“Apercebi-me que era contra a minha consciência,” disse à AP. “Aquilo não era jornalismo. … Estavam a obrigar-me: deves fazer isto, deves escrever sobre isto.”
Contratados em 2018 para proteger e apoiar o regime de Faustin-Archange Touadéra, os mercenários do Grupo Wagner foram alvo de acusações credíveis de crimes de guerra, atrocidades e violações de direitos humanos contra civis centro-africanos.
O Grupo Wagner aproveitou-se da fragilidade das instituições e do exército da RCA para desenvolver “um projecto de captura do Estado,” de acordo com um relatório da organização de investigação The Sentry. Os mercenários do Grupo Wagner treinam o exército em tácticas de tortura, incluindo o corte de mãos, a remoção de unhas e a queima de pessoas vivas, de acordo com o relatório.
Yalike foi incumbido de encobrir os abusos e as atrocidades cometidos pelos combatentes do Grupo Wagner. Nessa altura, queria demitir-se, mas tinha medo dos seus superiores russos.
“Tudo começou com o destino trágico reservado a cinco camionistas do Grupo Wagner acusados de roubo de combustível e violentamente torturados em Ndachima antes de serem transferidos e encarcerados na prisão do campo de Roux durante quase um ano,” o editor Alain Nzilo escreveu num artigo na sua página da internet, Corbeau News, no dia 5 de Março de 2024.
Fontes militares disseram a Corbeau que o Grupo Wagner suspeitava que Yalike tinha cometido traição ao divulgar pormenores da história de Ndachima.
“Acusaram-me de tê-lo escrito,” disse à AP. “Havia muitas ameaças ocultas. Temia pela minha vida.”
Yalike decidiu fugir do seu país depois de Prudnikov o ter levado para fora de Bangui, o ter interrogado sob a mira de uma arma e o ter ameaçado de morte. No início de 2024, Yalike conseguiu tirar a mulher e o filho de lá antes de atravessar para um país vizinho e sair do continente para sempre.
“Quando se entra neste sistema, é difícil sair,” disse à RFI.
Outros jornalistas da RCA continuam a trabalhar para os russos, mas Nzilo enfatiza a história de Yalike como um conto de advertência.
“Esta série de tragédias põe em evidência os perigos que esperam aqueles que se aventuram a trabalhar para o Grupo Wagner,” escreveu.
Agora, em segurança no estrangeiro, Yalike diz sentir vergonha e arrependimento, mas sente-se animado por acreditar que a propaganda russa falhou no seu objectivo mais básico.
“As pessoas não têm uma visão positiva dos russos,” disse à AP. “Mas toda a gente tem medo de o dizer.”