EQUIPA DA ADF
Quando o Ministério da Saúde do Burquina Faso declarou uma epidemia de dengue, no dia 18 de Outubro de 2023, já havia milhares de casos e centenas de mortes. A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmou que este foi o surto mais mortífero da doença registado naquele país da África Ocidental nos últimos anos.
Seguiu-se rapidamente um outro surto perigoso: um dilúvio de desinformação russa.
Os utilizadores das redes sociais, incluindo muitos que se acredita serem apoiados pelo governo russo, começaram a atacar o trabalho da Target Malaria, uma organização de investigação sem fins lucrativos que luta contra doenças transmitidas por mosquitos. O grupo, que é apoiado pela Fundação Bill & Melinda Gates, tem trabalhado para prevenir a malária no Burquina Faso desde 2012.
“Mas um exército de falsos utilizadores das redes sociais acusou falsamente o grupo de espalhar doenças, de transformar mosquitos em armas e de criar armas biológicas, ao mesmo tempo que elogiava a Rússia,” segundo a Agence France-Presse.
Perante a campanha de desinformação organizada, a Target Malaria foi forçada a responder classificando os ataques de “falsos” e “profundamente lamentáveis.” Os especialistas afirmam que a campanha de desinformação é apenas uma parte de um esforço concertado e sistemático da Rússia para semear a desconfiança em instituições básicas como os cuidados de saúde, o governo, as Nações Unidas e até as organizações humanitárias internacionais.
No centro da campanha russa estava a Iniciativa Africana, um meio de comunicação online com profundas ligações ao falecido chefe do Grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, que construiu uma rede obscura de mercenários, desinformação e operações mineiras em África antes de morrer num misterioso acidente de avião em Agosto de 2023. Na sequência da morte de Prigozhin, o Ministério da Defesa da Rússia assumiu as operações do Grupo Wagner no continente e rebaptizou-o com o nome de Africa Corps.
Em Setembro de 2023, no momento em que aumentavam os casos de dengue no Burquina Faso, a televisão militar russa Zvezda transmitiu uma notícia anunciando o lançamento da Iniciativa Africana.
Artyom Kureev, director-geral da Iniciativa Africana, afirmou que a sua organização pretende tornar-se a “ponte de informação entre a Rússia e África.” Mas o seu verdadeiro objectivo é disfarçar e espalhar a desinformação na esperança de que seja vista como uma reportagem independente e não como uma campanha de propaganda dirigida por Moscovo.
A OMS comunicou um aumento do número de casos de dengue, que passou de seis em Julho de 2023 para “uns impressionantes 708 casos” até 9 de Setembro, e apelou à colaboração com parceiros como a Target Malaria. “Dada a taxa de positividade … é imperativo manter e reforçar as medidas de saúde pública,” afirmou a OMS num boletim semanal.
As redes de desinformação russas tornaram essa tarefa muito mais difícil.
O Dr. Mark Duerksen, investigador associado do Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS), passou anos a analisar o impacto crescente das campanhas de desinformação nos sistemas de informação em rápida mudança do continente. Ele classificou a recente campanha de desinformação no Burquina Faso como a provável “próxima vaga” da Rússia.
“Há indícios de que a Iniciativa Africana esteja a analisar a saúde pública como algo passível deste tipo de guerra de informação,” disse à ADF. “Parece que encontraram outro ponto fraco que vão explorar. É mutio cínico, porque vai dificultar os esforços de saúde pública no continente. Vai fazer com que menos pessoas tenham acesso aos cuidados de saúde.”
A Desinformação Russa no Sahel
A guerra híbrida combina formas convencionais de conflito armado com instrumentos estratégicos não convencionais, incluindo operações de informação para influenciar e subverter ou reenquadrar acontecimentos. Duerksen diz que faz parte do “conjunto de serviços” que a Rússia oferece a regimes autocráticos isolados, como as juntas militares que assumiram o controlo do Burquina Faso, do Mali e do Níger nos últimos anos.
Em primeiro lugar, a Rússia identifica e inflama as queixas locais. No Sahel, a maior vulnerabilidade é a ineficácia das forças de segurança que enfrentam uma vaga de organizações extremistas violentas em expansão — grupos regionais com ligações à al-Qaeda e às organizações terroristas do grupo Estado Islâmico.
Em seguida, os operativos russos cultivam influenciadores locais que espalham propaganda e desinformação, enquanto constroem uma rede nas redes sociais e promovem manifestações para dar a aparência de apoio popular. Depois, chegam os mercenários russos que lideram o treino e as operações de combate ao terrorismo, estabelecendo o seu pagamento através de contratos de extracção de minerais. Na sequência das suas operações militares no Mali e na República Centro-Africana, o Grupo Wagner foi acusado de forma credível de numerosos massacres de civis, atrocidades, violações de direitos humanos e outros crimes de guerra.
Quando os mercenários estiverem no terreno, as campanhas de desinformação e de influência podem ser declaradas um êxito.
Como chefe de investigação da Logically, uma empresa de tecnologia que acompanhou uma onda de narrativas pró-russas e antifrancesas relacionadas com o Níger em torno do golpe militar do país em 2023, Kyle Walter há muito que suspeita que o financiamento russo e as redes de comunicação social são responsáveis por falsas manifestações populares. O New York Times noticiou que Ahmed Bello, o presidente de um grupo da sociedade civil nigerina cujo acrónimo se escreve Parade, distribuiu cerca de 70 bandeiras russas em vários protestos em Niamey e que o governo russo financiou actividades semelhantes no Mali através de intermediários.
“É com eles que trabalhamos para desenvolver a expansão da ideologia russa em África,” Bello disse ao Times.
Investigadores da Microsoft identificaram o Parade como sendo obra do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, e um alto funcionário militar europeu disse ao Times que o grupo é uma capa das operações apoiadas pelo Kremlin no continente.
“É todo um conjunto de ferramentas,” disse Duerksen, explicando o projecto do Grupo Wagner. “Pode ajudar [as juntas] a manterem-se no poder e a manter a oposição e os jornalistas à distância.
Quando a desinformação que estão a oferecer ajudou a levar estes regimes ao poder, no caso das juntas militares [do Sahel], estão interligados com esses regimes.”
Num relatório de Março de 2024, elaborado com base no trabalho de mais de 30 investigadores e organizações africanas, o ACSS identificou a Rússia como o principal patrocinador da desinformação em África.
“A Rússia está ligada a 80 das 189 campanhas que identificámos e mapeámos, o que representa 40% destas campanhas de desinformação,” disse Duerksen. “Este tipo de guerra cognitiva é uma estratégia que vem do Ministério da Defesa russo. Não se trata apenas de um projecto paralelo. Esta é uma ênfase clara para os militares russos, e eles fazem-no de forma bastante sistemática.”
Enquanto o governo russo negava anteriormente quaisquer ligações com as operações dos seus grupos mercenários, a passagem da rede do Grupo Wagner de Prigozhin para o Africa Corps, controlado pelo exército, é profunda na medida em que a Rússia é agora responsável pelas suas acções.
“Quem é que vai ficar com essa responsabilidade com algum tipo de prestação de contas?” Duerksen indagou. “O Grupo Wagner sempre lhes deu a possibilidade de garantir que não estavam associados ao que quer que estivessem a fazer. Agora os russos detêm a responsabilidade.”
O Projecto do Grupo Wagner
O Grupo Wagner foi o principal veículo da Rússia para as suas ambições em África desde 2017, quando Prigozhin e os seus mercenários chegaram e começaram a construir uma rede em expansão.
“Estavam a tentar uma série de tácticas de desinformação diferentes, a promover uma série de narrativas diferentes, até mesmo narrativas contraditórias, como o apoio a dois candidatos políticos ao mesmo tempo,” disse Duerksen. “Parece que estavam a fazer uma espécie de estudo de mercado, muita experimentação.”
Uma das estratégias mais eficazes é a utilização das línguas locais nas redes sociais e a contratação de pessoas locais para espalhar a desinformação.
“Perceberam que o mensageiro é importante, que ter alguém que fale a língua local, que esteja realmente em sintonia com os problemas locais ou que fale o dialecto local é muito melhor do que um canal do Grupo Wagner no Telegram baseado em São Petersburgo,” disse Duerksen. “Vêem-nos como a vanguarda da sua influência e como podem levar grupos para as ruas.”
No Sahel, com a sua complicada história francófona, a Rússia encontrou um consumidor vulnerável e disposto a consumir a sua desinformação.
“Havia problemas de segurança,” disse Duerksen, “por isso, eles martelaram estas mensagens e tentaram distorcer o discurso político para este tipo de desilusão, este cinismo, este tipo de energia tóxica, não a canalizando para nada de construtivo ou produtivo, mas para a apologia de golpes militares. Actualmente, é uma espécie de política niilista.”
Duerksen afirmou que parte do projecto de desinformação da Rússia consiste em concentrar-se em três públicos.
O primeiro grupo é constituído por pessoas locais que consomem conteúdos de desinformação, adoptam-nos e tornam-se amplificadores e portadores de padrões. “São eles que estão na rua a segurar bandeiras russas,” disse Duerksen. “Trata-se de um pequeno grupo, aqueles que se tornaram efectivamente os fornecedores locais.”
O segundo grupo é mais vasto, com pessoas locais para quem os conteúdos de desinformação são concebidos para confundir e resultar num desinteresse pela política e pelas questões sociais.
“Muitas vezes são intimidados. Se tentarem expressar uma opinião ou fazer uma pergunta em alguns destes espaços de informação, o exército de trolls cai sobre eles.”
O terceiro grupo é constituído pelos meios de comunicação social e observadores regionais e internacionais que, por vezes, partilham apenas um conhecimento superficial de questões e assuntos distantes. “É difícil cobrir os acontecimentos, por isso, são enquadrados como uma revolta popular. Penso que isso se tornou intencionalmente fabricado em torno das tendências do Sahel. É a promoção de um objectivo estratégico que a Rússia tem na região.”
O analista Dan Whitman, do Foreign Policy Research Institute, concluiu de forma semelhante que a Rússia está a explorar e a lucrar com a violência no Sahel.
“A instabilidade é o Jardim do Éden da desinformação,” disse à Voz da América. “Diria que [em] dois ou três anos, [a Rússia] alcançou os mais rápidos sucessos de propaganda na história da propaganda.”
Resistindo à Narrativa
A desinformação russa tem sido utilizada para proteger regimes autoritários da responsabilização. Deste modo, as juntas militares do Sahel não são diferentes do reinado opressivo de Vladimir Putin na Rússia. Campanhas de desinformação intermináveis significam que haverá sempre outra distracção, outra forma de desviar as críticas, outro inimigo interno ou externo para culpar. Mas a resistência é inevitável, especialmente no Sahel, onde a insegurança afecta quase todas as vidas e só está a piorar.
Em Abril, mais de 80 partidos políticos e grupos civis do Mali emitiram declarações conjuntas, apelando à realização de eleições presidenciais e ao fim do regime militar. A junta do Mali respondeu com mais opressão, suspendendo todas as actividades políticas e impedindo os meios de comunicação social de cobrir assuntos políticos — medidas que alegou serem necessárias “por razões de ordem pública.”
Mas os dissidentes do Mali estão a mostrar que não vão desaparecer.
No dia 24 de Abril de 2024, um grupo de partidos políticos e organizações da sociedade civil recorreu ao Tribunal Supremo do Mali “com o objectivo de anular o decreto que consideram tirânico e opressivo.”
A mera existência de resistência é um sinal claro de que um ecossistema mediático de desinformação não é invulnerável. Ao reagir, as pessoas minam a narrativa de que os seus governantes militares têm apoio popular. Em todo o Sahel, não é difícil para os malianos, burquinabês e nigerinos verem que os seus pretensos líderes do governo de transição não tencionam realizar eleições tão cedo.
“As coisas não estão a correr bem no Sahel sob estes regimes militares,” disse Duerksen. “A segurança está a piorar. As economias estão a desintegrar-se. Este tem sido um dos grandes truques destas campanhas de desinformação. Ajudaram a criar e a manter viva esta imagem de que as juntas militares são populares.”