Eram 2 horas da madrugada dum sábado quando o silêncio da noite, numa aldeia burquinabê, foi interrompido pelo som de motorizadas e depois tiroteios.
Os terroristas abriram fogo contra residentes da aldeia de mineração de ouro de Solhan, no dia 5 de Junho de 2021. Eles incendiaram casas e mercados e executaram a população até ao nascer do sol. As autoridades locais anunciaram pelo menos 160 mortes — o ataque mais mortal desde que a violência chegou àquele país, em 2015.
O porta-voz do governo, Ousseni Tamboura, revelou os detalhes mais perturbantes do ataque semanas depois: “Os atacantes eram na sua maioria crianças com idades compreendidas entre 12 e 14 anos,” disse à imprensa.
Grupos terroristas, como o Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), o Estado Islâmico do Grande Sahara e o al-Qaeda no Magreb Islâmico, provocaram uma crescente onda de ataques contra civis no Sahel. Relatórios recentes demonstram que eles estão a recorrer ao uso de crianças para matar.
“Elas aceitam porque não querem morrer de fome,” Yacouba Maiga, director dos Serviços Católicos de Ajuda Humanitária, do escritório de Mopti, disse à Al Jazeera. “Elas aceitam porque, se não o fizerem, um outro grupo pode matá-las.”
“São jovens que não sabem nada para além desta crise.”
Milhares de pessoas foram mortos e milhões obrigadas a fugir da violência desta região toda. Estes números, juntamente com as grandes perdas no campo de batalha, reduziram a habilidade dos grupos terroristas de recrutar adultos.
África possui um histórico de grupos armados a recrutar e a utilizar crianças em zonas de conflito.
“A instabilidade política, o encerramento das escolas e a COVID-19 criaram um ambiente onde as crianças se tornaram num recurso útil para os militantes que procuram reforçar o pessoal das suas fileiras,” disse Christopher M. Faulkner, um pós-doutorando do Departamento de Assuntos de Segurança Nacional, do Colégio da Marinha de Guerra dos EUA. Faulkner falou com a ADF sobre a sua pesquisa, mas não falou em nome da sua instituição ou do governo dos EUA.
“O JNIM está a utilizar crianças em todas as formas, incluindo como espiões e vigias. Isso provavelmente explique a razão pela qual alguns desses grupos procuram crianças — mais recursos podem melhorar a eficácia táctica e operacional.” Os grupos extremistas islâmicos do Sahel também exploraram a falta de comida, a limitada possibilidade de empregos e a ausência das autoridades locais no recrutamento de crianças.
Os membros desses grupos pregam uma forma radical do Islão para as crianças das aldeias e prometem comida, roupa e dinheiro para que elas aceitem juntar-se a eles.
Algumas crianças tiveram promessas de cerca de 18 dólares se matarem alguém, de acordo com Idrissa Sako, assistente do ministério público do Burkina Faso, no tribunal superior da cidade de Dori.
Para outros, armas e motorizadas oferecem prestígio e estatuto.
“Os novos candidatos, muitas vezes, têm promessas de motorizadas, e a soma de 300.000 a 500.000 francos CFA [530 dólares a 885 dólares],” um professor burquinabê disse à organização humanitária Save the Children. “Imagine como um jovem que nunca pegou uma nota de 5.000 ou 10.000 francos CFA vai reagir quando lhe forem oferecidos 200.000, 300.000 ou 500.000 francos CFA.
Os recrutas são formados num período entre uma semana e três meses em matérias de como utilizar armas.
Às vezes, raparigas são utilizadas como bombistas suicidas, porque facilmente se misturam com civis. Mas o que é mais comum é que as raparigas estejam a correr o risco de serem raptadas para trabalharem ou serem obrigadas a casarem-se com combatentes islamitas.
Alguns especialistas e oficiais acreditam que os grupos terroristas mudaram as tácticas recentemente para atacar e destruir escolas e matar professores para pôr em causa o sistema de educação bem como prejudicar o lugar de segurança das crianças.
Os confinamentos obrigatórios da COVID-19 e os encerramentos das escolas exacerbaram o problema, de acordo com Virgínia Gamba, representante especial das Nações Unidas para as Crianças e Conflitos Armados.
“Existe uma ameaça real de que enquanto as comunidades tiverem falta de emprego e forem mais e mais isoladas por causa do impacto socioeconómico da COVID-19, iremos ver um aumento do recrutamento de crianças por falta de opções,” disse à Reuters, em Fevereiro de 2021. “Visto que as crianças não estão nas escolas, o alvo de atacar escolas para rapto e recrutamento de crianças … está a mudar para onde as crianças estão.”
As crianças fora das escolas já praticaram a mineração e o tráfico de ouro em Burkina Faso, Mali e Níger.
Jean-Hervé Jezequel, director do projecto da instituição sem fins lucrativos de pesquisa de conflitos no Sahel, Grupo Internacional da Crise, disse que o ouro ajudou os extremistas sahelianos a adquirir transporte, armas e munições.
As minas de ouro negligenciadas pelos governos locais, muitas vezes, caem nas mãos dos combatentes que detém grandes faixas de terra sem a lei, próximos da região de fronteira tríplice do país, conhecida como Liptako-Gourma.
“O controlo dos locais de extracção mineira permite que eles expandam a sua influência e ganhem mais financiamento,” disse à Al Jazeera. “As minas estão cheias de jovens que podem facilmente ser recrutados para os grupos jihadistas.”
De acordo com a ONU, rapazes e raparigas ainda são obrigados a juntar-se a grupos armados como combatentes, cozinheiros ou para exploração sexual, em pelo menos 14 países, incluindo Burquina Faso, República Democrática do Congo, Mali, Somália e Sudão do Sul.
Comunicar directamente com os grupos armados, por vezes, pode ser produtivo, conforme a ONU demonstrou quando o seu diálogo com militantes da República Centro-Africana em 2015 culminou com a desmobilização de mais de 350 crianças combatentes.
Mas isso não acontece muitas vezes, porque muitos governos hesitam em legitimar organizações extremistas violentas. Uma em cada três crianças gravemente vitimizadas no mundo foi na África Central e Ocidental, de acordo com o relatório de 2020, do secretário-geral da ONU sobre crianças e conflitos armados.
As crianças do Sahel encontram-se entre as mais vulneráveis do mundo. Elas estão tanto na oferta como na procura de grupos militantes.
Maimouna Ba viu aproximadamente 1.200 pessoas que fugiram de um ataque na aldeia de Solhan a procurarem refúgio numa cidade próxima de Dori, onde ela dirige uma organização da sociedade civil chamada Mulheres para a Dignidade do Sahel.
Alguns sobreviventes disseram que viram crianças a participarem nos ataques.
“Aquelas crianças não têm acesso a uma boa educação, mínimo de cuidados de saúde, mínimo de dignidade,” disse Ba à The Associated Press. “São, por conseguinte, alvos vulneráveis e fáceis de serem recrutados por grupos extremistas.”
A reabertura das escolas com melhoria de medidas de segurança é uma forma através da qual os governos podem proteger melhor as crianças. Os especialistas também apontam para a necessidade de educar as crianças sobre as suas vulnerabilidades, sobre os grupos armados e sobre a existência de programas de desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR).
A secretária-geral adjunta da ONU, Amina Mohamed, disse que os programas DDR são de vital importância, assim como o são a aceitação e o apoio das comunidades quando as crianças que anteriormente estavam associadas a grupos armados regressam.
“Milhares de crianças recrutadas e utilizadas por grupos armados e outras crianças afectadas nas suas comunidades não recebem um mínimo de cuidado ou serviços para voltar a tecer o tecido de uma sociedade despedaçada,” escreveu Mohamed, num relatório de 2020 intitulado “Melhorar o Apoio à Reintegração de Crianças.”
“Aqueles que conseguem ajuda, muitas vezes, o fazem por apenas alguns meses em vez dos essenciais 3 a 5 anos necessários para a reintegração.”
O relatório argumenta a favor dos investimentos nos sistemas de educação locais e nos serviços de saúde mental, observando que as lacunas de financiamento significativas dos grupos internacionais, muitas vezes, interrompem a continuidade dos programas de DDR.
“Existe uma grande atenção dada pela ONU para considerar as deficiências nos programas de reintegração,” disse Faulkner. Eles especificamente enfatizam a necessidade de que tais programas tenham uma perspectiva de género para que sejam disponibilizados os recursos adequados para raparigas e rapazes dado que eles podem ter tido experiências bem distintas no conflito.
“Esta é uma razão adicional para esperança.”