EQUIPA DA ADF
Uma operação militar na cidade de Garu, no norte do Gana, deixou um homem morto e dezenas de pessoas hospitalizadas no dia 29 de Outubro de 2023.
A rusga provocou a indignação dos residentes locais e resultou em semanas de cobertura crítica por parte da imprensa. No mês seguinte, o Parlamento do Gana convocou o Ministro da Segurança Nacional para comparecer no hemiciclo e explicar a operação.
Num discurso emocionado, Albert Alalzuuga, o deputado que representa Garu, exigiu respostas.
“Estamos desolados e apelamos ao ministro e ao parlamento para que abram um inquérito em grande escala sobre este caso e dêem a conhecer os factos aos ganeses,” afirmou Alalzuuga. “Esta abordagem militar de bater sempre nas pessoas sem piedade é demasiado frequente no país. … As forças armadas não foram treinadas para a segurança interna e, por isso, se as utilizarmos para fazer o exercício errado, elas darão os resultados errados.”
O Ministro da Segurança Nacional, Albert Kan Dapaah, disse ao parlamento que a rusga tinha como objectivo retirar as armas de um grupo de jovens que já tinha atacado o pessoal da segurança nacional. Tomou nota de relatos de excessos por parte do pessoal de segurança, mas disse que não podia dar um relato completo do assunto porque este estava a ser tratado pelo sistema judicial. Recordou aos deputados a importância dos esforços de combate ao terrorismo na região, o perigo crescente de conflitos interétnicos e a necessidade de manter o moral das tropas elevado.
“Gostaria de exortar os ilustres membros da Assembleia a exercerem introspecção ao debaterem o assunto,” disse Dapaah.
O caso Garu é apenas um exemplo de como a supervisão e a responsabilização podem funcionar numa democracia. É, muitas vezes, um cabo-de-guerra entre o que o público quer saber e a necessidade de sigilo em questões de segurança nacional.
Por vezes, os profissionais militares têm relutância em responder perante os civis. Noutros casos, a procura de informação pode levar a conversas desconfortáveis e a bloqueios. Mas, segundo os especialistas, quando funciona correctamente, a supervisão produz um sector de segurança mais forte.
“As organizações de segurança devem ser responsáveis perante as instituições legalmente mandatadas para supervisionar as suas actividades,” o Brigadeiro-General Dan Kuwali, comandante do Colégio de Defesa Nacional do Malawi, disse à ADF. “É do interesse dos militares estarem sujeitos a controlo.”
Os países africanos podem concentrar-se em vários pilares da responsabilização e da supervisão.
Capacitar as Comissões Parlamentares
Em muitas democracias, os representantes eleitos desempenham um papel fundamental no controlo das forças armadas. Definem orçamentos, supervisionam a aquisição de equipamento, confirmam os nomeados presidenciais e realizam audições para examinar a actividade militar. No entanto, em alguns países, este controlo do poder tornou-se um carimbo de aprovação. Quase todo o poder está nas mãos do chefe do executivo, que passa por cima do parlamento em algumas das decisões mais importantes do país.
Alguns líderes parlamentares estão a tentar dar força ao papel que lhes foi atribuído pela Constituição.
Bertin Mubonzi, deputado da República Democrática do Congo, faz parte de uma comissão que trabalha para “desmantelar as redes criminosas” que existem no sector da segurança do seu país. A sua equipa está a investigar alegações de desvio de fundos e de tráfico ilegal de minerais. O trabalho é difícil e, por vezes, perigoso. “Este trabalho importante é também muito sensível porque alguns oficiais habituaram-se, com o tempo, a ajudarem-se a si próprios,” disse ao Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS). “Temos de garantir a nossa própria segurança.”
Mubonzi acredita no valor do seu papel.
“O nosso papel é importante porque, ao nível mais básico, não desempenhar o papel soberano que nos cabe como comissão e como parlamento equivaleria a dar carta-branca ao governo,” disse Mubonzi, que é presidente da Rede de Parlamentares Africanos das Comissões de Defesa e Segurança.
Um desafio para a supervisão parlamentar é o facto de muitos países africanos terem uma elevada rotatividade no parlamento. Em cada ciclo eleitoral, 40% a 60% dos membros deixam o cargo, o que resulta em funcionários inexperientes e sem o conhecimento institucional necessário para regular as forças armadas.
O Dr. Ken Opalo, que estuda a questão e lecciona na Escola de Serviço Externo da Universidade de Georgetown, disse que em algumas das legislaturas que funcionam melhor no continente, os funcionários eleitos dedicam tempo a construir relações de confiança com os comandantes militares.
“Os comités que funcionam bem conseguem estabelecer a sua própria relação com os generais para que estes possam compreender a sua posição,” disse Opalo. “Isso exige confiança e um diálogo e envolvimento construtivos, em oposição a posturas de oposição ou de confronto que são frequentemente comuns em muitas legislaturas.”
Kuwali considera igualmente que deve ser feito um esforço para ajudar os deputados a aprofundar os seus conhecimentos sobre questões de segurança, mantendo a sua independência. Salientou que o Colégio de Defesa Nacional do Malavi tem deputados e juízes no seu corpo docente para apoiar este intercâmbio de informações.
“As Comissões de Supervisão Parlamentar necessitam de pessoal com conhecimentos técnicos e experiência para ajudar os funcionários eleitos a desempenharem as suas funções de forma significativa,” afirmou Kuwali. “O desenvolvimento de competências parlamentares em matéria de segurança ajuda a criar confiança com os seus homólogos do sector da segurança e desempenha um papel importante na receptividade das suas conclusões.”
Priorizar a Transparência
O controlo só é possível quando os civis têm acesso a informações sobre o funcionamento das forças armadas. No entanto, os líderes da defesa exigem frequentemente sigilo sobre o seu trabalho e bloqueiam o acesso à informação.
“A ‘segurança nacional’ é frequentemente utilizada de forma incorrecta como uma consideração que tudo domina,” escreveu Godfrey Musila, investigador e antigo comissário da Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos no Sudão do Sul. “Uma vez invocado, levanta um véu que impede qualquer tipo de escrutínio do que o governo faz.”
Este secretismo vai para além das questões operacionais e inclui os orçamentos. Kuwali constatou que dos 45 países africanos que publicam um orçamento militar, 28 não forneceram uma lista completa das despesas. Isso torna quase impossível para o público saber como o dinheiro está a ser gasto. Também permite que a corrupção prospere.
“É aí que algumas forças armadas se enganam,” disse Kuwali. “Quanto mais transparentes forem as forças armadas, mais apoio orçamental poderão obter, uma vez que essas acções reforçam a confiança dos deputados e dos funcionários públicos que atribuem fundos no orçamento. É certo que as forças armadas não precisam de revelar os pormenores exactos das aquisições, sob pena de comprometerem a segurança nacional. No entanto, têm de fornecer informações suficientes sobre as suas despesas.”
Há algumas razões para optimismo. Desde o ano 2000, 19 países africanos adoptaram legislação que reforça o acesso à informação. Em 2012, a Comissão da União Africana para os Direitos Humanos e os Direitos dos Povos desenvolveu um modelo de lei que descreve como a transparência pode ser codificada.
Um relatório de 2018 do Instituto Internacional de Investigação para a Paz de Estocolmo (SIPRI) avaliou 47 países africanos e descobriu que 45 deles tinham publicado pelo menos um documento orçamental oficial online. Este facto representa uma melhoria em relação a estudos anteriores.
“Os cidadãos de todo o mundo devem saber onde e como é gasto o dinheiro público. É encorajador que os relatórios nacionais na África Subsariana tenham melhorado,” o Dr. Nan Tian, investigador do Programa de Transferências de Armas e Despesas Militares do SIPRI, disse num comunicado de imprensa que acompanha o relatório.
Reforçar o Controlo Interno
Muitas forças armadas com bom desempenho criaram gabinetes de supervisão para investigar e apresentar relatórios sobre questões relacionadas com disciplina, eficiência, moral, formação e prontidão das forças armadas. Este gabinete, normalmente designado por inspector-geral, está integrado na cadeia de comando militar e responde perante o chefe do ramo de serviço ou o ministro da defesa.
Como mecanismo de supervisão interna, espera-se que o inspector-geral actue como “olhos, ouvidos, voz e consciência” dos comandantes, permitindo-lhes rectificar os problemas antes que estes se espalhem. Idealmente, o inspector-geral apoia o trabalho de organismos externos como o Parlamento para melhorar o desempenho.
“Os mecanismos de responsabilização interna e externa reforçam-se mutuamente,” afirmou Kuwali. “Esta supervisão a vários níveis proporciona linhas de defesa para melhorar a supervisão do sector da segurança. À medida que um maior número de indivíduos e instituições supervisiona a segurança, podem ser reforçadas as normas de elevados padrões de profissionalismo e integridade financeira.”
A Força Nacional de Defesa da África do Sul (SANDF) foi um pouco mais longe. Em 2012, o parlamento do país criou o Provedor de Justiça Militar, que funciona de forma independente e fora da cadeia de comando.
Este gabinete responde a queixas apresentadas por membros actuais e passados da SANDF e investiga queixas ou alegações de mau comportamento feitas pelo público contra a SANDF. Nos seus primeiros oito anos, o Provedor respondeu a 2.752 queixas, tendo resolvido 95% das mesmas.
Na cerimónia de 2019 que assinalou o fim do mandato do Provedor de Justiça Themba Templeton Matanzima, o tenente-general reformado avisou o seu sucessor que “não terá muitos amigos agora nas forças armadas,” mas sublinhou a importância da responsabilização.
“Quando há algo de errado, as forças armadas devem corrigir isso com sanções, com punições,” disse Matanzima. “Não se trata de baixar os padrões de disciplina; trata-se de direitos humanos.”
Abrir-se à Sociedade Civil e aos Meios de Comunicação
Embora não façam parte do processo de controlo formal, as organizações não-governamentais, os grupos de defesa dos direitos humanos, os meios de comunicação e as organizações da sociedade civil desempenham um papel importante. Investigam e amplificam histórias que requerem atenção militar. Muitos casos de desvio de fundos ou de abuso no continente foram descobertos por repórteres ou defensores de direitos humanos.
Outras instituições, incluindo as comissões de direitos humanos e as comissões anticorrupção financiadas pelo governo, fazem parte do que se designa por “responsabilização horizontal.” Estes grupos estão mandatados para monitorizar, documentar e fazer recomendações sobre os abusos.
Num webinar organizado pelo ACSS, Abdul Tejan-Cole, antigo comissário da Comissão Anticorrupção da Serra Leoa, sublinhou a necessidade de organizações de vigilância independentes.
“Os mecanismos de responsabilização e de controlo são, de facto, a base das sociedades democráticas e são cruciais para reforçar o Estado de direito,” afirmou Tejan-Cole. “Ninguém está acima da lei. A polícia precisa de ser policiada, e o próprio exército precisa de ser policiado. Têm de ser responsabilizados perante as comunidades e as pessoas que servem.”
Uma “Responsabilidade Solene” Exige Um Controlo Adequado
O Brigadeiro-General Dan Kuwali, da Força de Defesa do Malawi (MDF), desempenhou várias funções, incluindo a de conselheiro jurídico na Missão da ONU na República Democrática do Congo e a de chefe dos serviços jurídicos da MDF. Actualmente, é comandante do Colégio de Defesa Nacional do Malawi. Escreve e lecciona sobre temas relacionados com a governação do sector da segurança, os direitos humanos, o uso da força e o direito humanitário. Esta entrevista foi editada por motivos de espaço e clareza.
ADF: Por que acha que os militares deviam aceitar a responsabilização em vez de resistirem contra ela?
Kuwali: O ponto de partida é que nenhum indivíduo ou instituição está acima da lei. O princípio do controlo democrático das forças armadas exige que o pessoal militar seja responsável perante os funcionários eleitos, que são responsáveis perante os cidadãos. Os casos em que os militares detêm o poder político de jure ou de facto colocam desafios à governação democrática. Do mesmo modo, a interferência política das forças de defesa e segurança torna os mecanismos de supervisão e responsabilização ineficazes. Quando os responsáveis pela defesa e segurança ignoram os ditames constitucionais e, em vez disso, protegem os seus próprios interesses, tornam-se eles próprios uma ameaça para a população que estão mandatados para defender.
ADF: Como é que se pode equilibrar a necessidade de sigilo nas operações militares com o direito do público a saber?
Kuwali: O equilíbrio entre transparência e confidencialidade no sector da segurança é uma das questões mais prementes da governação do sector da segurança. É imperativo que o sector da defesa e da segurança tenha agentes de informação pública e pessoal de relações públicas bem formados que possam ajudar a encontrar esse delicado equilíbrio. A transparência é um princípio fundamental da governação responsável. Um sector de segurança opaco cria um ambiente propício a abusos e a comportamentos pouco profissionais. Sem informação sobre a formulação e implementação de leis, políticas, planos e orçamentos, é impossível responsabilizar os militares. No entanto, a confidencialidade é necessária para questões sensíveis de segurança do Estado.
As dificuldades surgem quando a necessidade de confidencialidade é utilizada para escapar ao controlo dos órgãos de gestão e de supervisão adequados ou dos cidadãos. A experiência tem demonstrado que, ao desenvolver relações de confiança com os órgãos legislativos e outros órgãos de controlo, as organizações de segurança podem manter um elevado grau de confidencialidade em assuntos sensíveis sem comprometer o princípio da responsabilidade pública. Como caminho a seguir, a minha sugestão é que o padrão deveria ser fornecer informações ao público. Quando não for possível, devem ser apresentadas as razões para a não divulgação, sob reserva de revisão e determinação por um tribunal ou autoridade competente.
ADF: O que deve ser feito para reforçar o papel de controlo do Parlamento?
Kuwali: Uma governação eficaz do sector da segurança exige um sistema de controlos e equilíbrios em que legislaturas dinâmicas e sistemas judiciais independentes assegurem a supervisão necessária para responsabilizar os militares perante os cidadãos.
Isso ajuda a garantir que a responsabilidade solene dos actores da segurança de portar armas seja utilizada no interesse da sociedade. Com mandatos que incluem o controlo orçamental, a aprovação de destacamentos de tropas, a aquisição de equipamento, a política de segurança e as questões de pessoal, as comissões parlamentares de supervisão necessitam de pessoal com conhecimentos técnicos e experiência para ajudar os funcionários eleitos a desempenharem as suas funções de forma significativa. O desenvolvimento de competências parlamentares em matéria de segurança ajuda a criar confiança junto dos seus homólogos do sector da segurança e desempenha um papel importante na receptividade das suas conclusões.
ADF: Considera que é necessária uma mudança cultural no seio das forças armadas no que diz respeito à supervisão? Será que os soldados podem deixar de ver a supervisão como um fardo e passar a vê-la como uma forma de melhorar o profissionalismo e como algo que conduz a melhores resultados em termos de segurança?
Kuwali: Embora a maioria das constituições democráticas preveja a subordinação das organizações de segurança ao controlo civil, tanto as autoridades militares como as civis nem sempre compreendem a extensão e os limites desse controlo. O controlo civil das forças armadas não é igual ao comando e controlo directo das tropas. Em vez disso, o controlo civil refere-se ao processo através do qual os civis eleitos definem a direcção estratégica relativa à utilização do sector da segurança e estes líderes civis são responsabilizados pelo povo. Por conseguinte, é necessária uma mudança cultural em ambos os sentidos. Uma rápida pesquisa mostra que a governação do sector da segurança não faz parte do currículo da maioria dos cursos militares profissionais. É por isso que nós, no Colégio de Defesa Nacional do Malavi, introduzimos deliberadamente um curso sobre Governação do Sector da Segurança e Estado de Direito para garantir que os militares compreendam a razão de ser e cumpram a supervisão democrática das forças armadas.