Aproveitando uma Nova Ferramenta
Os avanços da IA vão alterar a dinâmica dos conflitos dentro e fora do campo de batalha
EQUIPA da ADF
A África pode já ter tido a sua primeira experiência com a inteligência artificial no campo de batalha em meados de 2020. Foi nessa altura que os drones Kargu-2 autónomos de fabrico turco seguiram e mataram membros das forças do marechal líbio, Khalifa Haftar, quando estas se retiravam do cerco falhado em Tripoli, segundo os relatos.
Embora a natureza exacta do ataque continue a ser controversa — alguns observadores questionam se os drones estavam realmente a agir por conta própria — um número crescente de especialistas prevê que a inteligência artificial (IA) irá desempenhar um papel cada vez mais importante em África, dentro e fora do campo de batalha.
“A IA não está a chegar a África, já cá está. E o seu papel só tende a aumentar nos próximos anos,” Abdul Hakeem Ajijola, presidente do Grupo de Peritos em Cibernética da União Africana, disse recentemente ao Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS).
À medida que a utilização da IA se expande, os governos e as entidades reguladoras têm sido lentos a adoptar as regras necessárias para reger a sua utilização.
“Em matéria de políticas de IA, não há países no mundo que estejam preparados,” Rob Floyd, director de inovação e política digital do Centro Africano para a Transformação Económica, com sede no Gana, disse à ADF.
Mais de 2.400 organizações africanas já estão a trabalhar com a IA em muitos sectores, desde a agricultura e a saúde até à aplicação da lei e à segurança.
A IA monitoriza as culturas para detectar doenças, orienta os drones que entregam medicamentos em aldeias distantes e analisa multidões para detectar potenciais terroristas. Segundo Ajijola e outros especialistas, a capacidade da IA para digerir rapidamente grandes quantidades de dados e encontrar padrões nos mesmos faz da tecnologia uma ferramenta valiosa.
Dito isto, o significado exacto de IA, tal como a própria tecnologia, continua a evoluir.
“Neste momento, não existe uma definição consensual para a inteligência artificial,” o advogado e investigador Nokuthula Olorunju, da África do Sul, membro da Research ICT Africa, disse recentemente ao ACSS. “Estamos a descobri-lo à medida que vamos avançando.”
A actual tecnologia de IA vai desde a inteligência artificial estreita, como os sistemas online que fornecem actualizações de tráfego em tempo real, até à IA generativa, como o ChatGPT, que pode criar conteúdos de texto, vídeo e áudio que podem ser utilizados para difundir desinformação e gerar conflitos.
Uma coisa em que os investigadores de IA estão de acordo é: tal como a electricidade, a internet ou um veículo com tracção a quatro rodas, a IA é uma ferramenta que só é tão boa ou má quanto os humanos que a utilizam.
“O medo em torno da IA deve-se à proliferação de danos que vemos serem causados pela utilização da IA,” afirmou Olorunju. “A questão resume-se aos problemas de segurança e protecção que são causados quando se permite que a IA ande à solta. A IA existe actualmente numa zona cinzenta sob ponto de vista jurídico e a lei não é capaz de a acompanhar.”
IA e Análise
Os especialistas em IA não hesitam em sublinhar que a tecnologia não substitui o conhecimento, a intuição e a criatividade humanos.
“É, de facto, um reconhecimento de padrões,” disse Ajijola.
Apesar de todas as suas capacidades, a maior força da IA pode ser a sua capacidade de separar o trigo do joio digital de forma rápida, eficiente e a uma escala que os seres humanos nunca poderiam alcançar.
Quer os dados representem comunicações de terroristas, leituras de radar do tráfego de navios ou movimentos de caçadores furtivos em zonas de vida selvagem, a capacidade da IA para reconhecer padrões fornece aos utilizadores humanos dados que tornam as acções de segurança mais precisas e menos arriscadas.
No Parque Nacional de Liwonde, no Malawi, por exemplo, o software EarthRanger, com tecnologia de IA, estuda os padrões de caça furtiva no parque e, utilizando análises preditivas, alerta os guardas-florestais para potenciais picos de actividade, para que possam desenvolver a sua estratégia de combate à caça furtiva.
As “câmaras de caçadores furtivos” do sistema conseguem distinguir entre pessoas e animais que se deslocam pelo parque, permitindo aos guardas-florestais identificar os caçadores furtivos sem terem de se colocar em perigo.
A Marinha da Nigéria começou a integrar a IA nos seus sistemas para reforçar a sua capacidade operacional e acompanhar a evolução da tecnologia.
O Chefe do Estado-Maior da Marinha da Nigéria, Vice-Almirante Emmanuel Ogalla, afirmou que a IA pode prever a forma mais eficiente de operar um navio em termos de consumo de combustível. Integrado nas operações de radar do navio ou nos sistemas de detecção de ameaças, pode ajudar os operadores a processar a informação mais rapidamente e a compreender melhor como responder a uma ameaça no mar. Desta forma, a IA pode melhorar a capacidade da marinha para combater a pesca ilegal e o tráfico de droga no Golfo da Guiné, dizem os especialistas.
Ogalla também destacou outro benefício que a IA proporcionará à Marinha da Nigéria: a manutenção preditiva. À medida que a IA monitoriza os sistemas de um navio, pode identificar potenciais falhas no equipamento e alertar a tripulação para a necessidade de manutenção, detectando os problemas quando ainda são pequenos. Deste modo, assegurar-se-á que os navios permaneçam prontos, em vez de ficarem imobilizados para reparação.
“A Marinha da Nigéria deve continuar a adoptar e a integrar estas tecnologias para manter uma vantagem competitiva durante as operações,” disse Ogalla ao jornal nigeriano Leadership.
Para Ajijola, a capacidade de processamento da IA e as capacidades de reconhecimento de padrões permitem que os analistas se concentrem no planeamento e na estratégia, em vez de passarem os dias a peneirar montes de dados.
“Temos de encontrar formas de aliviar a carga dos analistas para que sejam mais eficientes”, disse Ajijola.
No Campo de Batalha
Talvez mais do que qualquer outra tecnologia que utilize IA, os veículos aéreos não tripulados (VANT) — drones — representam a promessa e a ameaça inerentes à inteligência artificial. Nesse sentido, poderá já estar em curso em África uma corrida ao armamento com tecnologia de IA, à medida que as forças armadas se abastecem de tecnologia de drones para complementar as forças terrestres e marítimas.
“Apesar dos apelos globais para a proibição de armas semelhantes, a proliferação de sistemas como o Kargu-2 [drone de ataque de asa rotativa] está provavelmente apenas a começar,” escreveram os analistas Nathaniel Allen e Marian “Ify” Okpali para a Brookings Institution em 2022.
As forças armadas de toda a África compraram ou encomendaram o Kargu-2 e os drones Bayraktar TB2, de maiores dimensões, fabricados na Turquia. A lista de países que acrescentaram os drones turcos aos seus arsenais inclui Etiópia, Marrocos, Ruanda e Togo.
Embora não se reconheça publicamente que a actual geração de drones tenha capacidades de IA, os fabricantes de drones já estão a promover a próxima geração de drones que utilizará definitivamente a IA.
O Paramount Group, da África do Sul, introduziu em 2021 o seu sistema de drones N-Raven, com tecnologia de IA, com capacidade para enxamear alvos. Embora os VANT possam ser utilizados para reconhecimento, cada um deles é suficientemente grande para transportar uma carga útil de até 15 quilogramas, criando o potencial de ataque de vários drones coordenados entre si para encontrar e eliminar alvos, sobrecarregando as defesas do alvo.
“Estas são novas máquinas de guerra,” disse Ajijola.
Os especialistas afirmam que a utilização de drones com tecnologia de IA e de armas semelhantes automatizadas e à solta levanta uma questão importante: Quem é responsável pelos seus actos?
“No final do dia, de quem é a responsabilidade?” questionou Olorunju. “Quem é responsável? Quem tem a responsabilidade — é o país? O fabricante?”
Os observadores dizem que é apenas uma questão de tempo até que a tecnologia de IA chegue às mãos dos insurgentes, que a poderão utilizar para aterrorizar comunidades ou atacar instituições governamentais sem expor os seus próprios combatentes. Grupos terroristas como o Boko Haram têm utilizado drones sem tecnologia de IA para efectuar reconhecimentos e filmar combates com as forças governamentais.
“Os actores não estatais adoptarão eles próprios estas tecnologias e encontrarão formas inteligentes de as explorar ou anular,” escreveram Allen e Okpali. “A inteligência artificial será utilizada em combinação com invenções igualmente influentes, mas menos chamativas, como a AK-47, o veículo táctico não normalizado e DEI, para permitir novas tácticas que tirem partido ou explorem as tendências para melhores capacidades de detecção e maior mobilidade.”
Desafios
A perspectiva de os extremistas adoptarem armas com tecnologia de IA é apenas um dos desafios que os países africanos enfrentam à medida que a utilização da IA aumenta em todo o continente.
O desenvolvimento de tecnologias como a IA aumenta a ameaça à segurança cibernética, segundo escreveu o investigador Emmanuel Arakpogun num estudo publicado pela Universidade de Northumbria.
“Os actores estatais ou individuais podem paralisar infra-estruturas críticas de forma a ameaçar a existência de uma nação,” escreveu.
Os ataques conduzidos pela IA a infra-estruturas críticas como a energia, a água e os bancos podem ocorrer a uma velocidade e com uma frequência que as equipas humanas de segurança cibernética teriam dificuldade para fazer face. Os investigadores afirmam que os sistemas de IA podem colmatar essa lacuna, monitorizando os sistemas 24 horas por dia e alertando os seus homólogos humanos quando surgem actividades suspeitas.
Para além das infra-estruturas físicas, as nações enfrentam ataques com recurso à IA às suas infra-estruturas democráticas. Os sistemas de IA generativa já podem criar os chamados vídeos deepfake, juntamente com artigos de notícias falsas de aspecto realista e outros conteúdos destinados a fomentar conflitos, minar líderes e semear a suspeita e a violência nas sociedades.
“Mísseis de cruzeiro podem derrubar um edifício, mas a IA pode ‘piratear’ o eleitorado para convencer os países a elegerem as pessoas erradas,” disse Ajijola.
Para complicar ainda mais as coisas: “A IA generativa deixa poucas impressões digitais,” Melissa Fleming, directora de comunicações globais das Nações Unidas, disse recentemente à ONU. “A IA generativa tem um enorme potencial de manipulação dos eleitores.”
Os especialistas concordam que os governos africanos podem utilizar a IA para se defenderem contra ataques online, mas também notam que África precisa de recuperar o atraso em termos de formação de programadores qualificados e de financiamento de projectos. No entanto, esta situação está a mudar.
O recém-inaugurado Centro Africano de Investigação sobre Inteligência Artificial, financiado pela ONU, em Brazzaville, na República do Congo, junta-se a uma lista crescente de institutos, de Marrocos à África do Sul e do Gana ao Ruanda, que procuram expandir a capacidade africana de responder às promessas e ameaças da IA.
A IA produzida em África tem potencial para criar postos de trabalho e dar emprego a milhões de pessoas no continente, afirmou Floyd. Isso, juntamente com as inovações apoiadas pela IA na agricultura, nas infra-estruturas, nas despesas públicas e muito mais, poderá reduzir os conflitos sobre os recursos que conduzem à insegurança em África, acrescentou.
“Se as pessoas forem mais produtivas e os recursos forem utilizados de forma mais produtiva, é de esperar que a sociedade seja mais harmoniosa,” Floyd disse à ADF.
Das 2.400 empresas africanas relacionadas com a IA, mais de 40% são empresas em fase de arranque que já receberam centenas de milhões de dólares em financiamento inicial. Trata-se de uma fatia dos 79,2 bilhões de dólares gastos globalmente em IA em 2022, e grande parte foi canalizada para o desenvolvimento de tecnologia financeira na Nigéria, um centro de fraude financeira online, de acordo com Arakpogun.
Embora a Nigéria tenha atraído o maior volume de capital de investimento relacionado com a IA, a África do Sul gerou o maior número de empresas relacionadas com a IA, seguida da Nigéria e do Quénia. O Egipto, o Gana, a Tunísia e o Zimbabwe também estão entre os principais pioneiros da IA no continente.
“Para evitar que se repitam as oportunidades perdidas nas anteriores revoluções industriais, que deixaram um legado negativo para os países africanos, os governos devem criar um ambiente propício para que estas startups de IA floresçam e acelerem o desenvolvimento socioeconómico de África,” escreveu Arakpogun.
O Futuro
Enquanto os países africanos olham para a sua futura relação com a IA, é imperativo que desenvolvam estratégias para abordar os aspectos positivos e negativos da tecnologia, dizem os especialistas.
As Ilhas Maurícias abriram caminho em 2018, quando publicaram a sua estratégia nacional de IA, descrevendo a tecnologia como criando um novo pilar para o desenvolvimento nas próximas décadas. Outros países africanos seguiram-se, embora nenhum tenha atingido o nível de preparação das Maurícias.
Em 2002, a Oxford Insights classificou cada país numa escala de 100 pontos quanto à sua prontidão para utilizar a IA na prestação de serviços públicos. As Ilhas Maurícias, com uma pontuação de 53,8, e a África do Sul (47,74), o Egipto (49,42) e a Tunísia (46,81) são os únicos países africanos que ultrapassam a média global de 44,6.
O Grupo de Trabalho Africano sobre IA espera construir uma estratégia unificada para o continente, um passo importante para incentivar as nações a partilharem os seus dados para optimizar os sistemas de IA.
“Um dos maiores desafios em África é a qualidade e o acesso aos dados,” afirmou Floyd. “Os dados económicos estão, muitas vezes, desactualizados há anos.”
O Plano de Acção da União Africana para a IA em África, desenvolvido em 2021, enuncia as oportunidades e os desafios da utilização da IA e propõe princípios fundamentais para orientar a sua utilização no futuro. Qualquer estratégia de IA desenvolvida pelos países africanos deve reflectir os valores africanos e não ser um “cortar e colar” de outros países, dizem os especialistas.
“Isto não é uma teoria. Isto não se passa noutra parte do mundo,” afirmou Ajijola. “Precisamos de determinar as filosofias africanas que irão orientar o desenvolvimento da IA no continente. O legado final da revolução digital em matéria de segurança será a forma como é utilizada.”
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