Quando o infame Grupo Wagner, de mercenários russos, anunciou a sua saída do Mali no início deste ano, afirmou nas redes sociais que a sua “missão estava cumprida.”
A realidade é que, nos três anos e meio de operações de combate ao terrorismo e de contra-insurgência que levou a cabo, o grupo teve um impacto desastroso no país do Sahel, que continua a ser considerado o epicentro mundial do terrorismo.
“Apesar de o Grupo Wagner ter a reputação de estar pronto para o combate e de reivindicar triunfos públicos ocasionais no Mali, a sua estratégia tem sido marcada por uma série de fracassos,” a organização investigativa The Sentry escreveu num relatório de 27 de Agosto.
O Kremlin substituiu o Grupo Wagner pela sua própria força paramilitar chamada Africa Corps, que é controlada pelo Ministério da Defesa. Segundo um relatório do Instituto Tombuctu de 29 de Julho, 80% do Africa Corps é composto por ex-mercenários do Grupo Wagner.
“O Africa Corps herda o legado de violações de direitos humanos do Grupo Wagner, incluindo execuções extrajudiciais e actos de tortura,” afirma o relatório. “Esses abusos, muitas vezes, cometidos com impunidade, alimentam o descontentamento entre certas comunidades e o recrutamento jihadista que explora várias queixas.”
Através de entrevistas com militares malianos, agentes de inteligência e funcionários dos ministérios das finanças e das minas, o The Sentry relatou que os militares malianos se ressentem profundamente dos russos. Eles alegaram que os combatentes do Grupo Wagner desrespeitaram o seu comando e controlo, e os malianos culparam os russos por falhas de segurança e erros operacionais que resultaram em perdas de pessoal e equipamento.
As tácticas brutais dos mercenários e a abordagem aleatória ao combate ao terrorismo também fizeram com que fosse impossível ganhar a confiança do povo maliano.
“Desde a chegada do Grupo Wagner ao Mali, houve um aumento significativo nos ataques contra civis e nas baixas civis ligadas às forças de segurança malianas e milícias aliadas,” afirmou o relatório. “Na verdade, o Grupo Wagner tem empregado tácticas que visam indiscriminadamente civis.”
Os combatentes do Grupo Wagner também se teriam envolvido em violência sexual e execuções em massa, como evidenciado pelo massacre de Moura em 2022, onde mais de 500 civis foram mortos, incluindo pelo menos 300 homens que foram executados.
No início de 2023, os especialistas das Nações Unidas pediram uma investigação independente sobre violações flagrantes de direitos humanos e “possíveis crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos no Mali pelas forças governamentais e pela empresa militar privada conhecida como Grupo Wagner.”
Os especialistas afirmaram que, desde 2021, receberam “relatos persistentes e alarmantes de execuções horríveis, valas comuns, actos de tortura, violação e violência sexual.” Os repetidos apelos para uma investigação no Mali não produziram resultados.
Alguns soldados das FAMa atribuíram o massacre de Moura à influência que os mercenários russos exerceram sobre os seus superiores.
“Sem o Grupo Wagner, não teria havido o caso de Moura,” um deles disse à The Sentry. “Não nesta escala, não com esta duração, não com todos os mortos.”
Os malianos culpam as tácticas pesadas dos russos por impulsionar o recrutamento de combatentes separatistas Tuaregues e terroristas ligados à al-Qaeda e ao grupo Estado Islâmico.
Amadou Koufa, líder do Katiba Macina, um grupo militante islâmico ligado à al-Qaeda, disse numa entrevista à France24 em 2024 que a brutalidade russa foi o impulso para que os residentes locais se juntassem à luta para “defender a sua religião, a sua terra e os seus bens.”
Os russos realizaram ataques com drones em casamentos e funerais, enquanto vídeos de combatentes do Grupo Wagner a abusar de civis Tuaregues circulavam online, aumentando ainda mais o descontentamento e alimentando a propaganda de recrutamento.
“Os líderes comunitários locais do centro do Mali, muitas vezes, queixam-se de que o Grupo Wagner não conseguiu melhorar permanentemente a situação nas suas áreas,” os investigadores do Royal United Services Institute escreveram num relatório de Janeiro de 2025.
O Grupo Wagner sofreu uma derrota esmagadora em Julho de 2024, quando vários grupos terroristas atacaram um grande comboio de veículos perto da aldeia de Tinzaouatène, no nordeste do Mali. Os militantes afirmaram ter matado 84 mercenários russos e 47 soldados das FAMa.
A relação do Grupo Wagner com as FAMa deteriorou-se, levando a uma suspeita mútua, de acordo com a The Sentry. Os sobreviventes russos acusaram os serviços secretos do Mali de subestimarem o número de rebeldes e abandoná-los no meio da batalha. Em resposta, os oficiais malianos acusaram os russos de ignorarem as cadeias de comando, confiscarem os seus veículos e tratá-los com racismo aberto.
“Passámos da frigideira para o fogo,” um oficial superior disse à The Sentry.
A raiva aumentou quando militantes atacaram o aeroporto de Bamako em Setembro de 2024, matando mais de 100 pessoas. As unidades do Grupo Wagner estavam estacionadas nas proximidades, mas teriam esperado cinco horas para intervir.
“Se não lhes pagas, eles não se mexem,” um guarda do aeroporto disse à The Sentry.
Charles Cater, director de investigações da The Sentry, disse que a intervenção do Grupo Wagner no Mali foi um fracasso.
“Operações antiterroristas pesadas e mal informadas fortaleceram as alianças entre grupos armados que desafiam o Estado, causaram perdas substanciais no campo de batalha do lado do Grupo Wagner e resultaram num número maior de vítimas civis,” disse. “Em última análise, a mobilização do Grupo Wagner não serviu os interesses do povo do Mali, do governo militar, nem mesmo do próprio grupo mercenário.”
Justyna Gudzowska, directora-executiva da The Sentry, disse que a experiência do Mali deve servir de lição.
“ À medida que Moscovo espalha os seus tentáculos pelo Sahel e muda a sua marca para Africa Corps, é fundamental compreender que o Grupo Wagner não era a força de combate infalível e o actor económico de sucesso que fingia ser,” afirmou.
“Se há algo que o exemplo do Mali ilustra é que o grupo falhou em ambas as frentes, e isso deve servir de aviso a outros clientes africanos que estão a considerar contratar o Africa Corps, apoiada pelo Ministério da Defesa.”