Empresas militares privadas, empresas de segurança privada, forças paramilitares e mercenários operam em África há décadas, mas a sua utilização pelos países africanos aumentou drasticamente nos últimos anos, causando preocupação entre os especialistas em segurança no continente.
Os números são impressionantes. No auge do conflito na Líbia, havia cerca de 20.000 combatentes estrangeiros a apoiar ambas as facções beligerantes. Só o Grupo Wagner da Rússia destacou cerca de 5.000 a 7.000 mercenários para países como a República Centro-Africana, a Líbia, o Mali e o Sudão, com planos para aumentar o seu contingente no continente para 20.000.
“Estamos a assistir a uma presença cada vez maior de mercenários e actores relacionados com mercenários nos conflitos armados contemporâneos e ao risco cada vez maior de graves violações de direitos humanos e crimes de guerra,” afirmou Sorcha MacLeod, presidente do grupo de trabalho das Nações Unidas sobre o uso de mercenários.
Ao discutir estes combatentes, as definições são importantes. As empresas militares privadas (EMP), por vezes, chamadas de empresas de segurança militar privada (ESMP), são entidades jurídicas. A sua utilização é controversa e, muitas vezes, suscita questões sobre a responsabilização e os abusos reais ou potenciais. As empresas de segurança privada (ESP) prestam serviços de segurança armados ou não armados. Os grupos paramilitares, muitas vezes, têm motivações políticas, podem não estar focados no lucro e, por vezes, actuam como auxiliares militares nacionais. Mercenários são indivíduos que vendem os seus serviços a forças ou causas em combate como trabalhadores independentes.

SEGURANÇA TRANSACIONAL A UM PREÇO
A face moderna dos mercenários estrangeiros que operam em África é a do famoso Grupo Wagner da Rússia, rebaptizado de Africa Corps após a morte do seu fundador, Yevgeny Prigozhin, em 2023. Agora uma entidade oficial do governo russo, o Grupo Wagner troca serviços de segurança por metais preciosos e gemas em alguns dos países mais perigosos de África. Como resultado das suas operações nos últimos cinco anos, o Grupo Wagner mantém agora uma rede opaca e complexa de operações no continente que, segundo os críticos, saqueia diamantes, ouro e outros recursos naturais. Eles também exercem uma influência desproporcional sobre o governo e as forças de segurança nas áreas onde operam, de acordo com a The Sentry, uma organização de investigação de políticas. Devido ao desgaste das suas próprias forças de segurança na Ucrânia, a Rússia recorreu à contratação de mercenários sírios para cumprir contratos de segurança na RCA, na Líbia e noutros países.
Um número esmagador de atrocidades amplamente divulgadas segue as mobilizações do Grupo Wagner, destacando os perigos de empregar forças estrangeiras com pouca ou nenhuma formação ou experiência em guerras de insurgência. Vários relatórios documentam que as forças mercenárias russas ordenaram às forças governamentais que matassem mulheres e crianças, torturassem pessoas e conduzissem campanhas de limpeza étnica contra comunidades. Os combatentes envolvidos nessas actividades disseram à The Sentry que a intenção dos mercenários é criar terror e instigar o medo. Essa abordagem de choque e pavor é um anátema para a doutrina de contra-insurgência predominante, que enfatiza a conquista dos corações e mentes da população.
“Aproveitando-se da instabilidade e da fragilidade dos Estados, o Grupo Wagner tem instrumentalizado a violência na busca desenfreada por recursos económicos e poder político, com consequências terríveis para as populações civis,” Charles Cater, director de investigações da The Sentry, disse num comunicado de imprensa. “Em nenhum lugar essa ameaça ficou mais evidente do que na República Centro-Africana, cuja soberania cada vez mais comprometida deve servir como um forte alerta para outros governos de África e de outros lugares.”
Os mercenários russos também estão a ser usados para proteger regimes militares que tomaram o poder em Burquina Faso, Mali e Níger. Embora os líderes dessas juntas tenham convidado os mercenários russos sob o pretexto de combater o terrorismo, a violência dos grupos terroristas continuou a expandir-se, com o número de mortes no Sahel quase triplicando para mais de 11.600 desde 2020. Isso indica que os auspícios antiterroristas da mobilização do Grupo Wagner eram um ardil ou o seu pessoal é ineficaz como força de combate ao terrorismo.
“Vimos isso em todo o Sahel e além, resultando em [golpes] sangrentos, tentativas de destituição da liderança, extracção ilegal de minérios, bem como violações graves e explícitas de direitos humanos, incluindo violência sexual contra mulheres e meninas,” o analista Jonathon James escreveu no jornal nigeriano This Day Live. “A própria presença da Rússia no continente é uma ameaça aberta à paz, à segurança, à democracia e à soberania.”
Um incidente destacou o fracasso de forças mercenárias mal treinadas. Em Julho de 2024, 47 soldados malianos e 84 mercenários russos foram mortos em Tinzaouaten pelo Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM) e combatentes rebeldes Tuaregues aliados. Esta foi a maior perda de forças mercenárias no continente e o maior desastre militar na longa luta do Mali contra os separatistas Tuaregues e militantes islâmicos no Sahel.
O modelo mercenário da Rússia em África é um exemplo cautelar de como trocar a soberania de um país, recursos preciosos e viabilidade económica futura por ganhos de segurança a curto prazo que não podem ser sustentados com uma força estrangeira sem treino e inexperiente.
Os fracassos e abusos dos mercenários contra civis deixaram alguns mais receosos dos soldados estrangeiros contratados pelo seu governo do que dos grupos terroristas.
“Eles alteraram o equilíbrio do medo: a população civil agora tem mais medo de ser presa ou morta pelo Grupo Wagner do que pelos jihadistas e outros grupos armados,” Héni Nsaibia, analista sénior do Projecto de Localização de Conflitos Armados e Dados de Eventos, disse ao The New York Times. “Contudo, eles não afectaram a capacidade de operação dos grupos jihadistas.”

FOCADAS NA PROTECÇÃO DOS INVESTIMENTOS CHINESES NA ICR
As ESP chinesas também cresceram rapidamente em África nos últimos anos, mas, em contraste com o modelo do Grupo Wagner, as ESP chinesas centram-se em proteger os projectos de investimento da Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR) do país. Com uma presença predominante na África Subsariana, as ESP chinesas são empregadas para proteger projectos e pessoal de empresas estatais chinesas que geram mais de 50 bilhões de dólares em receitas por ano, de acordo com o Centro de Estudos Estratégicos de África (ACSS).
Por meio da ICR, Pequim colocou dezenas de milhares de trabalhadores chineses em África para construir projectos de infra-estruturas financiados pela China. Há alguns anos, a China recorreu às ESP para proteger activos como minas, projectos de gás natural, ferrovias e rotas marítimas.
“Vimos um envio maciço de trabalhadores, mais especificamente trabalhadores chineses,” Jasmine Opperman, consultora de segurança independente sediada na África do Sul, disse à Voz da América (VOA). “Agora, estes investimentos, como no Sudão e no Sudão do Sul, estão realmente em áreas voláteis, por isso, temos assistido a uma proliferação de [ESP] chinesas no continente africano, com a tarefa de proteger os funcionários e os projectos de infra-estruturas.”
Em Julho de 2024, combatentes da milícia mataram nove cidadãos chineses numa mina ligada à China na província de Ituri, no nordeste da República Democrática do Congo (RDC). Os analistas afirmam que incidentes como este — e um ataque em 2023 que matou nove cidadãos chineses numa mina de ouro na RCA — resultaram no envio de mais empresas de segurança chinesas.
“Trata-se da protecção e expansão da influência chinesa e, devido à instabilidade da situação de segurança, estamos a assistir a um aumento do número destas [ESP],” explicou Opperman.
As ESP de Pequim operam de forma diferente dos mercenários de Moscovo. A maioria dos contratados de segurança chineses é rigorosamente controlada e não porta armas, excepto aqueles envolvidos em missões de escolta marítima contra a pirataria.
“O Grupo Wagner está envolvido em operações de combate,” Paul Nantulya, especialista sobre a China, no ACSS, disse à VOA. “Está envolvido em guerras; fornece um conselheiro de segurança nacional, por exemplo, na República Centro-Africana. Eles tornam-se parte da arquitectura governamental. Travam guerras em nome dos governos.”
Os contratados chineses normalmente realizam treinos militares com os países anfitriões e fornecem equipamento, inteligência e vigilância. Opperman disse que os contratados de segurança chineses ainda podem ter um efeito desestabilizador.
“Embora as EMP da China não tenham permissão para portar armas, o que estão a fazer é colaborar por meio de empresas de segurança privadas ou locais ou mesmo milícias locais em termos de fornecimento de segurança,” explicou. “Ao colaborar com milícias locais, está-se basicamente a tomar partido.”
EAU COMO UM ‘CENTRO DE ATIVIDADE MERCENÁRIA’
Desde a década de 2010, os Emirados Árabes Unidos (EAU) reforçaram os laços militares com muitos países africanos, principalmente no Corno de África e no Sahel. Abu Dhabi procura ganhar influência, ter acesso a recursos minerais e proteger as rotas comerciais no Mar Vermelho e no Golfo de Áden.
Mercenários contratados pelos EAU trabalham no combate ao terrorismo, à insurgência e à pirataria; fornecem armas e equipamentos; promovem a cooperação em matéria de defesa; e oferecem apoio militar a actores armados não estatais na Líbia e no Sudão. No Sudão, os EAU são acusados de armar as Forças de Apoio Rápido (RSF) paramilitares na sua guerra com as Forças Armadas do Sudão (SAF).
Desde 2016, os EAU assinaram acordos militares com Chade, Etiópia, Quénia, Mali, Mauritânia, Moçambique, o Estado autónomo da Puntlândia, na Somália, Senegal e Somália. Desde a década de 2010, Abu Dhabi também estabeleceu postos militares no Chade, Egipto, Eritreia, Líbia, Puntlândia, Somalilândia semiautónoma e Somália.
Os EAU também contratam combatentes estrangeiros para proteger os seus interesses no continente. Abu Dhabi contrata mercenários colombianos, por exemplo, para apoiar as RSF no Sudão. Cerca de 160 combatentes colombianos faziam parte de uma caravana que viajava da Líbia para o Sudão em meados de Novembro de 2024, quando foram atacados por um grupo alinhado com as SAF. Três mercenários foram mortos.
Em 2024, surgiram relatos sobre um anúncio de emprego divulgado pela Manar Military Co., com sede em Abu Dhabi, à procura de um “operador da Legião Estrangeira.” O anúncio procurava uma pessoa com menos de 50 anos, altamente disciplinada, em boa forma física, com mais de cinco anos de experiência militar e capaz de lidar com “condições de alto stress.” O salário inicial era de cerca de 2.000 dólares por mês, mas aumentaria assim que a pessoa fosse enviada para a Somália ou o Iémen.
“Certamente, quando se ouve ‘mercenários’ hoje em dia, geralmente penso muito mais nos Emirados Árabes Unidos do que na Rússia,” Andreas Krieg, professor sénior da Escola de Estudos de Segurança do King’s College, em Londres, disse ao serviço de notícias alemão, Deutsche Welle. “Os Emirados tornaram-se uma espécie de centro de actividades mercenárias no Sul global.”

COMBATENTES TURCOS NO SAHEL E NA ÁFRICA OCIDENTAL
As EMP turcas também entraram no mercado africano e são conhecidas por empregar sírios para lutar ao lado das suas EMP no Sahel e na África Ocidental. Em 2024, a Sadat International Defense Consultancy de Ancara, uma EMP estreitamente aliada ao presidente Recep Tayyip Erdoğan, enviou 1.100 combatentes recrutados em campos de refugiados sírios para o Níger.
“No Níger, os mercenários sírios devem guarnecer minas, instalações petrolíferas ou bases militares,” Rami Abdel-Rahman, director do Observatório Sírio para os Direitos Humanos, com sede em Londres, disse ao jornal francês, Le Monde. “Mas acabam por se ver envolvidos em combates contra grupos jihadistas.”
Também foram relatados contratantes turcos no Togo, onde pilotaram helicópteros de ataque. Dois terão sido mortos em combate com o JNIM.
“A Turquia também tem oportunidades de aumentar a cooperação económica e militar com o Burquina Faso e o Mali, mas a maior presença da Rússia, em ambos os países, constituirá um obstáculo maior,” o analista Liam Karr escreveu para o Instituto para o Estudo da Guerra.
As EMP turcas estão envolvidas em funções mais tradicionais de garantia de segurança de infra-estruturas económicas e serviços de treino de forças. Embora as EMP turcas tenham concorrido por muitos dos mesmos contratos que as empresas russas e dos Emirados Árabes Unidos e empreguem tácticas de recrutamento semelhantes, elas são geralmente vistas como uma opção mais palatável e disciplinada, com risco mínimo de brutalidade operacional e violações de direitos humanos.
FORÇAS MERCENÁRIAS NÃO GARANTEM ESTABILIDADE A LONGO PRAZO
Os defensores da contratação de mercenários citam o seu valor na manutenção dos esforços de manutenção da paz e na prestação de assistência humanitária, muitas vezes, em zonas de conflito e áreas onde as forças governamentais não estão dispostas ou não são capazes de agir.
No entanto, os analistas temem que os mercenários não sejam responsabilizados pelas atrocidades cometidas contra civis em zonas de conflito e que haja um risco de confusão e consequências indesejadas quando outras forças militares estão activas no mesmo teatro de operações. Alguns observadores também consideram preocupante o uso de concessões de recursos naturais para pagar mercenários e outros serviços de segurança, como na RCA e no Mali.
“Na prática, esses governos estão a hipotecar o futuro económico dos seus países a grupos estrangeiros que, ironicamente, prosperam com a instabilidade como fonte de demanda pelos seus serviços,” Alan Doss, ex-subsecretáriogeral da ONU, escreveu na revista African Arguments.
Os mercenários também podem não estar interessados em garantir a estabilidade a longo prazo das nações que os contratam. Em Janeiro de 2025, quase 300 mercenários romenos recrutados para ajudar o exército da RDC a combater os rebeldes do M23 retiraram-se para o Ruanda e acabaram por regressar a casa.
Numa reportagem da BBC, um dos mercenários romenos disse que o M23, que afirma lutar para proteger os direitos da etnia Tutsi, era apoiado por equipamento militar de última geração e que o exército da RDC desistiu. “As missões eram desorganizadas, as condições de trabalho eram precárias,” disse um outro. “Os romenos devem parar de ir para lá porque é perigoso.”
Alguns analistas afirmam que treinar forças militares indígenas para combater insurgências internas é mais eficaz do que contratar combatentes estrangeiros. Na região da Puntlândia, na Somália, as forças de segurança destruíram, em Janeiro de 2025, várias bases operacionais do grupo Estado Islâmico (EI) nas montanhas Cal Miskaad. Os ataques faziam parte de uma estratégia mais ampla das autoridades da Puntlândia para recrutar os clãs étnicos da região na luta contra o EI.
“A luta não pode ser vencida apenas pelas forças de segurança,” afirmou o primeiro vice-presidente da Assembleia Nacional da Puntlândia, Mohamed Bari Shire. “Precisamos da coragem e da cooperação das pessoas para proteger as nossas comunidades.”
Ao analisar o panorama da segurança em África, a maioria dos especialistas em segurança do continente concorda que o uso de mercenários ou ESP não conduz à paz a longo prazo.
“Os governos africanos e outros devem reconhecer que os mercenários não são a resposta para as fraquezas do Estado,” Doss escreveu para a African Arguments. “Muito pelo contrário: eles são antitéticos à construção do Estado, pois não contribuem de maneira sustentável para o aumento da capacidade do Estado. Os governos que dependem de mercenários ou ESMP … para reforçar a sua segurança nacional provavelmente permanecerão vulneráveis à instabilidade.”
Especialistas Trabalham Para Regulamentar Uma Ameaça Crescente
Mais de 150 especialistas e partes interessadas de toda a África reuniram-se em Setembro de 2023 para discutir as ramificações do número crescente de combatentes estrangeiros no continente. Houve um consenso de que a União Africana deve reavaliar a sua posição sobre os mercenários e tomar medidas para proteger os civis.
O simpósio de dois dias foi organizado pelo Secretariado do Conselho Económico, Social e Cultural da UA na Zâmbia; pelo Instituto para o Pensamento e o Diálogo Pan-Africano (IPATC) da Universidade de Joanesburgo; pelo Instituto de Estudos para a Paz e a Segurança da Universidade de Adis Abeba; e pelo Grupo Pan-Africano de Investigação Estratégica e Política na Nigéria.
Durante a reunião, os oradores instaram os Estados africanos a dar prioridade à reforma do sector da segurança e a garantir que os combatentes estrangeiros que cometem atrocidades sejam sujeitos ao Estado de direito. Os especialistas e as partes interessadas concordaram que devem ser implementados mecanismos de sanções específicas contra governos ou organizações que utilizam combatentes estrangeiros e mercenários.
Adeoye Akinola, chefe de investigação e ensino do IPATC, e Ratidzo Makombe, investigador do mesmo instituto, documentaram várias recomendações políticas da UA que surgiram do simpósio de dois dias, incluindo:
Rever os quadros jurídicos, como a Convenção sobre Mercenários de 1977, reforçar as parcerias entre a UA e as comunidades económicas regionais e melhorar as instituições políticas e de segurança, através de plataformas bilaterais e multilaterais, do intercâmbio de dados em tempo real e de bases de dados interligadas.
Facilitar a formulação e a implementação de programas de desenvolvimento socioeconómico inclusivos para capacitar os cidadãos e travar a proliferação de grupos insurgentes e golpes militares.
Conceber um programa de desarmamento, desmobilização e reintegração para retirar combatentes locais e estrangeiros do conflito e reintegrá-los na sociedade.