Após a queda do ditador sírio Bashar al-Assad em Dezembro de 2024, a Rússia apressou-se a transferir equipamento militar para outras áreas, incluindo o leste da Líbia.
Especialistas questionam os objectivos estratégicos de longo prazo da Rússia e temem que a presença ampliada de mercenários e militares possa desestabilizar ainda mais a Líbia, o Sudão e outros países da região.
O Kremlin tem usado cada vez mais a base aérea de Al-Khadim, cerca de 100 quilómetros a leste de Bengasi, como um centro para conduzir operações, fornecer armas e traficar recursos para dentro e fora da região instável do Sahel.
“Um dos maiores fracassos da política externa do ex-líder líbio Muammar Kadhafi foi, sem dúvida, a sua tentativa, na década de 1980, de usar as suas forças armadas equipadas pela União Soviética para espalhar o domínio e a influência da Líbia na região africana do Sahel,” o investigador Andrew McGregor, do grupo de reflexão Jamestown Foundation, escreveu numa análise publicada no dia 17 de Abril.
“Agora, a Rússia está focada num esforço semelhante no Sahel, utilizando a mesma base aérea remota no sudeste da Líbia que Kadhafi utilizou para lançar a sua ofensiva no vizinho Chade.”
Utilizando imagens de satélite, registos de voos e informações de radar, vários órgãos de comunicação social acompanharam os movimentos dos recursos militares russos da Síria para a Líbia.
Em Maio, um avião de carga Antonov-124 partiu de uma base na Síria e embarcou numa viagem de quase 10.000 quilómetros até à África Subsaariana. A sua primeira paragem foi em Al-Khadim. De lá, viajou para Bamako, capital do Mali, e Ouagadougou, capital do Burquina Faso, de acordo com registos de voo consultados pela Radio France International (RFI).
Embora o tipo de equipamento que foi carregado e descarregado durante esta viagem não seja claro, o compartimento de carga do avião é suficientemente grande para transportar vários aviões ou veículos blindados. Os aviões de carga russos são conhecidos por transportar aviões, helicópteros, radares e sistemas terra-ar para o Burquina Faso, Mali e Níger, onde os mercenários russos continuam a ajudar as juntas militares a manter o poder.
Entre Dezembro de 2024 e Janeiro de 2025, o jornal francês Le Monde documentou oito voos da Síria para Al-Khadim. A RFI analisou vários canais do aplicativo de mensagens Telegram ligados a grupos paramilitares russos e encontrou referências a entregas de armas russas a Al-Khadim, incluindo armas pesadas e veículos blindados — do mesmo tipo utilizado pela Rússia na Síria.
Uma mensagem de vídeo dizia: “Novas organizações. Nova tecnologia. Lugares antigos. Lembrem-se das vossas raízes!” As relações intermitentes de Moscovo com a Líbia são anteriores à Guerra Fria. De acordo com a RFI, as imagens foram filmadas em Al-Khadim.
Lou Osborn, do grupo de investigação All Eyes On Wagner, disse que a presença da Rússia em Al-Khadim é o resultado de um esforço para reforçar os laços com o Marechal Khalifa Haftar, que lidera o Exército Nacional Líbio (LNA) e controla o leste da Líbia desde 2017.
“Vimos uma espécie de balé logístico de aviões russos em direcção à Líbia,” Osborn disse à RFI. “Existe uma aproximação bastante forte, política e militar, entre a Líbia de Haftar e o Kremlin.”
Moscovo também tentou criar laços com o governo oficialmente reconhecido em Trípoli, abrindo embaixadas, e fez propostas para fazer o mesmo na Argélia e na Tunísia. Estes países estão “muito conscientes do que está a acontecer na região, com adidos militares, particularmente na Argélia, que viajam de um lado para o outro para a Líbia,” disse Osborn.
A presença da Rússia na Líbia não se limita a Al-Khadim. Em Dezembro de 2024, a Rússia transferiu tropas da Síria para reactivar a base aérea de Matan al-Sarra, perto das fronteiras com o Chade e o Sudão, de acordo com a agência de notícias italiana Nova. A base estava abandonada desde 2011.
Anas El Gomati, director do grupo de reflexão líbio Sadeq Institute, disse que a retirada da Síria foi apenas um dos factores que levaram a Rússia a usar a base aérea.
“Matan al-Sarra não é apenas mais uma renovação de base aérea, é a Rússia reposicionando as suas peças de xadrez em África,” disse à página da internet The New Arab. “O momento é revelador: à medida que perdem bases na Síria, estão a desenvolver rapidamente esta localização estratégica perto das fronteiras do Chade e do Sudão. Mas não se trata de substituir a Síria; trata-se de criar algo potencialmente mais valioso: uma nova rede de influência que se estende do Mediterrâneo até ao interior de África.”
A partir de Maaten al-Sarra, a Rússia pode abastecer directamente o Burquina Faso, o Mali e o Sudão. Técnicos e tropas russas restauraram pistas e armazéns na base. O LNA de Haftar garantiu a segurança da área e protege as rotas que abastecem o Sudão com armas e combustível a partir do porto de Tobruk, no nordeste da Líbia.
Alguns membros do governo dividido da Líbia opõem-se às actividades da Rússia. Abdul Hamid Dabaiba, Primeiro-Ministro do governo de Trípoli, disse que rejeita qualquer tentativa de transformar a Líbia num centro de conflitos entre grandes potências e alertou que a transferência de armas russas para a Líbia complicaria a crise interna do país.
“Ninguém com um pingo de patriotismo quer que uma potência estrangeira imponha a sua hegemonia e autoridade sobre o país e o povo,” Dabaiba disse ao The Guardian.
Jalel Harchaoui, investigador associado do grupo de reflexão de defesa RUSI, caracterizou as declarações de Dabaiba como um “momento decisivo.”
“O simples facto de ele ter dito essas palavras é profundamente problemático para a Rússia, porque parte da doutrina russa no Médio Oriente é nunca ser vista como estando 100% de um lado contra o outro,” Harchaoui disse ao The Guardian. “Portanto, a Rússia deveria ser esse actor mágico que basicamente estava a obter a aprovação activa de ambos os lados da crise na Líbia. E tudo isso se foi.”