O farmacêutico Al-Samani Alhaj sentiu o sangue a escorrer-lhe da cabeça quando ouviu tiros numa sala adjacente do seu movimentado hospital no norte de Cartum.
Os combatentes das Forças de Apoio Rápido (RSF) paramilitares invadiram o edifício, acusaram os médicos de estarem a tratar o exército sudanês e agrediram Alhaj quando este lhes disse que as instalações eram apenas utilizadas por civis. Entrou na sala ao lado e encontrou o corpo do seu amigo, Musaab, no chão.
“Ele estava a nadar no seu próprio sangue,” Alhaj disse à Deutsche Welle numa reportagem de vídeo publicada em Janeiro. “O seu peito estava aberto. Podíamos ver os seus pulmões a sobressair.”
Antes da guerra, existiam dezenas de unidades sanitárias nas cidades gémeas de Omdurman e Cartum. Quase todas estão fechadas, pois a “Guerra dos Generais” entra no seu segundo ano. O General Abdel Fattah al-Burhan lidera as Forças Armadas do Sudão (SAF) e o General Mohamed Hamdan Dagalo, mais conhecido por Hemedti, lidera as RSF opositoras. Quer tenham sido atacados ou bombardeados por combatentes das RSF ou atingidos pela artilharia das SAF ou por ataques aéreos, estima-se que 80% dos centros de saúde em todo o país não estejam operacionais, de acordo com as Nações Unidas. As organizações de direitos humanos e a ONU acusam ambas as partes de atacar as unidades sanitárias. Ambas as partes negam as alegações.
Desde o início dos combates, em Abril de 2023, a Organização Mundial de Saúde (OMS) verificou pelo menos 119 ataques a unidades sanitárias em todo o Sudão, tendo os trabalhadores da área da saúde e da ajuda humanitária sido mortos por ambas as partes beligerantes. A Dra. Hanan Balkhy, directora regional para o Mediterrâneo Oriental, disse que a OMS acredita que o número de ataques é provavelmente muito superior ao que é actualmente verificável.
“Para cada ataque, há um custo humano que é suportado por toda a comunidade,” disse num comunicado de 2024. “Em tempos de violência extrema, como infelizmente estamos a testemunhar hoje no Sudão, torna-se ainda mais crucial ter um sistema de saúde funcional. Mas, em vez disso, não vemos apenas instalações, mas também profissionais de saúde — os prestadores de cuidados aos mais vulneráveis da sociedade — visados, apesar do seu empenho inspirador em servir.”
De acordo com os dados recolhidos pelo Insecurity Insight, um instituto de investigação suíço, registaram-se 521 ataques ao sistema de saúde do Sudão entre Abril de 2023 e Novembro de 2024.
“Cerca de dois terços destes incidentes foram atribuídos às RSF. As forças das SAF também foram mencionadas, mas com menos frequência,” o instituto escreveu num relatório de situação de 13 de Janeiro. “Pelo menos 119 profissionais de saúde, incluindo médicos, enfermeiros e farmacêuticos, foram mortos enquanto trabalhavam em hospitais, clínicas ou nas suas casas. As unidades sanitárias foram danificadas 129 vezes, na sua maioria por armas explosivas lançadas pelas RSF.”
Relatórios de grupos de ajuda também afirmam que as RSF estão a visar intencionalmente instalações e trabalhadores do sector da saúde, acusando-os frequentemente de ajudarem as SAF.
Apoiado pela instituição de caridade médica Médicos sem Fronteiras, o hospital de Al Nao situa-se numa zona controlada pelas SAF e tem sido atacado repetidamente desde o início da guerra. Projécteis de artilharia das RSF mataram seis pessoas e feriram 38 no ataque mais recente, no dia 4 de Fevereiro.
“Esta é uma guerra contra civis. Não há soldados aqui,” Jamal Mohamed, director do hospital Al Nao, disse à DW.
No final de Janeiro, as RSF atacaram o único hospital em funcionamento em El Fasher, no Darfur do Norte, matando 70 pessoas e ferindo dezenas. O Governador Regional, Minni Minnawi, postou no site da rede social X que um drone das RSF atingiu o departamento de emergência, matando pacientes, incluindo mulheres e crianças.
Os funcionários da União Africana classificaram recentemente a guerra civil do Sudão como a “pior crise humanitária do mundo,” visto que o conflito afecta todos os aspectos dos cuidados de saúde. Wilson Almeida Adao, um funcionário sénior da UA responsável pelo bem-estar das crianças, afirmou que os internamentos hospitalares por desnutrição aumentaram 44% em 2024, com mais de 431.000 crianças a receberem tratamento.
Alhaj continuou a trabalhar no único hospital funcional de Omdurman, a poucos quilómetros do centro médico abandonado onde foi atacado. O medo é um companheiro constante, disse.
“Temos medo que possa acontecer alguma coisa a qualquer momento, mesmo hoje,” disse com lágrimas nos olhos.
Apesar do trauma, Alhaj disse que a morte do seu colega o motivou, a ele e a outros, a continuar o trabalho:
“Perder alguém como Musaab, que prestou cuidados médicos a pessoas durante esta guerra e morreu enquanto o fazia … como podemos parar agora?”